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António Leandro não consegue precisar quantos «Porquinhos Doces» o Café Luiz da Rocha, em Beja, já fez e vendeu ao longo dos anos. Ele, que é o presidente da «Cooperativa Luiz da Rocha – Os Trabalhadores Unidos», proprietária do histórico café bejense desde 1976, foi um dos guias da atividade sobre património promovida no sábado à tarde, pelo Festival Terras sem Sombra.

Porque falar deste «Porquinho Doce» é, de facto, falar de património. Aliás, o próprio café é também património de Beja.

Fundado em 1893, com o nome de Confeitaria Bejense, pelo doceiro Luiz da Rocha, tinha «um bom sortido de doces de diferentes qualidades, preparados com esmero e asseio», como anunciava o jornal «O Bejense», nesse longínquo ano.

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António Leandro conta que, ao longo do século XX, este era um «café clássico, mas também um café de tertúlias», onde «tudo se discutia, mesmo a política», incluindo nos tempos da ditadura. «Houve aqui grandes tertúlias, a última delas, com mais preceito, foi com a Natália Correia», recordou, perante uma plateia composta por gente da terra, mas sobretudo ida de fora, para participar no fim de semana que marcou o final da 20ª temporada do Terras sem Sombra.

As tertúlias, lamentou, «estão em vias de extinção. Até nas nossas casas, as pessoas falam cada vez menos umas com as outras. Agora está tudo agarrado aos telemóveis».

Outra das mágoas de António Leandro é a atual dificuldade em encontrar «empregados de mesa». «Isto aqui no Café Luiz da Rocha mais parece a Assembleia Geral das Nações Unidas: temos empregados do Brasil, Venezuela, Guatemala, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné, Angola, Bangladesh… ah, e também temos portugueses, já me esquecia», disse, arrancando uma gargalhada da assistência que enchia por completo a sala do 1º andar do café e restaurante.

«Ao longo dos anos, temos tido altos e baixos. Hoje, o maior problema é o dos recursos humanos», salientou. O facto de ser uma cooperativa, «com 48 anos feitos em Julho», também «não é muito normal neste ramo».

E não se pense que o Café Luiz da Rocha só faz o «Porquinho Doce». São igualmente famosas as suas trouxas d’ovos (que tinham no Padre Feytor Pinto um dos seus grandes adeptos), as queijadas de requeijão, os doces de amêndoa ou as empadas de galinha.

Nos últimos anos, o seu bolo-rei também se tornou famoso. No próximo dia 6 de Janeiro, aliás, numa das ruas do centro de Beja, voltará a haver «um bolo-rei com 50 metros», para comer até fartar, de graça, como anunciou Maria João Macedo, chefe de Divisão de Cultura e Património da Câmara de Beja, que acompanhou a atividade. Este ano, «esses 50 metros de bolo-rei desapareceram em 40 minutos», recordou António Leandro. Em 2025, há-de ser igual.

 

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O Porquinho Doce de Beja – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Mas, afinal, o que é e que importância tem o «Porquinho de Beja», que, em 2019, foi um dos finalistas das 7 Maravilhas Doces «entre 900 e tal doces de todo o país»?

José António Falcão, diretor executivo do Terras sem Sombra e historiador de arte, já tinha feito o enquadramento sobre a forte tradição da doçaria conventual de Beja, à porta do antigo Convento da Conceição, onde viveu Soror Mariana Alcoforado, hoje transformado em Museu, fechado temporariamente, por causa das obras.

«As rendas dos mosteiros e dos conventos eram pagas em géneros, recebendo parte delas em ovos», revelou. O Convento da Conceição, que era o mais rico e mais importante de Beja, receberia qualquer coisa como 50 mil ovos por ano, segundo as contas que José António Falcão fez, a partir de documentos da época.

Os ovos eram usados na alimentação, mas também tinham «um papel importante na purificação, na clarificação dos vinhos, sobretudo dos tintos». A albumina das claras ajudava a retirar o excesso de taninos.

As religiosas do Convento da Conceição, que era um convento real, eram proprietárias de grandes propriedades agrícolas no Baixo e até no Alto Alentejo. A este convento, chegaram a estar ligadas 150 religiosas, mais duas ou três vezes esse número em serviçais, além de abegãos, carpinteiros e outros artífices que ali trabalhavam. «Era uma opulentíssima casa!», garantiu o historiador de Arte.

O Convento foi fundado em 1459 pelos primeiros Duques de Beja, pais de D. Leonor, a rainha que fundou as Misericórdias.

Além dos ovos, as religiosas recebiam também quinhões de açúcar, que vinha da Madeira, atribuídos pelos duques, supostamente para fins medicinais. Um desses duques até era o futuro rei D. Manuel I.

Mais tarde, chegou o cacau, vindo das Américas, adquirido também para a botica.

Com estes e outros ingredientes, o Convento – não propriamente as religiosas, muitas delas oriundas de famílias ricas, que eram apenas as mestres doceiras, mas as serviçais – fazia então doces «com função cerimonial», que serviam para «as relações da comunidade religiosa com o exterior». Também tinham uma função diplomática, quando as religiosas pretendiam adoçar a boca de alguém importante, para obter algo em troca. E serviam igualmente para demonstrar o poder e a riqueza do Convento.

