Cidadãos inteligentes, comunidades circulares

Só uma comunidade inteligente poderá aplicar os princípios de funcionamento da economia circular

A economia circular está na ordem do dia. O texto que aqui trago foi inspirado numa publicação da Business Council for Sustainable Development (BCSD) Portugal, intitulado “Sinergias circulares” e no documento da WBCSD, já traduzido, com o título “Indicadores de transição circular V2.0”, publicações cuja leitura eu recomendo vivamente aos leitores.

Doravante, só uma comunidade inteligente poderá aplicar, em toda a sua extensão, os princípios de funcionamento da economia circular. Vejamos alguns aspetos centrais desta relação.

 

A transição para a economia circular

A gestão urbana, um parque industrial, uma cooperativa agrícola e/ou agroindustrial, as principais fileiras ou cadeias de valor de uma região, uma zona de intervenção florestal, um aldeamento turístico, em todos estes casos, e em muitos outros, deveremos perguntar se estamos perante comunidades inteligentes circulares e colaborativas no sentido que lhes dá a Comissão Europeia de “fechar o ciclo”, de acordo com o pacote europeu de economia circular apresentado em 2015.

O conceito de economia circular não é novo, está muito associado à área da ecologia industrial e análises de ciclo de vida dos produtos. Um desafio imenso que envolve tecnologia, inovação e imaginação para novos modelos de negócio. Passar de uma economia linear para uma economia circular implica que os resíduos produzidos pelas atividades económicas sejam nulos e que sejamos suficientemente criativos para identificar modelos de negócio rentáveis e verdadeiramente circulares. Assim sendo, a transição para a economia circular envolve grandes mudanças e implica:

– A capacidade de pensar no design dos produtos de forma ecológica, de modo a utilizar menos recursos naturais e a proporcionar uma futura utilização desses mesmos produtos noutros equipamentos;

– A possibilidade de promover simbioses industriais, que transformem um resíduo num subproduto para que este entre no processo produtivo de um outro produto, evitando, assim, enviar quantidades para aterro e promovendo, em simultâneo, a valorização dos resíduos;

– A iniciativa de identificar novos negócios associados ao aluguer de equipamentos em vez da sua compra, à reparação, ao restauro, à recolha de excedentes, entre outros;

– O conhecimento de novos modelos de negócios a nível financeiro, para que seja possível aos investidores investirem e emprestarem capitais a estas atividades com stocks e rentabilidades diferentes daquelas que usualmente se consideram como bons negócios;

– Um sistema de incentivos que induza os agentes económicos a passarem da economia linear para a circular.

A Comissão Europeia adotou em 2020 um novo Plano de Ação para a Economia Circular no quadro do Pacto Ecológico Europeu.  Frans Timmermans, vice-presidente executivo do Pacto Ecológico Europeu, afirmou o seguinte: «Se pretendemos alcançar a neutralidade climática até 2050, preservar o nosso ambiente natural e reforçar a nossa competitividade económica, temos de criar uma economia totalmente circular. Atualmente, a nossa economia é, ainda, quase totalmente linear, e apenas 12 % dos materiais e dos recursos secundários são reintroduzidos na economia. Muitos são os produtos que se avariam de forma demasiada rápida, não podem ser reutilizados, reparados ou reciclados ou são concebidos para serem utilizados uma única vez. Existe um enorme potencial a explorar tanto no que se refere às empresas como aos consumidores.»

O comissário do Ambiente, Oceanos e Pescas, Virginijus Sinkevičius, afirmou, por sua vez: «Só há um planeta Terra. No entanto, em 2050, o mundo vai consumir como se houvesse três. O novo plano permitirá integrar a circularidade nas nossas vidas e acelerar a transição ecológica da nossa economia. Propomos medidas decisivas para alterar o processo que está no topo da cadeia de sustentabilidade — a conceção dos produtos. Ações orientadas para o futuro permitirão criar oportunidades a nível das empresas e da criação de emprego, conceder novos direitos aos consumidores europeus, tirar partido da inovação e da digitalização e, tal como acontece na natureza, garantir que nada seja desperdiçado.»

O Plano de Ação para a Economia Circular apresentado no quadro da estratégia industrial da União propõe medidas que visam os seguintes objetivos:

Os produtos colocados no mercado da UE são concebidos para durar mais tempo, mais fáceis de reutilizar, reparar e reciclar e contenham, tanto quanto possível, materiais reciclados em substituição de matérias-primas primárias; serão impostas restrições aos produtos de utilização única, a obsolescência prematura será combatida e a destruição dos bens duradouros não comercializados será proibida.

Os consumidores terão acesso a informações fiáveis sobre a reparabilidade e durabilidade dos produtos, a fim de os ajudar a fazer escolhas sustentáveis do ponto de vista ambiental e beneficiarão, também, de um verdadeiro «direito à reparação».

– A concentração do plano de ação é feita nos setores em que o potencial para a circularidade é mais elevado: uma iniciativa sobre a eletrónica circular para prolongar a vida útil dos produtos, um novo quadro regulamentar para as baterias, novos requisitos obrigatórios para as embalagens e os micro plásticos, uma nova estratégia para a reutilização dos têxteis, a circularidade nos edifícios, a substituição das embalagens e dos artigos da restauração por produtos reutilizáveis.

