Voltou a ouvir-se o «Chui!» no cais de Portimão

Meia centenas de voluntários recriou a azáfama da lota antiga da sardinha, numa atividade do Museu de Portimão

«Trê mil, dois novencentes, dois oitecentes, dois setecentes, dois seicentes, dois quinhentes», desfiava o vendedor da lota, a grande velocidade, atrapalhando as palavras numa lengalenga quase ininteligível. «Chui!», gritou um comprador. E imediatamente a ladaínha parou e o vendedor anunciou: «’Tá vendide, dois mil e quinhentes escudes ao Senhor Xavier, dois contes e quinhentes!». Os outros compradores, que estavam de olho na sardinha, mas esperavam que o preço baixasse, logo reclamaram, uns com os outros e todos com o homem da venda: «são sempre os mesmes a comprar!».

A cena podia ter-se passado há 50 anos, à beira da traineira «Arrifana» acabada de chegar do mar, na lota da sardinha no cais de Portimão, junto à ponte que então ainda não era conhecida como «velha», porque não havia outra. Mas, na realidade, a cena aconteceu esta terça-feira, 2 de Agosto, na recriação da descarga tradicional da sardinha, que o Museu de Portimão voltou a promover, para abrir o apetite para o Festival da Sardinha, que começa amanhã, na zona ribeirinha da cidade.

Ana Patrícia Ramos, antropóloga do Museu de Portimão, explicou aos jornalistas que «não estamos a recriar uma época específica, isto não é uma recriação histórica, é uma recriação de memórias. Foi um trabalho muito feito com a comunidade, com as pessoas que pertenceram a esta realidade e que nos contaram as suas memórias».

A cerca de meia centena de figurantes incluiu desde funcionários e técnicos do Museu, passando por trabalhadores de outros serviços da Câmara, como a Biblioteca Municipal, a membros de diversas associações de Portimão e ainda crianças, algumas delas habituadas à sua praia privada, que é o cais junto ao Museu, ótimo para bons mergulhos no rio.

Havia ali, perante o olhar de centenas de pessoas que assistiram no local a esta animada recriação, «personagens que faziam parte do ambiente da lota da sardinha em Portimão», como explicou Ana Patrícia Ramos.

E que personagens eram essas» Eram «o vendedor da lota, o fiscal, até ao barco que chega com o peixe a bordo, o terno, que eram os homens que descarregavam o peixe, com o lançador da canastra cá para cima até quem apanhava, gelava o peixe, quem transportava as caixas de peixe até aos transportes» nos camiões, carrinhas de caixa aberta, motorizadas ou triciclo motorizado.

Havia depois «as crianças que deambulavam pela lota, muitas delas faltando à escola para vir para cá para poderem começar nesta vida e levarem alguma coisa de comer para casa, numa altura em que a vida não era fácil. Crianças a deambularem, a darem mergulhos no rio, a roubarem uma sardinha ou outra».

Houve ainda «uma referência a uma memória mais antiga, que eram as mulheres que, em tempos, antes do gelo, salgavam aqui o peixe que depois seguia para outros destinos».

E os «compradores da lota, quer para as fábricas de conservas, quer para transportar para outros pontos da região e do país», com os bolsos das camisas cheias de notas de conto.

Havia também «algumas compras paralelas, nomeadamente o peixe da companha, que há-de vir a partir da traineira numa chata e que há-de ser vendido ali nas escadas, como era, numa venda paralela, que não passava pela parte mais oficial. Esse peixe era vendido a compradores secundários que andavam para aqui», nomeadamente aos «arreeiros que iam vender ao campo».

Porque, sem época específica, o que ali se recriou remete para os anos 70 do século passado, também por ali apareceu «uma turista ou outra», uma «camóne» a falar coisas que ninguém, então, entendia.

Em resumo, segundo Ana Patrícia Ramos: «vamos compondo o ambiente que era, ao fim e ao cabo, a azáfama toda que caracterizava esta lota e que atraía aqui muita gente».

Tudo isso mudou quando a lota transitou para o novo porto de pesca, na outra margem do Arade, no final dos anos 80, em 1987. «O leilão à boca passou a ser eletrónico. E a descarga deixou de acontecer a braços, como se fazia aqui, hoje em dia é feita através de gruas hidráulicas. Já não se tira o peixe, à canastra, do porão, hoje tira-se numas dornas. Tudo isso revela as transformações da pesca de cerco».

No meio de uma recriação levada muito a sério pela meia centena de atores, houve discussões entre compradores, mergulhos dos miúdos no rio, roubos de sardinha, esmolas para a mendiga orgulhosa, que não quis aceitar o tostão, histórias de faca e alguidar contadas pelas mulheres, viúvas, com o marido morto no mar, mães de seis filhos, com as mãos gretadas de salgar o peixe, canções entoadas em coro, fumo e barulho da motorizada do arreeiro a caminho do campo para vender a sua caixinha de sardinhitas.

 

 

 



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