«Travia não é um restaurante. É um exercício de mudança sistémica»

Mais do que “farm to table”, mais do que sazonalidade. O que põem no prato é o que a natureza, desgovernada, lhes vai dando

Lee Moulton e Maria Loureiro de Lemos, no Travia – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Travia é uma palavra usada no Algarve e no Alentejo que significa «a comida que se dava aos porcos, a comida mal feita, os restos que iam para os porcos». À primeira vista, conhecendo o significado do vocábulo, não parece grande escolha para o nome de um restaurante. Mas, depois de conhecer o restaurante em causa e, sobretudo, a filosofia que está por trás do projeto, tudo faz sentido. É uma provocação, uma afirmação, um desafio, como muito do que Maria Loureiro de Lemos, a sua promotora, gosta de fazer na vida.

O «Travia», que os dois promotores, a Maria e o seu namorado Lee Moulton, um galês a viver há vários anos no Algarve, abriram há cerca de duas semanas na esquina de uma rua no centro de Lagos, «não é um restaurante, não é um bar… Temos tapas, temos vinhos… Isto é um desafio pessoal acima de tudo».

Maria, em entrevista ao Sul Informação, recorda as suas vidas passadas, para explicar como chegou aqui: «eu vivia nos Estados Unidos e tinha uma vida corporate, era vice presidente de marketing de uma empresa norte-americana em Boston. Depois, um dia, resolvi deixar esse emprego corporate e regressei a Portugal, onde comecei a minha empresa de turismo gastronómico».

A empresária esteve depois ligada à Rota do Petisco, promovida pela associação Teia d’Impulsos, que tem sede em Portimão. Aliás, o «Travia», mesmo recém nascido, participa na edição deste ano da Rota, que já está a decorrer. Foi também organizadora da Lagos Food Fest, suspensa por causa da pandemia.

Durante a pandemia, o turismo morreu e Maria Loureiro de Lemos teve de dedicar-se a outra área, ligada aos seus interesses. «Estive a trabalhar muito com os Territórios Criativos, coordenando programas de turismo a nível nacional, nomeadamente na área da sustentabilidade. Coordenei o Green Up a nível nacional, trabalhei com Alvaiázere, com Coruche, estou a trabalhar também com produtos endógenos». Por tudo isso, começou «a pensar muito na sustentabilidade ligada à minha área, que é essa da gastronomia, em Lagos».

Com uma gargalhada, Maria acrescenta: «o que eu gosto é de comer e beber e já tinha dito “eu um dia vou ter um tasco”. Não sabia que ia ser este dia e neste sítio».

O espaço onde se situa o «Travia» (na esquina da Rua Marreiros Neto com a Cândido dos Reis), em pleno centro de Lagos, já tinha funcionado como restaurante, «mas daqueles virados para turistas». Com a pandemia, a dona, de nacionalidade estrangeira, vendeu o edifício todo. Maria e Lee conhecem o atual proprietário e foi assim que lhes surgiu a ideia de abrir o novo negócio. Em tempos de pandemia, com o turismo ainda a recuperar de forma tímida, era um risco…mas nada que assuste a empreendedora.

«Há cerca de um mês e meio, isto foi tudo um bocadinho a correr, vi este espaço para arrendar e pensei que a localização era ótima. E assim surgiu o Travia». Que não é (só) um restaurante, não é (só) uma casa de tapas. É, para começar, um local onde o que se come e bebe é de origem local ou regional. E é da época. Daí que a ementa mude a cada três ou quatro dias, conforme o que os fornecedores locais ou o mercado têm para oferecer.

«Quero combater esta noção de que os restaurantes têm que ter sempre os mesmos pratos, que o Recheio é que é a solução, que esta parte da industrialização, a consistência do fornecimento, é exigida por parte dos clientes e dos restaurantes. Pelo contrário, criámos aqui um modelo de negócio que, logisticamente, é super complicado, mas onde nós efetivamente só trabalhamos com produtores locais».

 

Maria, com alguns dos vinhos que se podem degustar no Travia – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Para vegetais e frutas, os principais fornecedores são as quintas do Vale da Lama e a das Seis Marias, produtoras biológicas, ambas situadas no concelho de Lagos. O peixe e outros legumes e frutas são comprados no mercado local, nomeadamente o da reforma agrária, onde os pequenos agricultores da zona vendem. O queijo fresco de cabra é de um produtor de Sagres, da Queijaria da Avó Deolinda. As ostras vêm da OstraSelect, da Ria de Alvor. A única cerveja é a Mania, artesanal, produzida em Lagos.

