«A rede de bibliotecas públicas foi umas das coisas que se fez bem em Portugal nos últimos anos», disse ontem o escritor angolano José Eduardo Agualusa, na Biblioteca Municipal Manuel Teixeira Gomes, em Portimão.
Agualusa e o seu amigo Mia Couto, moçambicano, estiveram esta quinta-feira, ao fim da tarde, em Portimão, e depois à noite em Faro, na livraria Leya no Pátio, para apresentar os seus dois mais recentes livros, «A Confissão da Leoa» (Mia) e «Teoria Geral do Esquecimento» (Agualusa).
Sempre com boa disposição, apesar da verdadeira maratona que os dois consagrados autores lusófonos vêm fazendo nos últimos dias em Portugal, Agualusa e Mia falaram perante uma sala cheia, com gente em pé, apesar do calor que se fazia sentir. «A Troika não nos deixa comprar um ar condicionado», comentou o presidente da Câmara Manuel da Luz.
José Eduardo Agualusa, ainda a propósito das bibliotecas públicas, acrescentou que «esta rede mudou o país, como tenho constatado nas minhas deslocações, mas mudou inclusive a boa situação da literatura portuguesa. Os países desenvolvidos são países com bibliotecas e com livros».
Zeferino Coelho, editor quase mítico em Portugal, também presente na sessão na Biblioteca de Portimão, explicou que, já que se estava perante a oportunidade única de reunir dois dos maiores escritores lusófonos da atualidade, ainda por cima amigos que se conhecem bem, então cada um deles iria apresentar o livro do outro.
E foi isso que Agualusa e Mia fizeram, para se chegar à conclusão, no fim, de que ambos, embora contando histórias diferentes, falavam mais ou menos da mesma coisa: da identidade.
O primeiro a falar foi José Eduardo Agualusa, que apresentou Mia Couto e o seu romance «A Confissão da Leoa». «Conheci o Mia por causa dos livros», recordando que isso aconteceu quando ainda era jornalista do Expresso. «Foi uma emoção. Descobri uma voz completamente original e senti que era este o escritor que a gente precisava», um autor com «uma voz iluminada, transparente, com histórias absolutamente extraordinárias, histórias que eu gostaria de ter contado». A obra de Mia Couto e o seu encontro pessoal que se transformou em amizade foi, por isso, para Agualusa, «reconhecimento mais que conhecimento».
Quanto ao mais recente livro do escritor moçambicano, Agualusa considerou que «este é um outro Mia Couto, é um outro projeto». «São raros os escritores que, tendo construído um caminho, que lhes garantiu sucesso de vendas e de crítica, têm coragem de romper com esse caminho». É que, explicou Agualusa, em «A Confissão da Leoa» «não vão encontrar o Mia Couto dos neologismos, da talvez excessiva criação de novas palavras».
Mas isso, segundo o escritor angolano não diminui em nada a nova obra: «na minha opinião, este é o melhor livro do Mia».
Em «A Confissão da Leoa», com selo da Editorial Caminho, o escritor moçambicano Mia Couto aborda um acontecimento real – as sucessivas mortes de pessoas provocadas por ataques de leões numa remota região do norte do seu país – e a partir daí tece uma surpreendente obra que fala de leões e caçadas, mas também de homens e mulheres vivendo em condições extremas.
«É um livro sobre caçadores, sobre leões? Não! É sobre a condição humana e sobre a condição feminina», «como certas tradições são desrespeitosas para a mulher».
Foi depois a vez de Mia Couto apresentar «Teoria Geral do Esquecimento», de Agualusa, editado pela Dom Quixote. O escrito angolano situa o seu romance em Luanda na véspera da independência, ocorrida em 1975: uma portuguesa, aterrorizada com a evolução dos acontecimentos, ergue uma parede separando o seu apartamento do restante edifício – do resto do mundo. Durante quase trinta anos sobreviverá a custo, como uma náufraga numa ilha deserta, vendo em redor Luanda crescer, exultar, sofrer.
Mia Couto recordou que ele e Agualusa têm, desde logo, «uma condição partilhada: somos africanos, os dois, de origem portuguesa». «Há aqui fantasmas, obsessões, que são comuns», nomeadamente a de escrever sobre «a invenção da identidade, como é que nós somos feitos de vários eus, e também a invenção de um passado, de uma certa memória».
Mia considerou que este é também «o melhor livro do José Agualusa». «Parece um livro sobre Luanda, mas não é. É sobre a Humanidade, sobre todos nós». O livro, acrescentou, fala sobre «uma mulher que se torna reclusa, o que é uma metáfora de todos nós», que vivemos num «desamparo perante um mundo em profunda mudança».
«Li o livro de uma assentada. Fiquei muito comovido», confessou Mia Couto.
O escritor moçambicano recordou ainda outra condição que partilha com Agualusa: «cada um de nós carrega Angola ou carrega Moçambique, como uma coisa que nos é comum». Apesar das suas origens genéticas europeias, no fundo é África aquilo que une Mia e Agualusa.
Uma condição que, aliás, os dois escritores partilhavam também com muitas das pessoas que enchiam o auditório da Biblioteca Municipal de Portimão. Como recordou um dos leitores na assistência, «quase metade da cidade de Portimão é de pessoal que veio de Moçâmedes, com a descolonização».
Manuel da Luz, presidente da Câmara, recordaria, a fechar, que Mia Couto e José Eduardo Agualusa são «duas pessoas que nos ajudam a reconhecer a nossa identidade: somos fruto da caldeação de culturas, na qual a componente africana é muito importante».