Equipa internacional de cientistas procura informação inédita sobre tsunamis no Paul do Martinhal

Paul do Martinhal tem um «património cultural e científico único, não há outro no mundo»

César Andrade e Witold Szczuciński no Paul do Martinhal – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

«Está a ver aquela areia mais amarelinha ali, mesmo acima do nível onde está a água agora? É o depósito do tsunami de 1755». César Andrade, professor e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, aponta para as camadas de sedimentos de vários tons de castanho, que se podem ver na parede da trincheira aberta no fundo, agora seco, do Paul do Martinhal, junto à praia do mesmo nome, em Sagres.

É aqui que se concentram os esforços de uma equipa de investigadores, alguns deles ainda estudantes, daquela universidade portuguesa, mas também da Universidade de Poznan, na Polónia. O projeto, denominado TsunaStorm, envolve ainda a Universidade de Coimbra e uma universidade da Suíça.

Os trabalhos começaram no dia 14 e prolongam-se até 23 de Setembro. «Começámos por fazer a prospeção de superfície, uns furos para identificar os melhores sítios para colocar as trincheiras, depois abrimos à mão trincheiras pequeninas de prospeção e hoje [na quinta-feira passada] é que, com o auxílio precioso do Município de Vila do Bispo, temos esta máquina, o que nos facilita muito o trabalho», explicou Carlos Andrade ao Sul Informação. «Abrir isto à mão seriam horas e horas de trabalho, com a máquina é rápido».

Dentro da vala com cerca de vinte metros de comprimento, aberta pelo operador da máquina retroescavadora fornecida pela Câmara, os investigadores, de botas de borracha, examinam com cuidado as camadas de cores ligeiramente diferentes, que se vislumbram nas paredes laterais da trincheira, com cerca de um metro de altura, até ao nível freático da água no solo. «O facto de o paul estar seco para nós é muito bom, facilita-nos a vida», diz César Andrade.

 

Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

O projeto TsunaStorm visa fazer «a caracterização de depósitos sedimentares provocados por tsunamis e tempestades, permitindo diferenciá-los através da utilização pioneira de análise de DNA em moléculas depositadas na coluna litoestratigráfica, possibilitando compreender, de forma mais rigorosa, os impactos, extensão e consequências morfodinâmicas destes eventos e determinar claramente os seus períodos de retorno».

Traduzindo para uma linguagem que todos possam perceber, o que quer isto dizer? Foi o que o Sul Informação foi saber, numa visita ao Paul do Martinhal.

Witold Szczuciński, da Universidade de Poznan, especialista em geociências costeiras, começa por explicar que «a população, a nível mundial, vive cada vez mais em zonas costeiras. E os tsunamis são dos desastres naturais que mais vítimas provocam», pelo que uma avaliação do risco tem que saber mais sobre estes fenómenos.

O investigador polaco trabalhou na «Tailândia, em 2004, no Japão, em 2011», na sequência dos tsunamis que afetaram estes locais, mas também na Escócia, Gronelândia, Polónia, em todo o tipo de zonas costeiras.

No Paul do Martinhal, que se situa numa depressão junto à costa, os trabalhos em curso têm como objetivo «reconhecer um depósito de tsunami», ou seja, os vestígios sedimentares que ficam depois de um tsunami. Mas há uma dificuldade. É que estas mesmas zonas são afetadas quer por inundações repentinas vindas de terra (enxurradas), quer por outras inundações vindas do mar, provocadas por tempestades oceânicas. A tempestade Hércules, em 2014, é o exemplo mais recente de um evento deste último género a deixar vestígios na costa.

 

Foto: DR

«A chave para a pesquisa a nível mundial é saber como distinguir depósitos de tempestades de depósitos de tsunamis, já que, em ambos os casos, há o transporte de sedimentos da linha costeira para terra», explicou Witold.

Por isso, o que os investigadores procuram são «diferenças muito pequenas, como microfósseis, pequenas conchas que têm a ver com a profundidade das águas, até mesmo DNA de organismos marinhos que está preservado nos sedimentos». Nada disso «se pode ver a olho nu» nas camadas de sedimentos, pelo que as amostras recolhidas serão depois estudadas em laboratório.

César Andrade, da Universidade de Lisboa, acrescenta que se trata da continuação dos trabalhos que já levam alguns anos, e que têm decorrido «nesta depressão do Martinhal, mas também em outros locais costeiros do Algarve, como a Boca do Rio, aqui perto, ou, mais a nascente nas ilhas-barreira da Ria Formosa, mas também na foz do Almargem, perto de Vale do Lobo (Loulé)».

Trata-se de «depressões costeiras» que «são temporariamente inundadas por água doce e, ocasionalmente, galgadas po água do mar».

Fazendo um gesto que abarca todo o Paul do Martinhal, César Andrade sublinha que «esta depressão está preenchida por materiais sedimentares que são ou de origem terrestre ou de origem marinha».

