O impacto da transição digital sobre o território

O nosso problema maior não é de instrumentos ou tecnologia, é de compromisso e solidariedade com a economia do bem comum de pessoas e territórios

Sabemos que, numa economia pequena como a nossa, o custo de oportunidade do investimento pode ser mais elevado, mas, neste caso, os investimentos em matéria de infraestruturação digital e tecnológica do território podem reduzir substancialmente esse custo de oportunidade.

Vejamos, muito sinteticamente, como é que a transição digital se projeta sobre a estruturação do território e os seus modos de organização e inteligência coletiva territorial:

– A digitalização dos serviços públicos, da loja do cidadão in situ à loja do cidadão ex situ operada através das aplicações do nosso smartphone; no mesmo sentido, assistiremos a alterações importantes na relação entre o back office e o front office municipal,

– A smartificação das cidades e das redes urbanas, em múltiplos equipamentos e infraestruturas, em diferentes graduações e patamares da cidade inteligente e criativa,
– A polarização da transição digital, através da constituição de polos de inovação e hubs tecnológicos onde se incluem as incubadoras de start up e aceleradoras empresariais,

– A plataformização colaborativa das redes descentralizadas e distribuídas, muitas atividades socioeconómicas vão construir uma nova vida de relação com os seus pares, fornecedores, clientes e utentes em modo de cocriação e cogestão,

– A clusterização de uma área de atividade industrial, por exemplo, o que decorre das agendas mobilizadoras e dos consórcios empresariais do PRR, mas, também, de novas operações de fusão e concentração empresariais,

– A territorialização de um ecossistema digital, como projeto estratégico estruturante, por exemplo, no âmbito do plano de desenvolvimento de uma CIM ou rede urbana,

– A programação dos geossistemas de base territorial através dos sistemas de informação geográfica, por exemplo, o ordenamento do sistema-paisagem e a gestão do mosaico paisagístico, o mix energético, a rede de economia circular, o mapeamento de fileiras e cadeias locais e regionais,

– A transformação da arquitetura do espaço público urbano e das relações cidade-campo, por exemplo, em matéria de sistema inteligente de mobilidade urbana, construção modular e gestão de infraestruturas, corredores verdes e parque agroecológico urbano,

– A gestão do ordenamento do território e da paisagem global no subsistema crítico agroflorestal, por exemplo, nas zonas de intervenção florestal, nas áreas integradas de gestão paisagística, nos condomínios de aldeia, na silvicultura preventiva, como aplicação da georreferenciação e dos sistemas de informação geográfica (SIG),

– A implementação de redes regionais de educação, formação e extensão (agrupamentos escolares), ensino técnico-profissional e ensino superior que considerem o património e a paisagem, as ciências e as tecnologias, as artes e a cultura, como os ativos essenciais de uma política reformista para a escola em geral e a universidade em particular.

Aqui chegados, só teremos uma ocupação equilibrada e harmoniosa do território se tivermos intérpretes genuínos para a inteligência coletiva territorial, ou seja, atores-rede capacitados para administrarem as várias plataformas colaborativas e os seus dispositivos tecnológicos e digitais mais diferenciados.

Eis alguns desses incumbentes principais que precisam urgentemente de ver a luz do dia:

– As uniões de freguesias e as redes comunitárias de serviços ambulatórios junto dos grupos de população mais vulneráveis; a tecnologia digital pode favorecer esta mobilidade e proximidade,

– As zonas de intervenção florestal (ZIF), as áreas integradas de gestão da paisagem (AIGP), os condomínios de aldeia (CA), precisam de estar no terreno para realizar com eficácia a gestão do risco de incêndio, o ordenamento e a gestão florestal,

– As áreas de paisagem protegida, os parques naturais, os geoparques, as zonas termais, precisam de estar no terreno através de clubes de produtores e associações de defesa do património para realizar o ordenamento e a gestão efetiva do património natural e a sua visitação turística ordenada,

– Os centros de investigação, os laboratórios associados e colaborativos, precisam de estar no terreno em plataformas colaborativas com o apoio de jovens estagiários de investigação e estudantes de pós-graduação em projetos de investigação e desenvolvimento que tenham pontos de apoio em projetos empresariais,

– As zonas industriais, os parques empresariais e os núcleos empresariais, precisam de estar no terreno para realizar a gestão coletiva de bens e serviços comuns, em especial, os novos projetos de sustentabilidade em matéria de gestão de resíduos e economia circular,

– As associações empresariais, as escolas profissionais, os institutos politécnicos e as universidades, precisam de constituir plataformas colaborativas de cooperação e extensão empresarial de apoio ao reagrupamento e recapitalização de PME e explorações agrícolas,

– Os consórcios empresariais formados no âmbito das agendas mobilizadoras do PRR, compostos por várias entidades públicas e privadas, são uma oportunidade única para a realização efetiva dos programas contidos no PRR, sobretudo os de índole industrial,

– Os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT), euro-cidades e euro-regiões, precisam de estar no terreno, formar plataformas colaborativas e realizar efetivamente a cooperação transfronteiriça que está inscrita nos seus programas,

– As redes de vilas e cidades, as comunidades intermunicipais (CIM) e as regiões-cidade, precisam de estar no terreno e praticar formulas mais ousadas de federalismo intermunicipal, utilizando, para o efeito, as plataformas digitais das cidades e regiões inteligentes e criativas.

Nota Final

Como facilmente se observa, sem estes incumbentes principais e sem o talento que é necessário para administrar a inteligência coletiva territorial, torna-se muito difícil realizar efetivamente as infraestruturas, os equipamentos, as plataformas, as comunidades inteligentes, os atores-rede e as equipas que são imprescindíveis à transição digital.

Ou seja, se não construirmos com zelo e competência as nossas redes e plataformas made in, à medida das nossas necessidades, recursos e objetivos, vamos ficar nas mãos do grande negócio digital operado pelos intermediários dos gigantes tecnológicos que lidam connosco como meros utilizadores e consumidores finais dos seus produtos e serviços e sempre à mercê das novidades de última moda.

Fica o aviso, o nosso problema maior não é de instrumentos ou tecnologia, é de compromisso e solidariedade com a economia do bem comum de pessoas e territórios.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

 

Leia mais um pouco!
 
Uma região forte precisa de uma imprensa forte e, nos dias que correm, a imprensa depende dos seus leitores. Disponibilizamos todos os conteúdos do Sul Infomação gratuitamente, porque acreditamos que não é com barreiras que se aproxima o público do jornalismo responsável e de qualidade. Por isso, o seu contributo é essencial.  
Contribua aqui!

 



Comentários

pub