No Algarve, «ainda é o polvo quem mais ordena»

Dizem os pescadores de Santa Luzia, em Tavira, numa referência a Zeca Afonso

Foto: Rúben Bento | Sul Informação

Pescadores em terra, sinal de que não houve pesca. A chuva não parou de cair durante a noite, em Santa Luzia (Tavira), os barcos não saíram do porto e, os poucos homens que ainda fazem do mar vida, preparam agora aqueles que esperam vir a ser melhores dias para a captura do polvo.

Impedido de sair para o mar durante os últimos dias de Dezembro, Joaquim Oliveira, de 56 anos, passa estes momentos de vendaval na sua «casa do mar» a preparar «as melhores oportunidades que aí virão».

Começou a pescar em 1989, pois «não fui moço de escola, porque não gostava» e, até hoje, «tenho pescado todos os dias que o tempo deixa», conta o pescador ao Sul Informação, enquanto admira o horizonte com um olhar triste.

Influenciado pela família, em que «todos eram pescadores», acabou por ceder às circunstâncias da vida e, «como gostava mais de ir para alto mar do que estar na escola, aventurei-me».

Com o passar dos anos, Joaquim ainda faz vida do mar, mas, «mais um ano ou dois, pego nas minhas coisinhas e reformo-me».

«Ser pescador é um trabalho muito duro, mas quando fazemos por paixão, tudo se torna mais fácil», exclama.

Ao fundo, vindo de uma das casas dos pescadores, um pequeno rádio ecoa a “Canção do Mar”, mas a voz de Dulce Pontes é abafada e torna-se impercetível com as gargalhadas que se fazem ouvir.

 

Alguns barcos ficaram no porto – Foto: Rúben Bento | Sul Informação

 

Depois de tudo preparado para os próximos dias, que se esperam melhores, há espaço para a convivência entre os homens do mar. Entre anedotas e conversas, recordam-se outros tempos, «talvez mais fáceis».

«Antigamente, trabalhávamos com os alcatruzes de barro, depois inventaram uns que são de plástico e, agora mais recentemente, vieram os covos como este», explica Joaquim, enquanto aponta para uma destas armadilhas que está a acabar de ser feita ali bem perto.

É Fernando Baptista, nos seus «quase 80 anos», que está dedicado a terminar mais uma das suas «obras de arte». Pescador reformado há 12 anos, ocupa agora os seus dias a construir covos para «ajudar os amigos do mar» e colabora «naquilo que consigo e que me pedem».

Entre as várias artes utilizadas na pesca, Fernando explica, através de um exemplar, que o covo destaca-se por ser uma «armadilha, feita com rede de plástico e ferro», que tem «um lugar para a entrada do polvo» e «uma bolsa que serve para colocar o isco».

Serve para «a pesca de polvo, mas também de peixes, crustáceos e moluscos» e, quando são lançados ao mar, «estão presos a um cabo com bastantes metros», que depois é «recolhido pelos pescadores».

Apesar da idade já ser avançada, Fernando sabe bem que «estas armadilhas são a maior asneira que fizeram», pois o mar «está todo poluído», lamentando que «os pescadores não olhem a isso».

«O ferro ainda apodrece, mas as redes, feitas de petróleo, devem levar centenas ou milhares de anos até se desfazerem», realça.

Enquanto dá a sua opinião sobre esta arte de pesca, está terminado mais um covo que, dali a dias, «irá trabalhar» para o mar. «Agora só falta meter o isco, que normalmente é cavala ou sardinha, e está pronto para apanhar aqui uns belos polvos», graceja o já reformado pescador.

Os «velhos tempos» são, mais uma vez, trazidos para a conversa. A falta de pescadores, essencialmente dos mais jovens, é notada pelos demais.

«Antigamente, os barcos estavam cheios de moços, seis a sete em cada um. Agora já quase não encontramos pescadores mais jovens e não há ninguém para substituir aqueles que se vão reformando», realça Fernando.

 

Fernando Baptista, pescador reformado – Foto: Rúben Bento | Sul Informação

 

Entretanto, José Maria Mestre, mais conhecido entre a comunidade piscatória como o armador Zé Maria, junta-se à conversa, pois afirma que «o assunto interessa-me bastante».

O armador sublinha que «há falta de pescadores novos em Santa Luzia e em todo o país», contando que, «por vezes, vem rapaziada nova durante dois ou três dias, mas, como não têm experiência e não querem ir para a escola para se formarem, não tiram a cédula marítima – necessária aos pescadores – e acabam por desistir».

Já no seu caso, esta profissão «está-me no sangue», pois «os meus bisavôs e avôs já o eram», mas admite que «tem de se gostar de ser pescador ou então não vale a pena andar ao mar só com a ideia de ganhar dinheiro. Se não gostar do mar, um homem destes nunca chegará a lado nenhum», garante.

