As estrelas para cada Natal

A confissão de Miguel Torga, em São Martinho da Anta, onde se refugiava, para o grande debate interior, à procura dos caminhos para iluminar a esperança, transpor as contrariedades que nos tornam vulneráveis e construir um futuro de justiça e de solidariedade humana

Ilustração de Maria Keil

O Natal de 2021 encerra mais um ano repleto de surpresas. Tivemos de rever e adiar as nossas prioridades e escolher outras. As incertezas e as expetativas dominantes obrigam-nos a pensar acerca do modo como devemos estar atentos em face da realidade quotidiana. É mais do que evidente que as incertezas geram ansiedade crescente e causam as maiores preocupações. Mas a adversidade também obriga a ultrapassar a rotina e a sair do marasmo. Estimula a energia para enfrentar o medo, vencer a insegurança e ultrapassar indecisões.

Para cada terra o seu Natal. Enquadra-se nos usos costumes e tradições locais e tem motivado, através dos séculos, poetas, escritores, músicos e artistas plásticos dos mais diferentes países. Miguel Torga um dos poetas de língua portuguesa que mais escreveu sobre o Natal situa quase todos os textos no seu paraíso original:  São Martinho da Anta, terra onde nasceu e onde desejou ficar sepultado.

Conhecia Portugal de ponta a ponta. Deixou-nos o registo do património construído e do património natural, do mar aberto ao apelo da distância, da planície e da lezíria, dos penhascos alterosos, das montanhas cobertas de neve, dos dourados dos castanheiros, da púrpura escaldante dos vinhedos nas encostas. Mas tinha uma ligação visceral a Trás os Montes que está na génese dos primeiros dias da Criação do Mundo e de sucessivas páginas do Diário. Uma antologia de poemas, feita ainda pelo próprio Torga, recolheu «um longo caminho órfico que principiou por ser vocação irreprimível e acabou por ser penitência assumida». Reuniu o que julgou mais significativo de «um trabalho aceso de muitas horas, muitos dias, muitos anos, o ferro cada vez mais incandescente e o forjador aureolado das chispas que saltam da bigorna».

Num dos muitos poemas sobre o Natal escreveu: “É nesta mesma lareira/ e aquecido ao mesmo lume, / que confesso a minha inveja/de mortal / sem remissão/ por este dom natural, / ou divina condição. / De renascer cada ano, / nu, inocente e humano/ como a fé te imaginou, / Menino Jesus igual/ ao do Natal/que passou».

Torga deixava Coimbra onde residia para se refugiar no pequeno grande universo de Trás-os-Montes: «léguas e léguas de chão raivoso, eriçado, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve». Era «o reino maravilhoso dos homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra».

Retomou o tema: “Foi tudo tão pontual! / Que fiquei maravilhado, / caiu neve no telhado / e juntou-se o mesmo gado / no curral;/nem as palhas da pobreza;/ faltaram na mangedoira, / palhas babadas da toira / que ruminava a grandeza / do milagre pressentido: / os bichos e a natureza / no palco já conhecido. / Mas afinal o cenário /  não bastou/ fiado no calendário, / o homem nem perguntou / se Deus era necessário…/ e Deus não representou».

O Natal, em São Martinho da Anta, incorporava o Presépio, os Magos e as Janeiras na paisagem de neve e de sinos, para fazer surgir o renascer da criança. Era categórico: «o presépio é qualquer berço/ onde a nudez do mundo / tem calor/ e amor». As torrentes da imaginação iam mais longe: «Foi um sonho que tive! / Era uma grande estrela de papel, / um cordel / e um menino de bibe. / O menino tinha lançado a estrela / com o ar de quem semeia uma ilusão. / E a estrela subindo, azul e amarela, /presa pelo cordel na sua mão. / Mas tão alto subiu / que deixou de ser a estrela de papel./ E o menino, ao vê-la assim, sorriu / e cortou-lhe o cordel».

Tudo começava quando via o acender das luzes nas ruas e nas árvores e o fogo simbólico do Madeiro. A arder, sempre a arder, durante os dias de Inverno, haja neve, haja chuva, haja vento. Despertava-lhe a memória para aprofundar o que éramos, a realidade do que somos e a luta para atingir o que podemos ser. As interrogações repetiam-se.  O que falta para recomeçar a vida? Para vencer a   dúvida e a angústia do futuro? O que vai ser o «dia seguinte» de cada um de nós? Como se pode iluminar a esperança e transpor as contrariedades que nos tornam vulneráveis? Em São Martinho da Anta decorria o grande debate interior em torno das controvérsias teológicas, políticas e sociais.

Prosseguiu, até aos últimos dias, a interpelação incluída n’ O Outro Livro de Job um dos seus primeiros livros: “Senhor: conquisto a Vida e o Pão de cada dia. / Bebo o Sol quando há Sol / e a noite quando há noite / e quando a voz do teu açoite / fender o meu corpo em dois e o deixo inteiro; / e quando junto ao muro me ajoelho, /quebra-me as pernas o costume velho, / de te sonhar, às vezes, justiceiro». Nesta «lamentação» – e para citar o título do poema – Torga definiu, sem reservas, as suas convicções culturais e cívicas, a dimensão do homem na sua universalidade e o «desespero humanista» que o tornaram, para sempre, refratário ás imposições dogmáticas e ao pensamento único.

Mas, a propósito da celebração do Natal, ainda observou: «o mal que apaga as estrelas é não se lembrar que não é com candeias que se ilumina a vida». Para concluir num outro poema: “Recomeça…/ Se puderes/sem angústia sem pressa. /E os passos que deres /nesse caminho duro do futuro / dá-os em liberdade. / Enquanto não alcances /não descanses. / De nenhum fruto queiras só metade».

Os pequenos sítios obscuros – à margem dos artifícios convencionais da encenação organizada da festa – mantém viva a essência do Natal. Perduram os sentimentos e os valores concretos da solidariedade, os vínculos afetivos que unem as crianças, os pais e os avósOs novos e os velhosOs vivos e os mortos. Os presentes e os ausentes. Os que moram longe e que nunca deixam de estar perto. Terra lavrada feita de heranças e de rebeldia. Escrita que desoculta e perpetua os elementos primordiais dos três reinos da natureza. Concentra «a vocação irreprimível», «a penitência assumida» para a descoberta das estrelas possíveis para cada Natal.

 

Autor: António Valdemar  é jornalista (carteira profissional número 1), Sócio efetivo da Academia das Ciências

 

 

 



Comentários

pub