A única exceção a estes produtores locais são os vinhos. «Mas só temos vinhos nacionais e só orgânicos», que tenham «uma história por trás». Por isso, nas prateleiras do «Travia» há propostas de vinhos pouco habituais, algumas delas cá da região. «Do Algarve, temos o Monte da Casteleja e o Morgado do Quintão que, apesar de ainda não ser certificado, já é orgânico».

Pôr a tónica na sustentabilidade e na verdadeira economia circular dá trabalho, muito trabalho. É que é preciso ir ao mercado com frequência, fazer os contactos com os produtores-fornecedores quase todos os dias, para que as ementas vão refletindo o passar dos dias, das estações, construindo-se com «o que há».

Estes pormenores fazem toda a diferença no «Travia», porque aqui o cliente tem a vantagem de comer coisas diferentes, mesmo que volte lá muitas vezes.

«Inicialmente, estava com algum receio, porque, imagina, hoje o meu fornecedor de queijo de cabra não tinha queijo de cabra. Já nos aconteceu na semana passada não termos muxama e eu estava cheia de medo, a falar com os clientes, a dizer “olhe, hoje não temos muxama”. E a reação dos clientes, em vez de ser “ah que chatice”, foi “ah que bom”. Porque percebem o conceito. É que a ideia não é ter sempre tudo disponível. Se não há, não há, não há problema nenhum. Nós não queremos ser o restaurante que é conhecido por ter a melhor muxama do Algarve, nós queremos ser um sítio que as pessoas sabem que, quando cá vierem, vão comer bem, saudável, local e vão estar a apoiar no ecossistema».

No dia em que o Sul Informação visitou o «Travia», a ementa tinha pratos como «tomate, ameixa e beldroega», «salada de abóbora e beterraba», «tártaro de peixe», feito com corvina, «assadura de Monchique», «batata nova, nata ácida, nozes e biqueirão».

Os produtos locais são mais caros, mas isso não se reflete de maneira proibitiva nos preços cobrados no restaurante. Maria Loureiro de Lemos salienta que se trata de respeitar a filosofia, o conceito do «Travia», que passa por «ter impacto positivo na sociedade. Eu pago pelo tomate três vezes mais do que eu pagaria no Recheio. A minha cerveja é cinco vezes mais cara do que uma Sagres». Mas tem de ser assim!

«Eu não quero ficar rica, quero chegar ao final do mês e ter o meu dinheiro para estarmos à vontade. E quero que quem esteja à nossa volta também esteja bem. Não me importo de pagar 4 euros o quilo de tomate. Porque sei que o tomate vai ser bom. Sei que a D.Deolinda tem um neto e o neto vai conseguir comprar o par de patins que quer, porque ela vende a sua produção a preços justos. São coisas parvas, mas que para mim têm algum propósito. Nós falamos muito em impacto e depois são estas pequenas coisas que acabam por mudar a vida das pessoas», acrescenta.

Como já se viu pelos exemplos da ementa acima referidos, no «Travia» come-se de tudo.

«Quando digo que é um restaurante sustentável, os meus amigos dizem: “então é vegetariano” ou “então é vegan” e eu digo, não. Acredito em moderação e gosto de comer carne e de comer peixe. Acho que nós, hoje em dia, somos muito de extremos em todos os pontos…Mas podemos ser amigos do ambiente e fazer uma vida sustentável e a comer bem, a comer peixe e carne, a beber vinho…», explica Maria.

O que pretende é «tentar que as pessoas percebam que há um meio termo, desde que as coisas sejam feitas com moderação». É por isso mesmo que «o menu muda a cada três ou quatro dias, porque eu não estou à espera, primeiro, de ter quantidades de abóbora extraordinárias durante semanas a fio. Segundo, porque eu não quero comprar a abóbora toda do meu fornecedor, porque há outras pessoas que também querem comer abóbora em Lagos. Com moderação, nós conseguimos mudar o mundo, pouco a pouco», defende.