Noutros assuntos, agora como vice-presidente da Associação de Armadores e Pescadores de Tavira, Zé Maria afirma-se defensor de «um defeso para a pesca de polvo», mas receia que esta medida «venha fazer com que os pescadores sintam dificuldades».

«Todas as associações têm pedido o defeso, mas, se a duração for de dois meses, claro que qualquer pescador irá sentir dificuldades. Filhos a estudar na universidade, casas e carros para pagar e nós temos que receber para fazer face às despesas. Na minha opinião, o defeso devia ser comparticipado e o grande problema é esse: o Estado não o quer comparticipar», salienta.

Mas não é apenas o defeso uma das preocupações dos pescadores. Apesar de não poderem ir para o mar durante o fim de semana, devido à suspensão de pesca decretada pelo Ministério do Mar, estes homens trabalham «bastantes horas» numa profissão «dura e difícil», realça Zé Maria.

 

Descarga do polvo em Santa Luzia – Foto: Rúben Bento | Sul Informação

 

Apesar de «ser chato trabalhar durante noite», Joaquim já se habituou às rotinas de uma vida ligada à pesca. Sai do porto de Santa Luzia às 22h00, com o barco carregado de covos, e regressa às 6h00.

«Há vezes que há mais polvo, outras em que há menos. Durante a época da desova, nos meses de Verão, a pesca do polvo falha mais. Já com estes vendavais, como a espécie não gosta de água doce, foge dos ninhos e é mais fácil apanharmos grandes quantidades».

Depois da tempestade, tal como diz o ditado popular e garantem os pescadores, vem a bonança, e foi isso mesmo que o Sul Informação acompanhou numa descarga de polvo em Santa Luzia.

Já cansados de uma noite em alto mar, chegam ao porto de pesca ainda a manhã está a começar. Assim que chega a “terra”, sai um dos homens do barco para ir buscar as caixas alaranjadas para colocar o polvo. O pescado apenas pode ser colocado nestas caixas para poder ir para a lota.

Quando está todo descarregado e empilhado num carrinho, o polvo é levado pelos pescadores para dar entrada na pequena lota de Santa Luzia, em Tavira, e, mais tarde, ser vendido em leilão.

 

Fotos: Rúben Bento | Sul Informação

 

Do mar à venda

Apesar de ser capturado um pouco por todo o Algarve, e de Santa Luzia ser conhecida por ser a “Capital do Polvo”, é na lota do Porto de Pesca do Arade, que «esta espécie tem mais movimento», garante Alcina Sousa, diretora de Lotas e Portos de Pesca do Sul da Docapesca, em entrevista ao Sul Informação.

E se os pescadores não foram ao mar devido ao mau tempo, a agitação dos leilões em lota não foi sentida nestes dias de Dezembro. Foi com isso mesmo que nos deparámos durante uma visita à lota de Portimão (na realidade situada no vizinho concelho de Lagoa, no outro lado do rio). O encontro estava marcado, mas o polvo, bem como o restante pescado, não chegou a aparecer.

Ainda assim, os funcionários não cruzam os braços e preparam tudo para o leilão de pescado do dia seguinte.

Das muitas atividades que a Docapesca desempenha, «a primeira venda de pescado é aquela que domina o nosso trabalho», tendo o polvo, no Algarve «um grande peso, cerca de 50% das vendas desta espécie a nível nacional», explica a diretora Alcina Sousa.

«Há muitos barcos focados na captura do polvo e, com isso, têm estado a ter bastante valor. Cada vez mais, sobretudo no ano que passou, o polvo teve uma grande valorização ao nível do preço, o que ajudou toda a atividade económica deste setor». Também se registou um aumento da captura desta espécie.

«Temos tido anos com bastante fartura de polvo e temos outros com uma crise imensa. Os últimos anos têm sido bastante bons para a região e a valorização que se tem verificado tem acompanhado o volume de captura do polvo», sublinha Alcina Sousa.

 

Lota do Arade, em Portimão – Foto: Rúben Bento | Sul Informação

 

Segundo dados da Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), a que o Sul Informação teve acesso, verifica-se que o Algarve foi a região que, em 2020, vendeu mais polvo, seja fresco ou refrigerado, num valor de cerca de 17,2 milhões de euros.

Neste ano, a região algarvia teve um grande peso no valor das vendas das lotas, representando 54,7% do total nacional (o valor total, em todo o país, correspondente a 2020, foi de cerca de 31,5 milhões de euros).

