Um Livro é uma Arma!

Não se trata da necessidade de efabular acontecimentos históricos, ou de omitir factos, mas da desnecessária descrição detalhada do terror vivido e contado, no Tatuador de Auschwitz, na primeira pessoa

“A cantiga é uma arma!” escreveu e cantou José Mário Branco. Mais do que a música, toda a expressão artística pode ser essa arma. Os livros não são exceção. Há quase dois séculos, dizia Edward Bulwer-Lytton, “a caneta é mais poderosa que a espada”.

Anos mais tarde, Mário Quintana acrescentava: “os livros não mudam o mundo; os livros mudam as pessoas, as pessoas mudam o mundo”. É este o verdadeiro poder de um livro, e como qualquer arma, nas mãos erradas pode ser um grande perigo.

Apenas recentemente a sociedade tem legislado sobre o que pode estar ao alcance das crianças. Há uns anos (não muitos), as crianças em Portugal tinham acesso livre ao tabaco e ao álcool. Ainda nos dias que correm, em alguns países do mundo, as crianças têm acesso a armamento, até a armas semi-automáticas. O resultado é conhecido de todos e bem visível nas capas dos jornais.

Preocupamo-nos cada vez mais com o que disponibilizamos às crianças, aos jovens. Com o que pode colocar em perigo as suas integridades físicas e morais. Há classificações etárias para peças de teatro, filmes, exposições de artes plásticas. Não há no entanto, em Portugal, classificação etária para literatura.

Contudo e tal como acontece com as restantes artes, um livro é um estímulo incrível na formação de uma criança. Mas também pode ter efeitos devastadores, com consequências por vezes nefastas e traumáticas, deixando mazelas até à idade adulta.

A escolha da leitura recai normalmente sobre o próprio, saudavelmente com o acompanhamento dos pais, ou de quem os acompanha no processo que é crescer.

Surgiram também programas de apoio ao incentivo à leitura como a criação da Rede de Bibliotecas Escolares, o investimento nas Bibliotecas Municipais, o Plano Nacional de Leitura ou ainda o Concurso Nacional de Leitura.

Todos pretendem estimular nos jovens hábitos saudáveis de leitura, encaminhando-os para listas de obras recomendadas, partilhando sugestões de outros jovens, promovendo livros do mês, enfim, um conjunto de estratégias concertadas para contribuir para que se leia cada vez mais. Existe até o Plano Ler+ que, com a ajuda de peritos e especialistas, define obras adequadas e essenciais.

Neste ano letivo de 2020/2021, o Concurso Nacional de Leitura mantém as suas iniciativas. Concluída a primeira fase, os alunos selecionados no âmbito escolar irão agora disputar a fase intermunicipal, debruçando-se sobre uma obra adequada e previamente escolhida para cada ciclo de ensino.

Para esta etapa, a região do Algarve, através da Biblioteca Municipal de Tavira, escolheu para o 3º ciclo (alunos entre os 12 e 15 anos), “O Tatuador de Auschwitz”, de Heather Morris.

À parte a temática (comercialmente explorada ao máximo pelas grandes editoras nos dias que correm) ou o eventual mérito literário da autora, está em causa a forma literária da obra. O assunto incomoda, claro, ou não se tratasse de um dos períodos mais negros da história da humanidade. Há violência, tristeza, incompreensão, raiva, revolta e muita morte, morte macabra. Mas há diferentes formas de transmitir um mesmo assunto, uma mesma história.

Não se trata da necessidade de efabular acontecimentos históricos, ou de omitir factos, mas da desnecessária descrição detalhada do terror vivido e contado, no “Tatuador de Auschwitz”, na primeira pessoa.

A detalhada descrição de eventos que aconteceram de facto dentro de Birkenau e Auschwitz choca qualquer leitor, mas, no caso de crianças, é puramente desajustado. Este é um livro para adultos. Um livro que deveria ser considerado inapropriado para crianças, especialmente para crianças de 12 anos.

São muitos os livros que abordam o Holocausto de forma a comover, impressionar e acima de tudo, deixar crianças bem conscientes da realidade, dos factos, dos acontecimentos que agitaram o mundo no tempo dos seus avós. Até porque é extremamente importante transmitir o legado histórico do que a humanidade foi capaz de executar no seu pior, para que esse conhecimento torne possível perceber os perigos da sociedade e a necessidade de uma permanente vigilância para que tal não volte, nunca mais, a acontecer.

Mas tal não será conseguido através de livros de terror. A exposição aberta aos pormenores da violência pode facilmente trazer o reverso da medalha. Leva geralmente a uma banalização da própria violência, fomentando atos de desrespeito pelo outro, sem que se tenha consciência do seu impacto, essencialmente quando de crianças se trata.

Se a maior parte das crianças de 12 anos assiste a séries televisivas com classificação etária para maiores de 18 anos (ouviram-se tantas discussões sobre A Casa de Papel ou mesmo A Guerra dos Tronos), por conterem cenas abundantes de sexo explícito ou de violência gratuita, a responsabilidade destes atos assenta nos pais, que, por inúmeras razões, as quais levariam a um extenso artigo, permitem que assistam a conteúdos legalmente interditos.

Este caso é diferente. Neste caso, a seleção é feita por representantes de instituições credíveis e competentes, que têm perícia na área, e que todos os dias trabalham para o desenvolvimento do estímulo pela leitura. São, acima de tudo, entidades nas quais depositamos a maior confiança para o aconselhamento em matéria de leitura e conteúdos literários. O que terá levado alguém a propor esta obra?

Será que alguém sequer pensou que, no leque de idades entre os 12 e 15 anos, todos os alunos do Algarve que desejam concorrer ao Concurso Nacional de Leitura têm maturidade emocional para ler esta obra?

Será que, aos 12 anos, depois de ler “O Tatuador de Auschwitz”, alguma criança quer voltar a ler um livro?

 

Assinado
Sara e Carlos, pais preocupados

 

 

 

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