Perguntas de um turista

Viajar é um ato, do meu ponto de vista, profundamente transformador

A visita estava no fim. Acabava de sair de um dos pavilhões das mulheres, em Birkenau. A luz do dia era já escassa, porque no Inverno, para além do céu cinza chumbo, que é permanentemente presságio de neve (e é perfeitamente descrito por Primo Levi), o sol esconde-se cedo. A escuridão parecia agudizar-se, depois de longas horas percorrendo os cenários de uma – senão da maior – tragédia humana, arquitetada e gerida por homens.

Caminhava atrás da guia, em silêncio. Junto dela, um casal de turistas quer conversar (mais ele, que ela) e não consigo deixar de os ouvir, pois são efetivamente os únicos do grupo que falam. – «Sabe, a minha mulher tinha muita curiosidade e vontade de vir aqui, porque viu muitos filmes sobre o tema». Ok, menos mal. Um filme é uma excelente forma de despertar o nosso interesse, de aprender, ou de buscar conhecimento sobre algo. Fiquei alerta e pareceu-me que estava perante alguém que se tinha preparado para a sua visita, que ia levar dali algo importante para a sua vida e para a história daquela viagem em particular. – «Mas tenho de lhe fazer uma pergunta, porque não percebi bem a sua explicação: afinal, quem ganhou a II Guerra Mundial?»

Instantaneamente e sem conseguir que a minha atitude fosse outra, olhei para a guia, uma mulher polaca, na casa dos quarenta anos, que, como quase todos os que fui conhecendo, era educada, mas distante e formal e, ao longo de todo o percurso feito, tinha dado muitas notas sobre a guerra, sobre os intervenientes na guerra, sobre o desfecho da guerra, até porque, é a guerra que motiva a existência deste lugar de morte e é o seu fim que permite que o mundo o conheça. Um fim que, foi-nos explicado, implicou a chegada da Rússia e a progressão dos países aliados na libertação de toda a Europa. Percebi que a sua expressão se alterou.

Ficou perplexa e houve um brevíssimo segundo de silêncio, impercetível para o casal de turistas, mas absolutamente significante para mim. Ela respondeu-lhes, no mesmo tom de voz de antes. Eu é que já não fui capaz de ouvir a resposta. Avancei e fui procurar o autocarro que me levaria de volta ao ponto de partida, para poder seguir viagem.

Este momento seria insignificante, se não me apontasse numa direção que me parece que devo tomar, enquanto estudante, investigadora e trabalhando, precisamente, sobre as questões do turismo e da comunicação e que implica um questionamento profundo: o que nos leva a viajar e como nos preparamos para descobrir o lugar que será o nosso destino? O que fazemos durante as nossas viagens (o que vemos, com quem falamos, o que comemos, o que nos interessa)? O que guardamos e contamos desses momentos e desses encontros? Viajar não será, nunca, um simples «coleccionar lugares» (1)…

Viajar é um ato, do meu ponto de vista (e de outros mil autores, que escreveram sobre o tema, como Heródoto, Marco Polo, Darwin, Saramago e tantos mais), profundamente transformador, se o encararmos, efetivamente, como um tempo especial, um tempo em que a nossa disponibilidade e atenção se focam na capacidade, não de olhar, mas de ver.

Ou seja, na nossa disponibilidade para perceber tudo o que nos rodeia e consequente capacidade de interpretação (de diferentes tipologias de sinais, que podem ter uma relação direta com a história, a língua, os costumes e tradições daqueles que vamos encontrar); mas também do nosso desejo de estabelecer uma relação com todos os que partilharão esse processo complexo que é uma viagem (Organizações de Gestão de Destinos, anfitriões, agentes de turismo, meios de comunicação, etc.).

Nessa relação comunicacional, nesse diálogo intercultural (de que fala a Organização Mundial do Turismo), nessa formação, para mim, profundamente implícita no preparar, experimentar e contar, que é o processo pelo qual passa o viajante, está a qualidade da viagem. E a competência do turista. Aquilo que denomino como Literacia Turística.

Diz Santiago Tejedor (especialista em jornalismo de viagens), a propósito da viagem: «Viajamos a lugares, pero también viajamos al outro» (2).

Regresso a Birkenau. Na viagem curta de autocarro, não consigo deixar de pensar naquele casal e nas reais razões que os levaram ali. Mais, ainda, naquilo que vão contar sobre o que viram. Que dirão sobre Auschwitz e a II Guerra Mundial? Adorava saber, ao mesmo tempo que continuo envolta numa tristeza dupla: a que é impossível não sentir diante da monstruosidade que se viveu neste lugar; e a que me faz duvidar de que todos os que fizeram a visita, vindos de tantos sítios do mundo, consigam, realmente, compreender o que viram, porque não encaram a viagem como esse Ethos assente na descoberta e compreensão, no respeito e encontro, na comunicação e aprendizagem. Antes, durante e depois.

E assim fico, entre as perguntas de um turista. Não as que me surpreenderam, mas as minhas próprias, que serão eternas e assim o desejo.

 

1. Tejedor, S. (2021). Manual para la Creación de Guías de Viajes. Cómo contar el mundo en la era Covid-19. Barcelona: Ed. UOC, pág. 28.
2. «Viajamos a lugares, mas também viajamos em direção ao outro» (Trad. Livre. Idem, págs.- 25-26).

 

Autora: Sandra Côrtes Moreira é licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática pela Universidad de Huelva.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral do Turismo e da ONPT.

 

 

Leia mais um pouco!
 
Uma região forte precisa de uma imprensa forte e, nos dias que correm, a imprensa depende dos seus leitores. Disponibilizamos todos os conteúdos do Sul Infomação gratuitamente, porque acreditamos que não é com barreiras que se aproxima o público do jornalismo responsável e de qualidade. Por isso, o seu contributo é essencial.  
Contribua aqui!

 



Comentários

pub