 

As receitas, como se pode ver, partem do tradicional, mas juntando-se-lhe alguma criatividade. «Tem que ser assim, porque já não conhecemos como é que as coisas eram feitas antigamente. Esta cultura imaterial, de pegar na abóbora, no tempo dela, e fazer não sei o quê, usar as sementes para outra coisa… Nós já não sabemos fazer isso, porque estamos habituados a ir ao supermercado. Estamos a reaprender a viver só a nível local».

A cozinha do restaurante está a cargo do jovem chef Rafael Jesus, escolhido depois de Maria entrevistar inúmeros cozinheiros, com muita experiência e tecnicamente muito bons, mas que não estavam dispostos a esta aventura de mudar de ementa a cada três dias.

«Encontrar pessoal que estivesse na mesma onda foi complicado. O Rafael não tem experiência de chefe de cozinha, sendo ele o único responsável, mas quando lhe disse que queria trabalhar o produto, ele respondeu logo: “ah a minha avó tem uma quinta e as cebolas…”. Ele tinha aquela paixão e eu disse-lhe: “olha Rafael, sabes que mais? não tens experiência sozinho na cozinha, tranquilo, estamos todos a aprender, bora fazer”». Mais um desafio, mais um risco que, até agora, tem corrido muito bem.

Provando que o objetivo do «Travia» é, de facto, contribuir para o bem comum, Maria conta que, há dias, um cliente disse: «este queijo é maravilhoso». E a empresária respondeu-lhe: «este queijo é feito pelo Roberto, em Sagres. São os queijos da Avó Deolinda. E, se quiser, nós conseguimos marcar, daqui a dois dias, uma ida aos queijos, vocês podem ordenhar as cabras, fazer queijo. Isto dá uma oportunidade às pessoas de perceberem que a comida vai muito mais além daquilo que está no prato. Conseguirem perceber quem é o Roberto, quem são as cabras, e darem mais valor àquilo que estão a comer. Arrisco-me a dizer que 50% dos clientes que tive aqui marcaram provas de vinho no monte da Casteleja. E vice versa». É a tal economia circular de que tanto se fala, a funcionar, na prática.

Atualmente, até pela sua situação no centro de Lagos, cerca de 70% dos clientes do «Travia» são estrangeiros. Mas Maria quer que os portugueses, os lacobrigenses, os algarvios também conheçam o seu espaço e apreciem o muito que tem para oferecer.

«Os portugueses que têm vindo são malta daqui, pessoas que vivem em Lagos. Ainda não fizemos nenhuma publicidade, nem o senhor Google sabe que existimos. Por isso, quem acaba mais por vir são estrangeiros que passam pela rua. Mas estou convencida que vai mudar, para mais portugueses. E esse é o meu objetivo, o que não significa que não quero turistas, mas quando tu queres trabalhar um ecossistema, trabalhas para quem está aqui».

Além de boa comida e boa bebida, o «Travia» é um espaço agradável (com mesas no interior e na esplanada), onde até os artistas são locais. Na parede do restaurante, há agora uma pintura de Inês Barracha, de Portimão, que foi concebida para o espaço…e no espaço. Foi ali mesmo que Inês a pintou. «De três em três meses, vamos convidar um artista local ou regional, para vir aqui fazer outro quadro», explica Maria.

E é a jovem empresária de Lagos que resume o que é este seu «Travia»: «servimos comida e bebida, sim. E trabalhamos a sustentabilidade. Mas vai mais além. Trabalhamos em estreita parceria com os produtores locais – que nos ensinam a trabalhar e respeitar o produto -, e também damos a oportunidade aos nossos clientes de irem visitar os nossos parceiros, ter uma manhã a aprender agricultura regenerativa, ou fazer queijo de cabra em Sagres, ou uma prova de vinhos no Monte da Casteleja. É um ponto de encontro, ou de partida, para conhecer o nosso ecossistema, a nossa cultura».

Para já, o «Travia» só abre à tarde e noite, pelo que é aconselhável contactar com o restaurante antes de lá ir. Os preços são acessíveis, rondando os 6 a 8,50 euros por pratinho. A cerveja artesanal custa 2,20 euros, os vinhos vão dos 21 aos 55 euros, mas há vinho a copo.

Pode seguir o Travia no Instagram em @travia_wineandfood

 

Nota: A frase usada no título é retirada do menu do «Travia». E resume tudo.

 

 



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