Cardiologia no Algarve: A involução progressiva dos cuidados! Uma verdadeira emergência!

Cardiologia no Algarve: A involução progressiva dos cuidados! Identificar as causas e avançar para as soluções necessárias! Uma verdadeira emergência!

Estou a escrever este artigo numa posição privilegiada, pois sou residente no Algarve, sou cardiologista, trabalhei no CHUA no serviço de cardiologia desde 2006 a 2021, estando atualmente a colaborar com outro hospital do SNS (Hospital do Espírito Santo em Évora), o que me permite ter uma análise adequada dos problemas e propor soluções para um problema muito grave e que requer atuação, não apenas urgente, mas emergente!

O que era a cardiologia no Algarve na primeira década deste século?

A cardiologia no Algarve era conhecida por ser um dos serviços mais diferenciados e com melhor funcionamento no Hospital de Faro, com uma Via Verde Coronária que o colocava no topo dos indicadores a nível nacional e europeu da prestação de cuidados aos doentes que sofriam enfarte agudo do miocárdio na região. Para além disso, dava uma resposta diferenciada e respondia às necessidades da população, tendo durante essa década progredido no nível de cuidados que prestava à população.

Todos sabiam que existia uma grande assimetria de cuidados de cardiologia na região entre o Hospital de Faro e de Portimão. Contudo, foram sendo encontradas as soluções para que o nível de cuidados chegasse a toda a população da região.

O ambiente no serviço de cardiologia era muito bom e foi-se reforçando, com um espírito de equipa tal que era uma das áreas do hospital onde, por exemplo, os enfermeiros competiam para ter um lugar. Existia um enorme orgulho de todos os profissionais no que estavam a realizar e todos estavam a trabalhar para o bem da população e a resolver os seus problemas.

Como estamos na atualidade?

Atualmente, a cardiologia do Algarve possui um número de profissionais médicos incapaz de dar resposta às necessidades, com listas de espera a crescer a cada dia que passa, apesar de estarem todos a dar o máximo e um pouco mais daquilo que será humanamente aceitável. Existe um nível de exaustão, desalento e muitas vezes desespero na equipa que atingiu nos últimos dois anos o seu expoente máximo e será insustentável ser mantido.

Ao nível dos restantes profissionais passa-se o mesmo: assistimos nos últimos dois anos a uma debandada de enfermeiros do serviço de cardiologia, a equipas completamente exaustas, a rácios de doente por profissional muito acima do aceitável, parecer dado recentemente pela ordem dos enfermeiros. Estes profissionais estão a dar tudo o que podem e um pouco mais, contudo estão completamente exaustos e desmotivados.

Se continuarmos para a classe dos técnicos de cardiopneumologia, secretariado e assistentes operacionais, assistimos ao mesmo.

Estamos numa situação de necessidade de intervenção emergente para evitar que exista uma rotura na capacidade de prestar os cuidados urgentes de cardiologia à população, já não digo os restantes que também são necessários, pois aí já ultrapassamos a rotura do sistema.

Será assim em todo o SNS?

A situação não é a mesma, tanto que existem serviços de cardiologia que estão no caminho inverso. Poderei dar vários exemplos, mas o mais paradigmático será um serviço de cardiologia que sempre teve dificuldades, não fosse um serviço de um hospital no interior do país e do Alentejo, como é o caso do Hospital do Espírito Santo, em Évora.

Nesse hospital também os profissionais são escassos, mas o mesmo espírito que existia há duas décadas no Algarve existe nas suas equipas.

Apesar dos problemas têm conseguido dar resposta à população, estão a aumentar a sua capacidade e diferenciação, não possuem lista de espera na consulta de cardiologia desde há uns meses, possuem capacidade para ecocardiografia diferenciada, cuidados intensivos coronários, AngioTAc cardiaca e coronária, RM cardiaca, Hemodinâmica e eletrofisiologia de intervenção, implantação percutânea de válvulas aórticas, realizam inclusive algumas cirurgias cardíacas.

Não estamos a falar de um hospital em Lisboa, onde tudo se consegue com a maior facilidade, estamos a falar de um hospital do interior que há umas décadas atrás não tinha hemodinâmica que já existia no Algarve.

O que se passou na Cardiologia do Algarve?

A degradação dos cuidados de saúde da área de cardiologia ocorreu sobretudo nos últimos anos, com agravamentos nos últimos três anos, dadas as atitudes tomadas por quem dirige a instituição.

Assistimos a uma debandada de cardiologistas, por motivos variados, mas sobretudo por ausência de condições para aplicarem o nível de diferenciação que possuem, associado a uma sobrecarga sobre humana de trabalho. Em qualquer outro hospital do SNS possuem uma sobrecarga menor, um tratamento mais adequado e com maior respeito por quem os dirige e maior possibilidade de se dedicarem às áreas em que se diferenciaram.

Vamos dar alguns exemplos de ocorrências para se verificar o que não pode acontecer de futuro: tivemos colegas que abandonaram o hospital pois não foi efetuado o investimento no upgrade do equipamento de ressonância magnética do hospital, que estaria pago em cerca de um ano, dado os exames estarem a ser realizados e pagos ao setor privado.

Tivemos colegas que se foram embora porque o hospital não adquiriu um equipamento de AngioTAC para realizar TAC cardíaca e coronária, conforme estava planeado. Resultado foi que agora estão no privado a realizar os exames que são pagos pelo hospital público.

Tivemos a mesma situação na ecocardiografia, sendo adquiridos só muito tardiamente equipamentos com a tecnologia que existia noutros hospitais.

Tivemos recentemente tomadas de posição de quem dirige o hospital que foram, desrespeitosas para os profissionais da cardiologia e prepotentes, com “berros” e “gritos” no serviço de cardiologia, tentando impor à força mudanças que segundo os profissionais colocam em causa a segurança dos doentes que lá são tratados.

