Passeios confinados através das cidadelas de Faro

Com a cidade praticamente vazia, a nossa velocidade de circulação baixa ainda mais e passamos a escutar melhor a respiração e o bater do coração da cidade

Faro em tempos de pandemia – Foto: Flávio Costa | Sul Informação

Vivemos tempos tão conturbados que não sabemos ainda como irão influenciar o que resta do nosso tão curto ciclo de vida. Podemos especular ou teorizar acerca dos impactos de uma pandemia como a Covid-19 sobre o nosso estado de saúde, o nosso compromisso familiar e profissional, os nossos comportamentos, as nossas relações sociais, o uso dos nossos tempos livres.

Mas uma coisa é certa. O estado de emergência, a etiqueta social, os confinamentos, o trabalho à distância, ao desacelerarem as nossas rotinas e ritmos de vida fazem-me evocar a relação entre velocidade e conhecimento, um pouco à maneira das teses do filósofo Paul Virilio sobre as relações entre velocidade e política.

Quando viajo numa autoestrada a mais de 120 km/hora, não observo praticamente nada à minha volta, porque a atenção está totalmente focada na condução. Quando viajo numa estrada nacional e respeito o máximo de velocidade de 90 Km/hora, já sou capaz de observar as vistas que rodeiam as faixas de rodagem. Quando viajo numa estrada municipal a 50 Km/hora, a minha observação transforma-se em reconhecimento e conhecimento. Quando estou numa estrada de terra batida em meio rural, já não viajo, passeio pela paisagem campestre que está à minha volta.

Qual é a pertinência desta relação entre velocidade e conhecimento no momento presente? Com o confinamento e os passeios higiénicos logo pela manhã, descobri, a pouco e pouco, as várias “cidadelas ocultas” que se escondem por detrás da cidade de Faro, a cidade capital do Algarve.

E, com a cidade praticamente vazia, a nossa velocidade de circulação baixa ainda mais, o nosso foco de atenção é mais apurado, e passamos a escutar melhor a respiração e o bater do coração da cidade, mas, também, a luz, as cores e os cheiros, como se, todos, fossem nossos companheiros de passeio.

E é nessa altura que as cidadelas quase melancólicas de Faro se revelam em todo o seu esplendor. As cidadelas são, obviamente, uma metáfora para algumas facetas ou sinais distintivos da cidade que os ritmos de vida e a pressa não nos deixam apreciar devidamente. Trago aqui alguns desses sinais, a título de exemplo, tal como me foram sendo revelados pelos meus longos passeios matinais.

Em primeiro lugar, os bairros mais típicos da cidade e o povo farense que os habita e, bem assim, as casas senhoriais da velha burguesia farense que teimam em resistir ao tempo que passa.

Em segundo lugar, a cidadela toponímica de Faro revela-nos gente ilustre que desconhecemos e mundos fascinantes muito variados que, só por si, são um motivo suficiente para muitas visitas guiadas ao coração da cidade.

Em terceiro lugar, a cidadela pitoresca, as pracetas e os largos, as ruelas, os becos e os inúmeros recantos que a cidade contém e que são outras tantas histórias de vida.

Em quarto lugar, a cidadela panorâmica, as vistas da cidade, os seus pontos altos e postos de observação privilegiados, mas, também, os seus ângulos mortos; como não usei os drones nos meus passeios matinais, todas estas vistas podem ser, evidentemente, ainda revistas e aumentadas.

Em quinto lugar, a cidadela das lendas e narrativas, inevitável numa cidade tão antiga, que nos conta não apenas as lendas e narrativas, mas, também, os mitos, as paisagens literárias, os ditos e o anedotário populares, enfim, as histórias do povo simples.

Em sexto lugar, a cidadela dos farenses ilustres, marcos distintivos de uma época, que por vezes encontramos nas estátuas e na toponímia, mas que pecam seguramente por defeito; a escola de artes, cultura e tecnologia, a escola nova do século XXI, tem aqui uma responsabilidade acrescida.

Em sétimo lugar, a cidadela urbanística e paisagística, que a minha observação visual foi capaz de registar, tem a ver com a arquitetura urbana e os inúmeros exemplos de reabilitação que estão em curso neste momento por toda a cidade de Faro. É um mundo novo que se abre com o atual surto de reabilitação induzido pelo fator turístico.

Observar a tipologia desta reabilitação é uma escola ao ar livre: formas e volumes, janelas, portas, platibandas, paredes, terraços, pavimentos, mosaicos, pinturas, materiais. Além disso, é importante observar a vegetação, a composição florística e os arranjos paisagísticos da cidade e perceber como eles combinam com a reabilitação urbana. Podem organizar-se visitas guiadas para observar de perto esta enorme variedade de soluções urbanísticas e paisagísticas.

Em oitavo lugar, a cidadela da Ria Formosa, a ria que vai formosa, mas não segura. A cidade capital do Algarve tem uma responsabilidade especial no que diz respeito à ria formosa que será sempre o cartão de visita e o sinal mais distintivo da cidade. Nos meus passeios matinais observo quase todos os dias a ria que vai formosa, mas não segura. Ela é, apesar de tudo, pelas inúmeras espécies que acolhe e pela sua serenidade, uma suave delícia para os nossos sentidos.

Em nono lugar, a cidadela da campina de Faro, a sua área rural envolvente, é um pequeno pulmão para fazer baixar o ritmo e o pulsar da cidade. A campina é parte integrante da cidade, uma espécie de espelho da ria formosa, as duas têm um papel crucial no bem-estar da cidade, não apenas no sistema de abastecimento alimentar local como, também, no pulsar da vida coletiva e nos seus ofícios mais tradicionais que importa preservar a todo o custo.

Finalmente, a cidadela do desapontamento e da deceção, pois não quero esquecer que nos meus passeios matinais pelos bairros e ruas de Faro eu encontro muitos sinais de pobreza, abandono institucionalizado, velhice envergonhada e muitos sinais de doença metal. Fica o aviso, na ordenação das prioridades os últimos são os primeiros e esta é uma das piores sequelas da atual pandemia.

Nota Final

Eis, portanto, em breves, mas sentidas palavras, os pequenos nadas que a vida tem, uma revelação que se foi avolumando ao longo dos meus passeios matinais em tempo de confinamento e pandemia.

Espero que estes pequenos passeios confinados feitos a baixa velocidade possam aliviar o aborrecimento e a fadiga que nos atinge a todos.

E se os leitores puderem estar acompanhados durante os vossos passeios, então seria fantástico.

E por que não converter alguns destes passeios matinais em visitas guiadas? Não faltam sinais distintivos à cidade de Faro e seus arredores. Fica a sugestão.

 

 

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