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Sul Informação - Censura: 15 razões para a (nossa) indiferença

Censura: 15 razões para a (nossa) indiferença

A liberdade de expressão e o respeito pela diferença e pela diversidade estão a ser crescentemente ameaçados, atingindo todos os quadrantes da sociedade, e a cultura e as artes não são excepção. E nós?

In memoriam Alcindo Monteiro

Face à proliferação de narrativas e de episódios que visam condicionar e anular a liberdade de expressão, inclusive nos planos cultural e artístico, é imperativo persistir na resistência activa, na consciencialização colectiva e na acção não silenciosa e consequente.

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Trata-se de um dever cívico, de um alerta social, de um apelo democrático. Identifico 15 razões que explicam (mas não legitimam) atitudes de apatia, indiferença e/ou inércia que (ainda) nos assaltam quando confrontados com estes fenómenos:

  1. Ingenuidade: uma dada situação anómala só acontece(rá) aos outros e nunca a nós ou a alguém que nos é próximo/familiar. Além disso, o sucedido terá sido algo espontâneo, “casual”, não premeditado, sem motivação político-ideológica, sem planeamento ou estratégia, sem uma organização estruturada por trás.
  2. Normalização/banalização: trata-se certamente de um caso pontual, excepcional e transitório, sendo que o tempo vai acabar por diluir o ocorrido e o seu impacto. Os media devem estar a amplificar e empolar o quadro para gerar maior buzz comunicacional e obter audiências. Até porque o relatado é o resultado natural e expectável dos tempos distópicos actuais. Situações similares também estão a ocorrer noutras realidades/países, o que nos reconforta e ameniza o quadro pelo facto de não ser um fenómeno apenas nacional.
  3. Desresponsabilização: não seremos nós enquanto cidadãos, em nome individual ou colectivamente, que temos o dever de fazer alguma coisa para resolver/evitar estes problemas, mas sim os governantes que foram eleitos e que são pagos para isso, e as autoridades e outras instituições públicas competentes para o efeito.
  4. Medo: será mais fácil e prudente não assumirmos uma posição pública sobre assuntos mais sensíveis e/ou mediáticos por causa do consequente escrutínio, da imprevisibilidade das reacções e até de eventuais represálias daí decorrentes.
  5. Interesse/“tolerância selectiva”: será aconselhável não exteriorizarmos um ponto de vista pessoal para não questionarmos um certo sistema instalado ou para, eventualmente, não apontarmos o dedo/criticarmos alguém que nos é próximo/familiar, alguém de quem dependamos profissionalmente e/ou alguém de quem possamos, porventura, vir a necessitar num futuro próximo. Em alternativa, a dizer algo, optamos por elucubrações sem alcance, jogos retóricos destituídos de substância e outros “artifícios” discursivos, esvaziando as palavras sem acertar no centro das mesmas. Isto para não veicularmos uma opinião concreta/statement, para não assumirmos uma posição clara, afirmativa, criticável, para estarmos sempre bem com tudo e com todos, e, assim, sermos (ilusoriamente?) mais consensuais.
  6. Individualismo: há uma tendência galopante para o autocentramento narcísico, para vivermos numa bolha não confessada (real e digital), para um desligamento egoísta em relação ao milieu social em que estamos pretensamente integrados. Pelo mesmo prisma, consideramos que existem certamente problemas bem mais relevantes e prioritários do que estes “estranhos, confusos e surreais” episódios, como sejam as nossas necessidades básicas (subsistência, emprego, saúde).
  7. Acomodação/desculpabilização: haverá já suficientes pessoas a criticar, repudiar e alertar para as temáticas em causa, pelo que não fará grande diferença ou não será muito grave ou condenável se não nos envolvermos/manifestarmos. Nesta linha, gostamos também de pensar que, muito provavelmente, não temos poder para alterar o status quo.
  8. Desvinculação crítica: falta-nos, amiúde, um pensamento crítico estruturado, de maturação lenta e ponderada, clarividente, fundamentado e coerente, uma perspectiva actualizada, uma opinião autonomizada sobre estas questões mais fracturantes. Embarcamos em narrativas repetidas até à exaustão e de fácil e rápida apreensão, e somos mais ágeis a dar providenciais respostas (fragilmente assentes em receitas iluminadoras) do que à procura, pacientemente, das perguntas cert(eir)as.
  9. Descomprometimento cívico: não desenvolvemos nem consolidámos ainda, de modo satisfatório e disseminado, uma efectiva cultura de participação (também cultural), assente num espírito de mobilização colectiva e de organização cívica, de aglutinação de vozes/ideias visando a co-criação de soluções efectivas para estes problemas.
  10. Seguidismo/mimetismo: abundam nas nossas mentes percepções superficiais, pouco informadas, não verificadas e, amiúde, decalcadas de discursos não escrutinados/validados sobre estas problemáticas. Ainda somos escravos de uma torrencial desinformação digital (perfis falsos, fake news, etc.) e seguidistas acríticos de visões populistas, estupidificantes e radicais.
  11. Aceleração alienadora: na voragem automatizada e estridente desta “sociedade do espectáculo” (Guy Debord), descuramos e desimportantizamos os indícios, as mensagens sub-reptícias nas entrelinhas, os sinais subtis, os nexos de causalidade (e também, por vezes, as evidências maiores) relativamente a discursos e práticas ameaçadores que, de modo tentacular, se vão instalando mais em surdina ou com maior ruído.
  12. Ausência de visão holística: sendo a realidade fragmentada, plena de dispersão, camadas, paradoxos e contrastes, não empreendemos um olhar global, integrado, transversal e (ecos)sistémico sobre a mesma – pois, no fundo, “isto anda tudo ligado”. Atentamos apenas na árvore e não enxergamos toda a floresta. Não poucas vezes, focamo-nos, de modo redutor, numa ideia única (na identificação obsessiva de uma só causa para fenómenos complexos) como explicação magna para estes movimentos disruptivos, não vislumbrando o panorama completo e seus matizes, singularidades, nuances.
  13. Incoerência e falta de ética: quando, no nosso dia-a-dia, não somos coerentes e consequentes entre o que dizemos/escrevemos e o que praticamos, depois a nossa eventual indignação e condenação destas narrativas e comportamentos que incitam à intolerância, à repressão e ao ódio tornam-se potencialmente frágeis, voláteis e artificiais, destituídas de verdade e de efeito transformador (e nós, no fundo, até temos essa consciência, daí nos retrairmos como que em modo de auto-censura psicológica).
  14. Défice de cultura e consciência históricas: teimamos em encarar os direitos (como a liberdade e o respeito pelo outro) como algo adquirido e impoluto, o que denota amnésia, indiferença ou ignorância em relação às lições da história. Temos de, com critério, ler mais e ouvirmos quem realmente sabe para sermos mais livres, conscientes e conhecedores. Como temos vivido, nestes 51 anos, num sistema democrático mais ou menos estável e pacificado, mesmo até inconscientemente acabamos por subestimar “liquidamente” (Zygmunt Bauman) os seus princípios basilares, que, na verdade, só aparentemente são intocáveis e incorruptíveis.
  15.  Indisponibilidade/desfocalização: não temos tempo (o argumento-bengala mais recorrente) para ir para a rua protestar, para fazer da palavra uma arma carregada de futuro, para sensibilizar os outros para atentados à liberdade, à tolerância, à democracia, pois temos uma vida (demasiado) cheia. Ou (hipocritamente) parada e calada? O nosso foco é a liberdade a sério, para todos (mesmo para os que gritam baixinho e para os que já se resignaram ou desistiram) e não apenas para nós? É que só assim poderemos mudar e decidir, já dizia, “à queima-roupa”, Sérgio Godinho em 1974.