Para este valor contribuíram as quase três toneladas (2.838,2 Ton) de polvo, fresco e refrigerado, que foi descarregado, nesse ano, no Algarve, correspondendo, num todo nacional, a cerca de 54% da quantidade descarregada desta espécie.

Já em 2019, a região algarvia tinha sido aquela em cujos portos mais se tinha descarregado polvo (2.605,6 toneladas).

Ainda assim, no que diz respeito ao preço médio do polvo por quilograma, na primeira venda, o Algarve tem apresentado valores acima do preço médio nacional (que, em 2020, foi de 5,92 €/kg), mas a região não é a que, nos últimos anos, tem tido o valor mais caro.

Em 2020, o preço médio algarvio do polvo por quilograma, na primeira venda, rondava os 6,08 euros, mas este é o custo médio mais baixo na região desde 2017 (quando foi de 7,36 €/kg).

Em termos de estatística, a Docapesca «trabalha e recolhe toda a informação» para que a DGRM possa receber, a nível nacional, todos estes dados, «incluindo o do polvo», explica Alcina Sousa.

Quando questionada sobre a aplicação de um defeso para a captura de polvo, a diretora de Lotas e Portos de Pesca do Sul da Docapesca explica que a empresa «tem debatido e avaliado a situação», mas, como entidade do setor empresarial do Estado, «estamos a colaborar na medida do nosso conhecimento».

Como a Lota do Rio Arade «tem um grande movimento de polvo», a Docapesca decidiu criar «um leilão específico para esta espécie», que acontece ao mesmo tempo da venda do restante pescado, mas «noutro tapete».

«Como é fácil identificar o tamanho, a frescura e colocar o polvo por lotes, optámos por fazer uma lota paralela, apenas para esta espécie. O comprador tem dois painéis e pode comprar o peixe normal num painel, como estar atento ao polvo no outro».

Esta ideia tem conquistado os compradores de polvo já que, «ao se juntarem aqui para licitar, isso acabará por fazer com que esta espécie valorize e os pescadores tragam para cá aquilo que capturam», salienta a diretora. Tanto compradores como pescadores ficam a ganhar com este sistema.

Carolino Rodrigues, responsável da Lota do Rio Arade, acrescenta que «esta ideia de termos uma lota apenas para o polvo, que começou há quase quatro anos, tem atraído bastantes compradores, essencialmente espanhóis».

«Antes, os espanhóis passavam a tarde toda na lota para comprarem uma ou duas caixas de polvo. Agora, assim que começa o leilão, as caixas de polvo são vendidas em cerca de meia hora», sublinha.

A Lota do Rio Arade «quase não vendia polvo», mas, agora, «com o aumento da captura, estamos a vender mais do que as outras do Algarve», refere o responsável.

 

Lugar onde decorrem os leilões de peixe e de polvo – Foto: Rúben Bento | Sul Informação

 

Apesar de, no dia em que o Sul Informação visitou o local, não haver venda de peixe, nem de polvo, Carolino Rodrigues, acompanhado de um funcionário, fez uma visita guiada pelas instalações da Lota do Rio Arade, explicando como costuma decorrer um leilão num dia “normal”.

«Depois dos barcos descarregarem o pescado», com o auxílio de gruas, os funcionários da Docapesca «ajudam na identificação e separação do polvo por tamanhos – existem quatro categorias que variam em função do peso – e pela condição em que se chegam, se estão inteiros ou “ratados” [termo utilizado pelos pescadores para os exemplares que, não estando completos, são vendidos a um preço mais barato]».

Cada caixa é pesada e é-lhe atribuído um talão de identificação com um número, a espécie, o tamanho e o peso, informações estas que, durante o leilão, serão apresentadas num ecrã «para que os compradores possam saber aquilo que está na caixa e assim possam licitar».

Durante o leilão de polvo, que decorre simultaneamente ao do outro pescado, os compradores «vão acompanhando as informações das caixas que aparecem nos ecrãs», enquanto «têm na mão um comando eletrónico, no qual podem pressionar quando quiserem comprar a caixa de pescado».

«O comprador vê as informações da caixa e o sistema começa a licitar a partir de um determinado valor, com base na média de venda da última semana. Quando achar que o pescado está no valor que pretende, o comprador aciona um botão e adquire-o», explica Carolino Rodrigues.

 

Fotos: Rúben Bento | Sul Informação

 

Da venda à mesa

Ainda o sol quase não nasceu e Eduardo Mangas já está a começar o seu dia. É cedo que acorda para planear tudo o que tem para fazer, como pegar na sua carrinha e ir à Lota de Santa Luzia, em Tavira, para comprar o polvo fresco, a matéria-prima dos seus negócios: uma fábrica de polvo e um restaurante.