«Sempre que a sedimentação tranquila é interrompida pelo impacto de ondas de alta energia, ondas de tempestades muito violentas ou ondas de tsunami, esses materiais sedimentares cobrem o fundo e depois estes espaços são outra vez recobertos por sedimentação normal», diz ainda.

Portanto, «se nós abrirmos uma trincheira ou enfiarmos um tubo de sondagem por aí abaixo, conseguimos ter um registo das inundações ao longo do tempo».

Aliás, explica, «no caso concreto desta baixa do Martinhal e da Boca do Rio, esse registo vai para trás no tempo até há cerca de 3, 4 mil anos, o que é muito mais longínquo do que qualquer base de dados instrumental ou documental».

 

Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Este horizonte temporal alargado «permite-nos perceber se houve mais inundações provocadas por tsunamis, se houve tsunamis mais antigos do que há memória, qual é a frequência com que eles atacaram esta linha de costa, se há ou não há tempestades oceânicas».

É que, acrescenta o investigador, pelas camadas de sedimentos, «nós conseguimos perceber até onde a água marinha inundou estas depressões, quantas tempestades é que houve, ou se a frequência de tempestades aumentou ou diminuiu no tempo».

Os dados que resultam dessa avaliação «são interessantes até para avaliar os riscos costeiros, porque o que aconteceu no passado repetir-se-á no futuro».

Para os cientistas envolvidos no projeto TsunaStorm, o mais excitante é que esta investigação tem aspetos «inovadores a nível mundial».

«Estamos a usar um conjunto de indicadores que vão desde o estudo das algas diatomáceas, aos foraminíferos», em ambos os casos microrganismos preservados nos sedimentos.

Mas há também «um especialista em DNA, que está a usar uma técnica completamente inovadora, mesmo a nível mundial, que é utilizar as cadeias DNA dos microrganismos que estão preservados nos sedimentos para detetar e separar eventos de inundação ou torrenciais, uns vindos de terra, outros vindos do mar, e, dentro dos que têm origem marinha, separar eventos de tempestades e eventos de tsunami».

Esta metodologia, garante César Andrade, «é completamente nova: se for possível prová-lo aqui, já que é essa ideia de base que financia o projeto, esperamos poder aplicar essa metodologia em todos os outros países do mundo».

 

Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

O cientista português sublinha que «os elementos que foram colhidos e que vamos continuar a colher neste tipo de estudos são extremamente importantes porque, do conhecimento destes elementos podemos inferir, por exemplo, qual foi a altura das ondas, até que distância a inundação marinha marinha penetrou em terra. Todas essas indicações são extremamente úteis para a gestão do risco costeiro no litoral do Algarve», que já tem sofrido o impacto de inúmeros tsunamis ao longo dos tempos. E certamente voltará a sofrer.

Por outro lado, adianta, «o conhecimento que se adquire aqui é depois disseminado pela comunidade científica, com origem em Portugal, e acaba por ser utilizado na gestão do risco costeiros noutros países do mundo».

E porque é que os cientistas desta equipa internacional escolheram o Martinhal como uma das suas áreas de trabalho fundamentais?

«Porque, a uma escala mundial, é um dos únicos locais onde encontramos, no mesmo sítio, depósitos de tsunamis e de tempestades», começa por responder o polaco Witold Szczuciński.

César Andrade acrescenta que o «enquadramento geológico» do paul do Martinhal é «o melhor registo mundial deste tipo de eventos», já que «há poucos sítios do mundo onde, numa área pequenina, nós consigamos encontrar, simultaneamente e no mesmo espaço, registos de inundação fluvial, registo de inundação por tsunamis e registo de inundação por tempestades».

«As características dos sedimentos que encontramos aqui transformaram esta baixa do Paul do Martinhal e também a Boca do Rio em locais de peregrinação de cientistas de todo o mundo, desde norte-americanos, pessoas da América do Sul, do Chile especificamente, ingleses, italianos, gregos, alemães. Este é o sítio que os investigadores procuram quando querem ver com os seus olhos um depósito de tsunami ou um depósito de tempestade, e como é que tudo isso se organiza».

No fundo, a depressão junto ao litoral onde se situa o Paul do Martinhal é uma imensa biblioteca cheia de informação, que os cientistas estão agora a começar a ler.

Terminado o trabalho em terra, a equipa, neste caso das universidades de Lisboa e de Coimbra, vai ainda continuar a sua investigação no mar, na zona costeira frente ao Martinhal. «Assim como a onda de tsunami entrou, também saiu e deixou a sua assinatura», conclui César Andrade. E esse é outro aspeto que os cientistas do Projeto TsunaStorm querem investigar.

Todos estes trabalhos estão autorizados pelas entidades competentes, nomeadamente a Agência Portuguesa do Ambiente e o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

O projeto conta com o apoio da Câmara Municipal de Vila do Bispo, ao abrigo de um protocolo de colaboração com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, assinado em Outubro de 2014.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 



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