    Não fiquemos demasiado quietinhos, sossegadinhos e caladinhos, porque não podemos ter um país em diminutivo. Regressemos ao contacto de proximidade, à esfera local (aos bairros, associações, cooperativas, juntas de freguesia, grupos informais), a uma efectiva escuta. Não tenhamos receio do contraponto, da crítica e de mundividências alternativas. Invistamos em laboratórios de inovação cidadã, na inclusão, na empatia e, acima de tudo, numa inteligência colaborativa, visando o bem-comum.

    Priorizemos a primeira pessoa do plural: juntemo-nos, encontremo-nos, amparemo-nos, ouçamo-nos, discutamos, lutemos, choremos, riamos, abracemo-nos, gritemos de viva-voz, pois esse “líquido amniótico” colectivo e esse “cordão umbilical” serão sempre a nossa força maior. É preciso retornar urgentemente à potência da assembleia humana (que nem ambiente uterino primordial), (re)construir um chão partilhado que “tem sonhos e vontade” (A Garota Não) – para repensar, reinventar a vida e gerar novas vidas dentro da vida. Pois o elevado, comovente e revolucionário exercício da solidariedade, quando quotidiano e verdadeiro, também é um gesto de humildade, que nos ensina a reconhecermo-nos nos outros e a (re)descobrir a grandeza das “pequenas coisas”.

    A enorme poeta brasileira Marina Colasanti dizia que “a gente se acostuma para poupar a vida”. Só que, de tanto nos habituarmos, acabamos por nos perder de nós mesmos. Resta a interrogação, banal ou fundamental (cabe-nos decidir): qual é mesmo a nossa razão de ser e de existir, a causa certa para nós? O silêncio não é opção.

    Crédito da foto: Sebastião Salgado (Lisboa, 1975)

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