Senhor Ferreirinha, o endireita do concelho de Odemira

“O meu pai e o meu avô já tinham este dom, veio de geração para geração, uma geração de amanhadores”

Sente-se ainda o calor, assim que se chega à pequena aldeia de Castelão, na freguesia de São Luís, no concelho de Odemira, o maior de Portugal. Procurado por pessoas até do Algarve, Manuel Ferreira, de 68 anos, presta um serviço que já pouco existe, mas que muita procura tem. Mais conhecido como “Ferreirinha”, diz acreditar no dom de endireitar os ossos às pessoas.

Nascido numa família de amanhadores (é assim que os endireitas são chamados no Alentejo), logo cedo se apercebeu que também tinha o dom de endireitar os ossos. Já desde pequeno que observava o seu pai, mas um dia, com a idade tenra de 9 anos, partiu a perna em dois sítios, com a marrada de um boi, e teve que ser o seu pai a amanhar. “Nem foi preciso ir ao médico “, diz.

Sente que esse azar contribuiu para o despertar desta arte de amanhar e de ajudar as pessoas: “este dom nasceu comigo, fez-me acreditar e fazer desta a minha profissão».

Apesar dos 32 anos que já leva como amanhador, Manuel Ferreira não teve estudos, mas logo começa a enumerar: “sei as costelas que as pessoas têm: duas em cada lado, sete universais e cinco principais do peito…”, quase como se estivesse a ver um raio x. “Isto nasce com a pessoa e a pessoa imagina quase se estivesse vendo”.

 

 

O senhor Ferreirinha tem os seus segredos e preferências sobre a forma como trata das pessoas: “há muitas maneiras, há muitas diferenças”, explica, acrescentando que umas pessoas têm que ser alinhadas deitadas, outras sentadas, tudo depende da pulsação ou mesmo se a pessoa já teve “uma trombose ou outra coisa”.

“Cada caso é um caso” e, se perceber que a pessoa tem uma situação mais grave, o endireita manda-a logo para o médico, “não amanho, não mexo”, apesar de ficar aborrecido por não poder ajudar.

Às vezes, as pessoas “pedem-me por tudo, mas não posso”, já que vêm à procura desta luz, criando expectativas e fé quando não encontram outra alternativa.

Não há um dia em que Ferreirinha não chegue a casa do trabalho no campo e não encontre pessoas à sua porta. Por vezes, tem mesmo de parar as suas tarefas na agricultura e voltar para casa, devido às várias chamadas que recebe para ir ao encontro das pessoas para as endireitar.

O endireita só não trabalha nos feriados e domingos à tarde, para ir passear. Fora isso, nunca se recusa a tratar nenhuma pessoa, exceto nos casos em que é mesmo impossível tocar-lhes. “Cada caso é um caso” é o que sempre repete quando aparece alguém.

 

 

Apesar de querer apenas fazer o bem, nem sempre as coisas correm pelo melhor. Manuel Ferreira recorda-se de alguns casos mais graves que lhe passaram pelas mãos. Um deles foi há uns anos, quando um homem já de idade veio de Sines (a 35 quilómetros), “com o maxilar desencaixado”. “Tive que desencaixar tudo, o queixo ficou descaído e tive que voltar a encaixar, mas apanhei medo, não quero voltar a fazer isso”.

Tem havido ainda os casos que até acabam por correr bem, mas cujo desfecho final não tem a certeza de antemão. Lembra-se de um dia em que, logo pela manhã, chegou uma criança com um problema no pescoço e sem se conseguir mexer, mas que, em poucos minutos, saiu de lá a sorrir, como se nada tivesse acontecido.

Manuel Ferreira diz não ficar indiferente: “o meu orgulho é ficarem bem”.

Nesse mesmo dia, à tarde, por volta das 15h00, uma doente chega à casa do Ferreirinha e garante: “se a gente não tivesse confiança nele, não vinha cá, não!”.

A dor continua por alguns dias, mas não é motivo para não voltar ao encontro de Manuel Ferreira. Recordando os tempos dos seus pais, a doente diz que, já nessa altura, era alinhada pelo pai de Ferreirinha. Acredita nesta família, “é sempre uma alternativa”.

 

 

Mas a opinião não é unânime. D.Maria José, de 88 anos, que nessa tarde estava num jardim na aldeia de São Luís, conta que nunca foi ao Ferreirinha, nem recorreu a ninguém desta família de amanhadores. “Não acredito, não tenho fé nele, para mim ele é um “calha”, calhou a acertar”, diz.

Mas, para Manuel Feirreira, é a felicidade de poder ajudar as pessoas que o leva a continuar este seu afazer, apesar do tempo que lhe consome.

A atividade de endireita não é propriamente legal. Por isso, Manuel Ferreira recorda quando, antes do 25 de Abril de 1974, o seu pai, hoje já falecido, tinha que exercer o “dom de alinhar às escondidas, porque o que fazia não era bem visto por certas pessoas, principalmente por médicos”.

“O meu pai ia às feiras e ia para sítios mais particulares e as pessoas iam lá ter com ele”, para serem tratadas.

 

 

Recorda igualmente o seu tio, também endireita, que foi proibido, a certa altura, por ordem de tribunal. Mas tudo mudou quando o seu tio amanhou a “filha de um médico”. “Lá deram ordem outra vez para ele continuar com os amanhos“.

O trabalho de Manuel como endireita é conhecido através do “passa palavra”, já que nunca fez “nenhum reclame disto. As pessoas é que vêm ter com a gente, a gente não vai ter com ninguém”.

Puxão a puxão e (quase) tudo se endireita. Sem estudos e com este dom que corre pelas suas mãos e pelos seus dedos, Manuel acredita que é um homem de sorte, até porque hoje já não sente perseguição em relação ao que faz. Garante que, “desde advogados, até doutores juízes, dos médicos até aos filhos deles, têm vindo todos à minha casa” para serem endireitados.

Pessoas para ele ensinar a endireitar também não faltam: há pessoas comuns, mas também enfermeiras, que fazem centenas de quilómetros desde Lisboa até à sua casa, para lhe pedirem que as ensine.

“Se eu pudesse ensinar alguém, estava pronto para ensinar a toda a hora”, salienta. Mas ser endireita não é algo “que se ensine, mas sim que se sente”.

 

 

A maior parte dos endireitas que conhecia já morreram, sendo o Ferreirinha um dos últimos portadores de um saber popular milenar. “Enquanto eu puder, continuo. Quando não puder, vai ser chato”.

Manuel Ferreira ainda não perdeu a esperança de que apareça alguém “com genica para saber mexer. Era bom acontecer e pode acontecer”.

Sempre com um sorriso na cara e pronto a receber alguém, Manuel afirma: “gosto do que faço, e quando as pessoas ficam bem, eu fico bem”.

Manuel Ferreira não se aproveita do seu dom para ganhar dinheiro. Garante que não cobra nada a ninguém, pelo que “a pessoa dá o que quiser”.

Enquanto puder continuar, vai continuando, tentando ajudar qualquer pessoa que apareça: “não estou à espera de ninguém, estou à espera de toda a gente”.

 

Texto e fotos de Carolina Carapeto, realizados no âmbito do curso de Fotografia Profissional 22|24 da ETIC_Algarve, Escola de Tecnologias, Inovação e Criação do Algarve.

 

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