Tivemos a degradação completa do bem estar que tinham no trabalho da equipa de enfermagem, com medidas impostas claramente sem qualquer sentido e com uma prepotência e imposição nunca assistida até agora. Resultado foi a debandada dos enfermeiros mais experientes do serviço e na atualidade os enfermeiros não querem ir para o serviço de cardiologia trabalhar… Que mudança!!

Tivemos situações nos últimos dois anos, com a administração a ordenar um segurança a ir ao Serviço de Cardiologia acabar com a considerada “festa” que estava a decorrer.

Inacreditável, quando o que estava a ocorrer era uma formação diferenciada de cardiologistas de hemodinâmica de outros hospitais do país, que estavam a aprender a realizar uma técnica diferenciada com a equipa de Faro. Estavam apenas numa reunião entre casos a comer uma sandes para continuarem de seguida! Ainda há pouco tempo um colega de hemodinâmica de outro hospital me comentou que não sabia como era possível ocorrer o que assistiu em Faro!

Estes exemplos mostram bem que temos problemas de vários tipos e os que levaram ao maior impacto negativo não custam dinheiro, trata-se de saber estar, respeitar as pessoas e os profissionais, saber liderar em vez de se impor.

Quais as soluções e para quando?

Serão necessárias várias medidas que visem a captação e fixação dos profissionais, melhoria das condições de prestação de cuidados, diminuição da atual sobrecarga dos profissionais e um aumento de capacidade do serviço.

Algumas das soluções já foram anunciadas, esperando-se a curto prazo estejam implementadas, existem no entanto medidas que são essenciais:

1. A mudança dos dirigentes hospitalares já foi anunciada como essencial, pelo diretor executivo do SNS e as palavras do Sr. Ministro da Saúde recentemente na inauguração do centro de simulação da Faculdade de Medicina da Universidade do Algarve, que estará para breve essa mudança também nos dirigentes do Algarve. Espera-se que os novos dirigentes possuam a atitude adequada com os profissionais do hospital, com capacidade de os respeitarem e de os envolverem nas soluções.

2. O equipamento de AngioTAC tem o seu concurso já lançado pelo CHUA como parte dos projetos ptCRIN e ptCAC que o centro académico ABC conseguiu obter, obtendo-se fundos europeus para suportar a sua aquisição;

3. O equipamento de RM magnética também está em processo de aquisição pelo centro académico ABC, com capacidade para RM cardíaca e todas as diferenciações necessárias;

4. No mesmo concurso o ABC procedeu há aquisição de equipamentos de ecografia cardíaca diferenciada para formação e investigação que existindo um repor da aposta da nova administração hospitalar no caráter universitário do Hospital, estarão à disposição do serviço de cardiologia;

5. É urgente aumentar o número de enfermeiros e cumprir os ratios mínimos definidos legalmente para a prestação segura de cuidados de saúde no serviço de cardiologia e na unidade de cuidados intensivos coronários;

6. É urgente a construção de uma nova sala de hemodinâmica e cardiologia de intervenção, a existente é completamente impossível que consiga dar a resposta adequada à população;

7. É urgente que a administração consiga motivar os profissionais e contratualizar, internalizando, a realização de procedimentos que podem ser internalizados nas estruturas do SNS. Esta situação não avançou no Algarve, saiba-se lá porquê, mas talvez um dia quem dirige as instituições devesse dar explicações sobre porque é que soluções que estão em prática noutros hospitais e, foram propostas pelos profissionais no Algarve, nunca foram implementadas;

8. É necessária a cerificação de qualidade do serviço de cardiologia, tornando a ser um serviço de formação de alunos de medicina e com capacidade para se constituir como Centro de Referência nalgumas áreas nacionais;

9. É essencial que o novo diretor de serviço, a quem aproveito para dar os parabéns pelo cargo, possua um plano de desenvolvimento que envolva todos os grupos de profissionais, que seja discutido e complementado com os seus contributos e que possua os meios por parte da administração para o poder implementar. Saliento que considero urgente reduzir a sobrecarga atual dos profissionais para evitar o colapso completo dos cuidados de cardiologia e tornar o serviço atrativo.

Ainda há esperança!

Refiro ainda que tenho muita esperança que estas e outras medidas sejam implementadas e a área da cardiologia no Algarve se torne novamente numa área de referência, ocupando o seu devido e merecido lugar na cardiologia nacional. Os algarvios necessitam dessa mudança urgente e que sejam afastados todos os obstáculos de imediato para a sua concretização.

O meu grande reconhecimento para todos os profissionais da cardiologia do Algarve que heroicamente têm resistido a toda esta sobrecarga, continuando a dar o seu máximo e um pouco mais para ajudar o máximo de algarvios e visitantes da região. Muito, muito, muito obrigado a todos!! Posso dizer que aprendi muito convosco e sobretudo tive prazer em trabalhar ao vosso lado, sei o que valem, o que são e como têm sofrido ultimamente!

Os algarvios e, quem visita o Algarve, merecem os melhores cuidados de saúde cardiológicos! Acreditemos todos que ocorrerão as mudanças necessárias e que esta fase que se atravessa será daqui a uns anos apenas uma fase negra da história da cardiologia no Algarve.

É necessária uma atuação emergente para salvar a cardiologia e assim salvar muitas vidas no Algarve. Acreditemos que os atuais líderes nacionais vão olhar também na área cardiológica para a região!!

Agradeço desde já a esperança que foi deixada pelo Sr. Ministro da Saúde e pelo Sr. Diretor executivo do SNS, que certamente passarão agora para a ação!

 

Autor: Nuno Marques é médico cardiologista e Professor Associado da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve

 

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