Criatividade geral e artificação do território

E porque não olhar para o nosso território como se fosse uma obra de arte sempre inacabada, tal como nós próprios?

Numa sociedade que enfrenta desafios decorrentes da globalização e do acelerado desenvolvimento tecnológico e onde a inteligência artificial tem já um papel decisivo, as competências emocionais, sociais, criativas e críticas que as artes e a cultura mobilizam e proporcionam poderão ser um instrumento essencial de adaptação a esse mundo em mutação vertiginosa.

Os territórios, em movimento constante de desterritorialização e reterritorialização, precisam, também, de ser convertidos em territórios-desejados, em objetos de desejo, em obras de arte. Pensemos, por um momento, nas motivações que podem mobilizar a nossa inteligência emocional em direção a um determinado território, fazendo com que ele se converta num objeto de desejo, num território desejado. Senão, vejamos.

Pensemos, por exemplo, no plano nacional das artes e na rede portuguesa de arte contemporânea e na itinerância das coleções de arte pelos inúmeros centros de arte contemporânea já hoje existentes em Portugal.

Pensemos, por exemplo, no programa nacional de educação estética e artística e na itinerância dos artistas plásticos portugueses pelos municípios e escolas do país, dirigindo e orientando a produção de obras de arte pública por jovens artistas das nossas vilas e cidades, sem esquecer, em tempo de alterações climáticas, a especial relação da arte pública com as boas práticas da economia circular.

Pensemos, por exemplo, na associação das aldeias históricas de Portugal aos programas de educação estética e artística e na itinerância de um programa nacional de instalações artísticas e culturais que celebrem a beleza natural dessas aldeias.

Pensemos, por exemplo, no programa de bibliotecas escolares e no plano nacional de leitura e na itinerância de muitos escritores portugueses, não só explicando as suas obras literárias, mas, também, descrevendo e revisitando algumas paisagens literárias dos nossos maiores escritores.

Pensemos, por exemplo, no plano nacional de cinema e na itinerância de um programa de divulgação das grandes obras cinematográficas, mas, também, em sessões explicativas sobre a produção de pequenos documentários sobre a arte e a cultura dos territórios.

Pensemos, por exemplo, na rede portuguesa de museus e na organização de visitas guiadas a vestígios arqueológicos e a monumentos nacionais como formas privilegiadas de explicar aos mais novos a história e a cultura portuguesas.

Pensemos, por exemplo, nos centros de ciência viva e nos centros interpretativos e na itinerância que lhes está associada, que os nossos cientistas podem protagonizar, em tudo o que diga respeito aos endemismos locais, às ocorrências geológicas, às boas práticas ambientais e florestais, tendo em vista proteger os habitats e ecossistemas existentes.

Pensemos, por exemplo, na arte sacra e nos inúmeros lugares de culto e peregrinação espalhados pelo país e à itinerância que lhe está associada, seja em celebrações ou visitas guiadas.

Pensemos, por exemplo, nos terroirs portugueses que alimentam o turismo em espaço rural e em algumas marcas UNESCO como a Dieta Mediterrânica e teremos mais um motivo para visitar os territórios do chamado país do interior; além disso, crescem as chamadas artes da paisagem, circuitos geo-artísticos do universo rural, paisagens emergentes com temáticas e símbolos anti hegemónicos alinhados com as críticas da ecologia política, disrupções e dinâmicas socio-espaciais; as performances criativas vão para lá da mera representação e geram fluxos imaginativos e criativos que interagem com todos.

Pensemos, por exemplo, na multiplicação de equipamentos e infraestruturas dedicadas (1), a multiplicação das formas de expressão artística e cultural (2), a explosão de eventos turístico-culturais (3), a turistificação de muitas atividades económicas (4), o aumento substancial de novos profissionais saídos das escolas profissionais, universidades e politécnicos (5), a multiplicação das formas de mediação e intermediação, novos atores, promotores, agentes e curadores (6), a multiplicação de políticas públicas e medidas de apoio às atividades artístico-culturais (7).

