Olhar sem ver (ou como a “Tourism Literacy” faz falta)

Que processo é este, em que, aparentemente, os sujeitos procuram viajar, procuram as atrações turísticas não para entender verdadeiramente o que os rodeia, mas para se eternizarem naquilo a que o Papa Bento XVI chamou o “continente digital”?

Estou, como alguns saberão, a fazer o doutoramento e, por essa razão, estive há poucos dias em Barcelona, onde realizei um período de permanência na Universidade Autónoma (UAB).

Durante esses dias e no tempo livre que fui tendo e que procurei rentabilizar ao máximo (porque, confesso, o investimento de quem estuda é significativo), andei pela cidade.

Desde o cafezinho de bairro, numa zona habitacional onde abundavam, está claro, estudantes e idosos, ali mesmo ao lado do local onde fiquei alojada, até ao Paseo de Gracia/Passeig de Gràcia, a avenida mais luxuosa de Barcelona, uma das muitas projetadas por Cerdá; desde o Mercat la Boqueria e o Mercat Sant Antoni até à Barceloneta, onde os barcos de pesca e a comunidade piscatória local vivem, mantendo algumas das suas mais antigas tradições e o verdadeiro sentido de grupo; até mesmo desde o estádio do Barça, pelo qual passei, à Fira Internacional, na qual estava montado o maior centro de vacinação COVID-19 que já vi; por todos passei e procurei, como já disse, usufruir o mais que pude das horas de fim de dia, depois de, bem cedo e como qualquer estudante que comigo fazia o percurso, apanhar o metro ou o autocarro e a seguir, o comboio, para fazer os cerca de 20 quilómetros que me separavam do meu local de permanência até à UAB e regressar, ao fim do dia de trabalho.

Na verdade, sendo estrangeira e tendo um tempo de permanência curto, considerei-me um pouco “turista” e o que procurei, antes de lá chegar, foi inteirar-me de tudo sobre a cidade: história, monumentos, locais de interesse cultural e beleza natural, geografia, transportes, gastronomia, etc.. Fiz um pré-roteiro mental dos lugares onde gostaria e poderia ir e, chegando, tentei adequar as minhas necessidades de ocupação de tempo com o estudo, com as possibilidades financeiras que tinha para, assim, poder conhecer o espaço onde estava e as pessoas que nele habitam.

Andei pelas ruas somente para olhar. Para perceber o que ali é quotidiano e natural. Para descobrir como se fala e o que se diz. Para encontrar o sentido de viver nesta grande metrópole.

A minha preocupação foi precisamente essa: olhar e compreender o melhor que eu pudesse todas as circunstâncias que são visíveis nesta cidade e revelam as marcas do seu crescimento e são sinal do modo de ser e de viver dos barceloneses, catalães, fortes e convictos, trabalhadores e lutadores.

E, todavia, de repente, dou comigo rodeada de pessoas, cuja preocupação era tudo menos procurar esse espaço interior onde se guarda, como dizem os espanhóis, a nossa própria “mirada”, o nosso sentido mais profundo de ver.

 

Sobretudo nas grandes atrações turísticas da cidade – as projetadas por Antoni Gaudi, o famoso arquiteto modernista -, como a Sagrada Família, as Casas Batlló e Pedreira, o Parque Güell, grupos significativos de turistas (que me disseram ser bem menores que antes da pandemia) disputavam lugares para tirar fotos, fazendo poses, caras e bocas, irritando-se por não conseguirem o tempo que desejavam e repetindo infinitamente gestos que, de acordo com a sua opinião, os transformariam, por certo, nos melhores modelos em pose do mundo e arredores!

Saltinhos, para ficar com uma foto em movimento, abrir de braços, para tocar pontos que geram ilusões óticas muito criativas, meneares de cabeça e trocar de pernas para apanhar todos os ângulos possíveis.

Recordo uma mãe e filha (adolescente): a mãe tirou dezenas de fotos e a jovem, sempre insatisfeita depois de olhar para o ecrã do telemóvel, voltava ao mesmo lugar, para ensaiar novas acrobacias, que, certamente, acabaram por a deixar satisfeita, pois partiram e deixaram o lugar para outros, igualmente desejosos de se ver retratados num espaço famoso.

 

Toda a gente de telemóvel na mão, batalhando por um cantinho junto de um ponto de interesse, acabando, logo de seguida, por fazer posts e mais posts, nas muitas redes sociais que estão à distancia de um clique. Basta irem, por exemplo, ao Instagram e procurarem #barcelona e vão encontrar muitos dos exemplos que acabo de mencionar

Dei por mim a estudar, também no tempo livre: um catalão famoso, Manuel Castells, disse nas suas obras de análise sociológica, que vivemos conectados, num mundo em rede, onde o tempo deixou de ser sequencial, porque é atemporal e onde o espaço já não é somente físico, mas de fluxos de dados e de informação.

Zygmunt Bauman, outro sociólogo famoso, mas polaco, teorizou sobre a “modernidade líquida”, uma sociedade onde tudo está em movimento e os indivíduos são moldados pela inconstância, pelo consumismo e pelas suas vivências, precisando de uma fluidez constante, que os leve ao ponto seguinte, e ao outro, e ao outro…

Tudo isto estava ali, à porta das atrações mais importantes de Barcelona. E depois veio a pergunta interior: estarão a ver, ou a ver-se?… Parecem olhar sem ver…

Que processo é este, em que, aparentemente, os sujeitos procuram viajar, procuram as atrações turísticas, procuram sair do seu próprio país/espaço físico, não para entender verdadeiramente o que os rodeia, mas para se eternizarem naquilo a que o Papa Bento XVI chamou o “continente digital”? Que compreensão terão deste novo ecossistema, ambiente, no qual querem insistentemente ser vistos? E por que razão querem ser vistos e, ao que parece, não olham?

Este é um dos pontos que investigo: que competências tem (ou deve ter) um turista/viajante, que o levem a descobrir, profunda e realmente, o lugar e as pessoas que vai conhecer na sua viagem? É um processo que envolve comunicação e turismo, mas que também está profundamente relacionado com o modo como ensinamos e aprendemos.

Precisamos, do meu ponto de vista, de uma literacia específica, que nos permita compreender todos estes processos e comportamentos e que nos revele o que verdadeiramente deve ser a atitude do turista. Estamos em demanda e em estudo sobre o que será a “Tourism Literacy”, cujas dimensões e nuances poderão ser úteis a quem trabalha na comunicação e no turismo, no jornalismo de viagens, em vários campos.

No meu regresso, trouxe um retrato, que faz parte da minha biblioteca pessoal de conhecimentos e que, por certo, se irá transformando noutras permanências que terei de realizar.

Mas trouxe todas estas dúvidas e questões, que agora me ajudam a refletir e a estudar, atividades que, a par da comunicação, são na verdade a minha paixão maior.

E Barcelona já não é igual à imagem que dela levei. E quando lá voltar, voltarei a construir uma nova representação.

 

Autora: Sandra Côrtes Moreira é licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática pela Universidad de Huelva.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral do Turismo e da ONPT.

 

 



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