Um dos primeiros passos das empresas para a economia circular é conhecerem o seu desempenho em matéria de circularidade, através da adoção e monitorização de indicadores-chave adequados ao seu setor. Só assim será possível definirem uma linha de partida, estabelecer metas e monitorizar o progresso na sua transição para a circularidade, identificar oportunidades circulares e riscos lineares, responder a requisitos de clientes e investidores e desenvolver novos negócios.

Neste sentido, o World Business Council for Sustainable Development (WBCSD) e 30 empresas associadas desenvolveram Indicadores de Transição Circular que ajudam a responder a perguntas como: qual o grau de circularidade da empresa, como definimos metas para a sua melhoria e como monitorizamos as melhorias resultantes das nossas atividades circulares?

Os indicadores são uma ferramenta simples, transversal a todos os setores e cadeias de valor, abrangente e flexível, complementar aos esforços desenvolvidos pelas empresas no domínio da sustentabilidade. A versão que o WBCSD acaba de lançar é já uma versão 2.0, com indicadores que a versão 1.0 não continha, nomeadamente, circularidade da água, desempenho financeiro associado ao desempenho circular e orientações para a bioeconomia.

 

As características básicas das comunidades inteligentes

Não haverá economia circular sem comunidades inteligentes, pois são estas que, em última instância, validam as decisões empresariais e comunitárias acerca da maior ou menor circularidade de bens e serviços materiais. Para que tal aconteça é imprescindível reunir algumas condições ou características básicas da “inteligência disponível e potencial”. Vejamos algumas dessas características:

– As CI são comunidades 4C: as CI são comunidades 4C, de conhecimento, colaborativas, circulares e criativas.

– As CI são comunidades de risco linear e oportunidade circular: as CI são comunidades que visam reduzir os fluxos de entrada lineares no ciclo de vida dos seus produtos de referência e aproveitar a oportunidade para reintroduzir resíduos recuperados e reciclados no processo produtivo.

– As CI são comunidades regenerativas 5R: as CI são comunidades 5R, de redução, reciclagem, reparação, reinvenção e reutilização de recursos e resíduos.

– As CI são comunidades de acesso e serviço em vez de posse e propriedade: as CI são comunidades que progressivamente substituem a posse de um bem pelo acesso ao serviço que esse bem proporciona; esta desmaterialização poupa recursos e aumenta a circularidade.

– As CI são comunidades com um ciclo de vida mais longo: as CI são comunidades de ciclo fechado, contra a obsolescência programada, e pela recuperação e reintrodução de recursos e materiais.

– As CI são comunidades que ligam a cidade e o campo: as CI são comunidades que ligam a cidade e o campo através de infraestruturas biofísicas e ecológicas, redes de corredores verdes, reabilitação de habitats e ecossistemas e prestação de serviços de ecossistema.

– As CI são comunidades mais desmaterializadas e distribuídas: as CI são comunidades mais digitalizadas e distribuídas, com mais fluxo e menos stock populacional, mas com mais soluções à distância através da articulação imaginativa entre comunidades online e offline.

– As CI são comunidades que internalizam as externalidades: as CI são comunidades que avaliam os impactos dos seus efeitos externos, fazendo a mitigação dos efeitos negativos e promovendo a convergência e aproveitamento dos efeitos positivos.

– As CI são comunidades de base territorial e cooperativa: as CI são comunidades que, nas suas ações coletivas, privilegiam as operações integradas de base local e territorial onde a cooperação entre os agentes e o papel do ator-rede são determinantes.

– As CI são comunidades de circularidade, certificação e reputação: as CI são comunidades onde as imagens de marca dizem respeito e valorizam a circularidade, a certificação de processos e procedimentos e a reputação das suas boas práticas.

 

Notas Finais

São diversos os desafios que as empresas enfrentam na transição para a economia circular, nomeadamente, a adoção de novas tecnologias, novas soluções de design, novos materiais e reformulação das cadeias de valor e novos modelos de negócio (por exemplo, para negócios mais assentes no acesso e usufruto e menos na posse).

A urgência da transição nunca foi tão evidente. Os modelos de negócio lineares podem ser rentáveis a curto prazo, mas, com o passar do tempo, expõem as empresas a riscos de mercado, operacionais, regulatórios e de negócio. Através de modelos de negócio circulares, as empresas podem acelerar o seu crescimento, melhorar a sua competitividade e mitigar diversos tipos de riscos. É por isso que este é um dos principais desafios da década 2020-2030 e do Pacto Ecológico Europeu.

Em Dezembro de 2017, foi lançado o “Plano de Ação para a Economia Circular em Portugal” que constitui o nível de ambição do país para a melhoria da utilização dos recursos e para a implementação de uma economia circular. Neste contexto, o BCSD Portugal, sendo uma associação de empresas com um papel ativo na implementação de medidas que promovem o desenvolvimento sustentável, pretende continuar a promover o tema das simbioses industriais em parceria com outras associações, empresas, universidades e entidades públicas. Só trabalhando em conjunto será possível criar um mercado nacional de trocas de subprodutos com expressão efetiva no mercado respetivo.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático aposentado da Universidade do Algarve

 



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