«Compro o polvo na lota e depois, aqui na fábrica, é tratado, lavado, colocado em couvets, conforme os diferentes tamanhos, ultracongelado a 40ºC negativos e utilizado, depois, de várias formas», revela o empresário, enquanto nos guia pelo espaço.

Esta é «uma fábrica de polvo pequena, mas com classe!», exclama.

O polvo que o empresário compra, depois de tratado, é «cozido a vapor em grandes fornos, que temos na fábrica», sendo este «o segredo para o nosso sucesso», revela Eduardo Mangas.

Com «alguns dos restos do polvo que é cozido», a fábrica faz «rissóis, croquetes, bolinhas picantes, chamuças e uma série de aperitivos destes» que, depois de fritos, são algumas das entradas que podem ser pedidas no seu restaurante, a “Casa do Polvo/Tasquinha”, em Santa Luzia.

Estes aperitivos poderão também ser comprados num novo espaço em que Eduardo Mangas está a investir: um “Mercadinho do Mar”.

Trata-se de um sonho que o empresário tem «já há algum tempo» e que espera abrir ainda em Fevereiro. Fica ao lado da fábrica e terá ao dispor «vários produtos ligados ao mar, desde que tenham sido apanhados na região algarvia».

«Iremos ter polvo de todos os tamanhos, ultracongelado e já cozido, bem como camarão, sapateira, lagosta e outros mariscos», realça o empresário.

Este espaço «estará ao dispor de qualquer pessoa», uma alternativa que Eduardo Mangas arranjou, face ao impedimento de vender estes produtos «ao cidadão comum», pois «apenas podemos vender, na fábrica, em grandes quantidades».

 

Foto: Rúben Bento | Sul Informação

 

Situado a poucos metros da fábrica fica o restaurante “Casa do Polvo/Tasquinha”, na marginal de Santa Luzia. Com vista para a Ria Formosa, este espaço, decorado com artes de pesca tradicionais, é «um dos restaurantes de referência da vila», pois tem uma «ementa na qual o polvo é rei», realça o empresário.

A hora de almoço aproxima-se e alguns dos poucos turistas que passam férias na vila no Inverno já esperam sentados, dentro do restaurante, pelas «inovadoras iguarias com polvo» que o restaurante «tem na sua carta».

À entrada, uma placa onde se pode ler “existem três tipos de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar”, junto de uma das famosas âncoras da Armação do Barril, convida a entrar.

Na cozinha, estão já a ser preparados os primeiros pratos com polvo. «Sai um “Polvo Amêndoas” e um “Polvo Grelhado” para a mesa dois», exclama Isabel Gonçalves, uma das ajudantes de cozinha do restaurante.

Na “Casa do Povo/Tasquinha”, entre os pratos da ementa mais pedidos pelos clientes, «e que são ideias nossas, muito apreciadas pelos turistas», está o “Polvo Amêndoas”, «confecionado com batata doce, amêndoa torrada e damasco», e o “Royal”, «um polvo delicioso servido com batata doce assada e que leva um molho especial feito por nós», explica Isabel, enquanto prepara os pedidos que, entretanto, chegaram à cozinha.

De fora da carta do restaurante não fica o tradicional “Polvo à Lagareiro”, «com batata a murro e grelos salteados», e o “Polvo Grelhado”, «um prato bastante conhecido em Santa Luzia».

«Tentamos oferecer os pratos com polvo que são mais tradicionais, mas tentamos inovar e preparar sempre o melhor prato para que os nossos clientes fiquem satisfeitos e que tenham uma agradável surpresa quando forem experimentar algo diferente», explica a ajudante de cozinha.

 

“Casa do Polvo | Tasquinha”, em Santa Luzia – Foto: Rúben Bento | Sul Informação

 

A “Casa do Polvo/Tasquinha” foi já referida no Guia Michelin para 2022, tendo sido destacada «a cozinha e o ambiente piscatório» que o restaurante oferece aos comensais, numa vila que é reconhecida como “Capital do Polvo”.

Para Eduardo Mangas, a menção no Guia Michelin «é um enorme prestígio» que valoriza «todo o trabalho que tem sido feito pelo nosso restaurante».

Das noites à pesca em alto mar, passando pelo processo de venda em lota, até chegar às fábricas e depois à mesa dos restaurantes ou, simplesmente, a nossa casa, o caminho que o polvo faz é longo. Este é o sustento de muitos, seja enquanto trabalho, seja enquanto prazer à mesa.

Pode não parecer, mas, no Algarve, dizem os pescadores de Santa Luzia, entre risos, numa referência a Zeca Afonso: «ainda é o polvo quem mais ordena».

 

Fotos: Rúben Bento | Sul Informação

 

 



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