Há um ponto em que a permissividade se torna conivência? Quando o insulto e a mentira se instalam como norma, a sociedade perde referências. O respeito dissolve-se, a decência cede lugar ao espetáculo da indignidade.
Na Assembleia da República, deputados do Chega dirigiram-se à deputada socialista Ana Sofia Antunes, invisual, com uma frase que dispensa explicação: «Pareces uma morta».
A brutalidade da expressão ultrapassa a falta de educação. Revela uma cultura política na qual a humilhação pública substituiu a discussão de ideias. Se este comportamento se instalou no Parlamento, que esperar do resto do país?
O colapso do bom senso
Insultar tornou-se uma estratégia sem consequências. O que antes seria impensável, infame, hoje passa sem sanção. A ausência de penalizações legitima o abuso e incentiva outros a seguir o exemplo. O espaço público degrada-se a cada provocação impune.
Nas redes sociais, a mentira circula sem freio. A difamação, o assédio e a destruição de reputações são prática diária.
Mark Zuckerberg defende que «está na altura de voltarmos às nossas raízes no que diz respeito à liberdade de expressão». O argumento surge num momento em que a Meta reconsidera o papel da verificação de factos, alegando um excesso de censura.
A vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, diz Zuckerberg, marca um «ponto de viragem cultural». O que está em causa não é liberdade, mas poder. E sabemos em que direção aponta.
Não se trata de liberdade de expressão, mas de responsabilidade. A desinformação não é uma opinião. A calúnia não é um argumento. Há fronteiras que não podem ser abolidas sem consequências graves para a democracia.
O culto da mentira e o egoísmo sem limites
A mentira já não é um erro a corrigir. É uma ferramenta de domínio. Os chamados «factos alternativos» são a prova de que a verdade já não é um valor absoluto, mas um produto moldável ao interesse de quem a propaga.
Donald Trump e Elon Musk representam essa era de individualismo extremo, na qual o que importa não é o impacto da verdade das palavras, mas a força com que são repetidas.
O relativismo moral permite justificar tudo. Já não há princípios inegociáveis. Cada um constrói a sua própria versão da realidade, dispensando factos e ignorando consequências. O efeito é visível: o debate público perde profundidade e transforma-se num concurso de idiotices.
A degradação do discurso e a perda do sentido de comunidade
A falta de decoro já não choca. O insulto tornou-se banal. Os códigos de honra, que outrora garantiam a civilidade, estão a ser descartados como relíquias inúteis. O respeito pela palavra dada deixou de existir. O que se diz hoje pode ser desmentido amanhã, sem que isso traga qualquer punição.
A liberdade de expressão não é um cheque em branco. Ter voz não dá direito a esmagar o Outro. Sem regras, o espaço público torna-se inabitável. Se a mentira e o insulto continuarem a ser tolerados, restará apenas o cinismo – e, no meio do ruído, o silêncio daqueles que ainda acreditam na decência.