Ao longo do ano, os doces do Convento da Conceição de Beja eram também confecionados para as Festas do Jordão, que celebravam o batismo de Cristo por São João Baptista, bem como para os festejos da Páscoa e do Natal.

 

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António Leandro, José António Falcão e Maria João Macedo – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Havia muitos segredos à volta da confeção dos doces. «Só mestres doceiras de alto calibre sabiam elaborar bem estas verdadeiras especialidades».

Com a extinção dos conventos religiosos, em 1834, as religiosas que puderam continuar nas casas perderam grande parte do seu património e, no fundo, tiveram de trabalhar para sobreviver. «O que antes ofereciam, passaram a vender, com a ajuda das educandas que podiam receber», contou José António Falcão.

«As meninas que aqui foram educadas aprenderam os segredos, que foram sendo transmitidos de geração em geração», acrescentou.

Nos finais do século XX, «Beja converte-se ao turismo. Era preciso ter um produto para vender aos turistas» e, em vez do cordeiro que se fazia antes, talvez para evitar conotações religiosas, passou a fazer-se mais o porquinho.

E assim se chega ao Porquinho Doce, que na realidade, na sua forma mais habitual, é uma porca com leitões e uma seira com bolotas. Tudo feito com amêndoa, açúcar, ovos, pão alentejano, cacau e gila.

Para mostrar como se monta este Porquinho Doce, uma «micro escultura», como lhe chamou José António Falcão, a sala do 1º andar do Café Luiz da Rocha recebeu o chefe doceiro Ivo Manguito.

Homem de poucas palavras e sorriso tímido, mostrou com se faz a montagem deste doce, em camadas sucessivas: primeiro faz-se um rolo, que se espalma à medida, com a massa de amêndoa, açúcar e pão, criando a primeira camada. Sobre essa, coloca-se outra de doce de ovos (e açúcar). Abre-se depois uma pequena cavidade, onde se coloca o doce de gila, depois outra porção de doce de ovos e mais massa de pão e amêndoa.

A cobrir tudo isto, será colocada uma pasta feita de cacau, amêndoa e açúcar, que dará ao porquinho a sua cor castanha, evocativa da raça suína alentejana.

Com essa pasta, em menos de nada, Ivo Manguito moldou também, à mão, o focinho, as orelhas, as patas, o rabo e ainda os dois leitões e a seira com as bolotas. O olho é feito com chocolates branco e negro, por uma fábrica de chocolate local.

Por cima do porquinho, escreve-se a mensagem encomendada pelo freguês. No caso, Ivo escreveu apenas Beja. «Há quem queira escrever muita coisa, mas testamentos em cima do porco não dá», garantiu, bem disposto, António Leandro.

 

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A moldar o porquinho doce – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

O mestre doceiro Ivo Manguito montou um Porquinho Doce em cerca de 15 minutos, como se fosse fácil. Mas a verdade é que nem ele sabe quantos é que já fez, nos 15 anos que leva nesta vida… e a prática leva à perfeição e à rapidez.

Quanto à preparação de todos os ingredientes, Ivo revelou, respondendo a uma pergunta da audiência, que eles levam cerca de dois dias a ficar no ponto. Muito trabalho, portanto, por trás de um doce que as cerca de 30 pessoas que assistiam à demonstração devoraram em menos de nada. A repórter do Sul Informação também provou e pode garantir que é muito bom, não sendo excessivamente doce.

Além do Café Luiz da Rocha, há mais duas casas em Beja que preparam este doce tradicional. Mas este é o mais afamado, chegando a enviar Porquinhos Doces, sobretudo pelo Natal, para países tão distantes como o Canadá.

Os segredos mais secretos (a repetição é propositada) não foram revelados nesta sessão, mas todos ficaram a saber mais alguma coisa sobre a história e o trabalho à volta deste monumento da doçaria alentejana.

O tamanho dos porquinhos fica à vontade do freguês. O mais normal é o porquinho de um quilo, sendo o mais pequeno o de meio quilo. Mas já tem havido quem encomende porquinhos com vários quilos e duas dúzias de leitões.

«Não há dois porcos iguais, porque são verdadeiras obras de arte, verdadeiras esculturas», garantiu Maria João Macedo.

As encomendas do Porquinho Doce na época do Natal são «uma loucura», de tal forma que só são aceites durante sete dias, de 1 a 7 de Dezembro. E nem isso é garantia de receber o doce, porque, confessa António Leandro, mesmo trabalhando sem parar, às vezes não é possível responder a essa avalanche de centenas e centenas de encomendas.

E porque é que, numa tarde de sábado, roubando tempo ao descanso e à família, Leandro e Ivo aceitaram estar ali, a mostrar como se faz este doce tradicional, aos participantes na iniciativa sobre património do Festival Terras sem Sombra?

«Nós, quando nos pedem qualquer coisa que tenha a ver com Beja e com o Alentejo, somos incapazes de dizer que não, tal é o nosso amor ao Alentejo!», garantiu António Leandro. E todos acreditaram!

Foi, de facto, uma maneira de preparar o público do Terras sem Sombra para outra delícia que viria a seguir: o magnífico concerto do ensemble italiano Camerata Ducale, sob a direção musical do maestro Guido Rimonda, um virtuoso do violino, que deixou maravilhados os espectadores que encheram o Teatro Pax Julia, em Beja. Que maneira sublime de terminar esta 20ª edição do Festival Terras sem Sombra.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

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