A Matemática e a Covid-19

Nunca os matemáticos foram tão solicitados para dar respostas onde reinavam as incertezas

A matemática tem sido, ao longo da História da Humanidade, uma componente essencial do desenvolvimento humano. Sem matemática, o Mundo, moldado por nós, não seria o que é hoje, nem nós seríamos como somos.

Foi a matemática que deu corpo e forma à linguagem dos físicos, químicos, outros cientistas e dos engenheiros que interpretaram e reconstruíram o Mundo nos nossos dias.

Uma das faces mais visíveis da matemática surgiu com a crise pandémica da Covid-19. Nunca os matemáticos foram tão solicitados para dar respostas onde reinavam as incertezas.

Curiosamente, nunca os matemáticos procuraram dar certezas nesta questão da pandemia! A previsão de fenómenos reais está sempre afetada por erros e incertezas. Os erros surgem nos dados e as incertezas nas previsões nascem desses erros.

Houve algumas certezas, certamente: todos os matemáticos sérios, que estudaram profundamente as leis de propagação das doenças infeciosas, que foram sendo estabelecidas desde os anos 20 do século XX, sabiam que a abertura do Natal de 2020 em Portugal provocaria milhares de mortos adicionais por Covid-19 em Janeiro, e alertaram as autoridades de saúde, que não lhes deram crédito nenhum e, pior do que isso, demoraram uma eternidade a reagir aos números de mortos todos os dias crescentes e ao caos na entrada dos hospitais.

Sabia-se, logo no início da pandemia, que um confinamento geral resultaria em menos de 2000 mortos na primeira vaga, como publicámos no jornal “Público” a 21 de Março de 2020, o que veio a acontecer de forma notável.

Mas algumas previsões de colegas nossos não se verificaram. Isso deveu-se ao facto de a matemática não resolver tudo. Quando se faz uma previsão, utilizando leis bem conhecidas e estabelecidas, usam-se também hipóteses, como, por exemplo, se não se tomarem medidas nenhumas, se se tomarem medidas de mitigação ou diferentes tipos de confinamento (com escolas fechadas e abertas, transportes a funcionar ou não, fecho ou não de fronteiras, etc.).

As previsões catastrofistas iniciais de alguns nossos colegas parece que falharam estrondosamente e ainda bem! No entanto, se nada fosse feito, teriam batido certo, como o Estado de Nova Iorque, por exemplo, tão bem demonstrou já, com mais de 53000 mortes.

Falharam não porque as leis estejam erradas (pelo contrário, a pandemia veio confirmar notavelmente essas leis), mas porque não colocaram o efeito de medidas, na altura ainda não tomadas, nos coeficientes de contactos e de contágios.

Curiosamente, as medidas foram tomadas precisamente porque as previsões que foram feitas eram terríveis. Estas intervenções iniciais foram extremamente úteis para conter a primeira vaga. Infelizmente, o facto de terem falhado provocou uma cegueira na segunda vaga que desvalorizou os posteriores avisos dos matemáticos.

É evidente que a matemática não é astrologia, e ainda bem, porque a astrologia, sem qualquer base científica, só poderá acertar por sorte. Com a matemática, podem prever-se muitos fenómenos, mas a incerteza nas previsões pode, também, ser calculada.

Quando nós tínhamos previsto, no Instituto Superior Técnico, a 7 de Setembro, cerca de 7500 óbitos a 31 de Dezembro de 2020, esta previsão falhou. Falhou em menos de 10%, pois os óbitos reais foram de 6906, o que é uma previsão difícil, feita quase 4 meses antes.

É uma previsão baseada em leis matemáticas, que tinha como hipóteses uma enorme falta de preparação e medidas pouco eficazes, mas completamente dentro da nossa margem de erro, que era de 15%.

As medidas entretanto tomadas reduziram em 600 casos a nossa previsão, o que, face aos 6906 que realmente morreram até essa data, foi muito escasso.

Teríamos ficado muito mais felizes se as medidas tomadas nos tivessem feito errar estrondosamente as nossas previsões.

Quando, a 6 de Janeiro, foram anunciados 10027 novos casos e o governo declarou que apenas no dia 12 do mesmo mês se reuniria no Infarmed para analisar a situação, e depois se anuncia um confinamento pífio sem fecho das escolas, a nossa comunidade matemática percebeu a tragédia que se estava a desenrolar.

No dia 13 de Janeiro, a nossa previsão para o dia 28 de Fevereiro foi de 16.500 óbitos, escrita num documento para uso oficial, e bateu mais uma vez certo: foram exatamente 16317, completamente dentro da nossa margem de erro, desta feita de 5%, por a previsão ser a mais curto prazo.

Evidentemente que a história pesa nos modelos, o fator frio e humidade são importantes nos modelos. Por essas razões, nos meses mais frios, dever-se-ia ter tido mais cuidado, cuidados que não se tiveram.

Hoje em dia prevemos, e já não parece difícil fazer essa previsão, que teremos um Verão tranquilo e que, sem a entrada de variantes muito mais agressivas, passaremos a ter uma vida quase normal a partir de Setembro, sobretudo por causa da entrada direta, na classe dos imunizados, de todos os que serão vacinados.

A Matemática agora parece desnecessária, mas não é verdade! Para vacinar toda uma população, precisamos de modelos, de previsões, de algoritmos e de software, desenvolvidos com matemática!

 

Autor: Henrique M. Oliveira, Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa
Membro do Grupo de Trabalho para o Acompanhamento da Pandemia de COVID-19 em Portugal do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa.

 

 



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