Ora, numa determinada Comunidade Intermunicipal, por exemplo, todos estes instrumentos de programação e planeamento podem estar conectados entre si e as suas hiperligações contribuírem para a atração e dilatação do território da CIM, seja por via da itinerância das coleções de arte, das visitas guiadas, dos percursos de natureza e das paisagens literárias, das residências artísticas e das artes de rua, da arte sacra e dos lugares de culto e peregrinação, dos museus e dos vestígios arqueológicos, dos centros de ciência viva e dos endemismos locais, entre muitos outros signos distintivos territoriais.

Aqui chegados, qual é a interpretação que cola melhor com todas estas manifestações artísticas e culturais?

Creio que estamos a assistir ao crescimento de uma criatividade geral que se manifesta, de forma crescente, em múltiplas escalas e dimensões: uma criatividade mais funcional e utilitária (1) no que diz respeito, por exemplo, aos serviços públicos de interesse geral, uma criatividade mais técnica e cientifica (2) ligada, por exemplo, à produção de propriedade intelectual, uma criatividade mais artística (3) ligada, por exemplo, à produção da obra de arte convencional, uma criatividade mais simbólica e cultural (4) ligada, por exemplo, à produção de novos conteúdos culturais, uma criatividade mais tecno-digital (5) ligada, por exemplo, às artes digitais e suas relações com a inteligência artificial e os ambientes simulados, uma criatividade de arte fabricada ou artificada (6), ligada, por exemplo, à turistificação cultural de recreio e lazer de grande consumo.

Em termos gerais este movimento de criatividade geral e artificação dos territórios pode ser caracterizado da seguinte forma:

– Um aumento geral da atividade artística e cultural que gera fluxos crescentes entre territorialidade e virtualidade, novas experiências de intersubjetividade e novos territórios de fusão,

– Na corrente de artificação em curso o objeto torna-se arte, o produtor torna-se artista, a fabricação torna-se criação, os clientes tornam-se públicos,

– Assistimos a um movimento geral de objetivação da cultura, à culturalização e ao crescimento das instituições de mediação da cultura,

– Assistimos ao crescimento exponencial de eventos de recreio e lazer e artístico-culturais e à sua turistificação como núcleo central da constelação turístico-cultural,

– Neste movimento geral, assistimos à transfiguração de pessoas, objetos e práticas, à redefinição dos limites entre arte e não-arte, ao deslocamento de legitimidades, hierarquias, reconhecimentos e validações da arte e da cultura,

– Neste movimento geral de artificação e cultura tudo está em trânsito: artistas, normas, instituições, públicos, mercados, estética, critérios, agentes mediadores, políticas públicas e acessos aos financiamentos, um universo social muito instável e desconcertante; no final, a artificação parece ocupar-se mais da atividade do que do objeto final, por via de um aumento significativo dos agentes da cultura, dos mediadores aos intermediários, dos criadores aos curadores, dos profissionais aos críticos, dos mecenas aos empresários, da imprensa à academia.

 

Nota Final

Património e paisagem, ciência e tecnologia, arte e cultura: ainda não fomos capazes de mobilizar estes três conjuntos de recursos em modo ordenado e com uma intensidade-rede suficiente. Eles formam uma cadeia de valor de uma riqueza inestimável que jaz adormecida em muito territórios que continuam, digamos, em lista de espera. Nesses territórios, em estado expectante, existe um produto potencial que precisa de ser ativado e muito bem trabalhado. A arte e a cultura, como a ciência e tecnologia, podem rasgar esse horizonte de possibilidades e abrir ao mundo o nosso pequeno mundo de alcance tão limitado.

Às vezes chegamos lá por via do absurdo e do disparate, da sorte ou do acaso, mas a arte participativa, a democracia cultural e o compromisso comunitário podem orientar a nossa atenção e a nossa energia na boa direção, ou seja, para a valorização da cadeia de valor do território e para a transformação do seu produto potencial em bens e serviços, materiais e imateriais, que dilatam a economia do território, mas, também, o nosso horizonte de vida e a cidadania quotidiana.

E porque não olhar para o nosso território como se fosse uma obra de arte sempre inacabada, tal como nós próprios?

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve.

 

 

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