Pare, escute e olhe! Ou o modo como usamos o pensamento…

Cada um de nós é, também, um produto de múltiplas velocidades, cada uma delas abrindo para uma realidade diferente da nossa vida

Nos tempos que correm, mergulhados nas redes sociais e sufocados pelo imediatismo mediático das fake news, somos presas fáceis do pensamento ligeiro e da simplificação argumentativa.

Vale a pena, nesta oportunidade, embora de forma breve e esquemática, olhar para alguns tópicos argumentativos mais frequentemente utilizados na retórica discursiva. Estes elementos de análise servem, se quisermos, como uma espécie de alerta à navegação:

1) O modo de olhar para um problema é uma parte importante do problema: o corte analítico da realidade é sempre uma escolha, uma redução da realidade e uma segregação de outras opções; a realidade é um caleidoscópio com muitas faces e a primeira observação é sempre uma pequena parte dessa realidade policromática;

2) A escolha das dimensões de análise, escalas ou fronteiras espaciotemporais é sempre um momento crítico do problema em questão e não raras vezes ilude e origina uma perceção errada do objeto, âmbito e natureza do problema; em particular, não esqueçamos nunca os ângulos mortos dos nossos habituais ângulos de observação;

3) Num país com muitas “ideias feitas”, a incerteza do futuro gera medos e ansiedades que são naturais, mas que, às vezes, tombam facilmente na radicalização; nesse país, é muito difícil ter razão antes de tempo, por isso, todos podemos ser apelidados de utópicos, românticos ou irrealistas, razão pela qual temos de escolher qual é a dose de utopia, romantismo e irrealismo que queremos tomar;

4) O nosso pensamento subliminar está sempre à espreita: qual é a parte da realidade que nós ocultamos? Ou qual é parte da realidade que não nos convém? E que arranjos de conveniência aproveitamos para fazer? Seremos nós os próximos caçadores furtivos dessa realidade dissimulada?

5) Em matéria de análise da realidade, muitos de nós são treinadores de bancada, isto é, produzimos com excessivo à-vontade juízos de valor e juízos normativos que são muitas vezes inconsequentes e contraproducentes; além disso, esta “tralha argumentativa” deixa rasto e fica, muitas vezes, a marcar-nos nas redes sociais;

6) Em termos analíticos, todos nós, em dose variável, gerimos conflitos interiores ou internos ao nosso pensamento, entre o que são os nossos valores e princípios de vida, as nossas intuições, os nossos conceitos da razão, os nossos interesses de ocasião, circunstância e conveniência e nem sempre o discernimento esclarecido chega em nosso socorro;

7) Na grande maioria dos casos, os problemas locais não se resolvem apenas, nem sobretudo, no plano local; os atores locais devem negociar permanentemente a vários níveis e escalas; este facto exige que os atores locais tenham qualidades e aptidões para a negociação institucional e a diplomacia, quantas vezes tão monótona e aborrecida;

8) Todos nós vivemos com uma perceção difusa, numa espécie de “labirinto ou poluição discursivos” que visa confundir-nos e que limita substancialmente as nossas possibilidades de sucesso: são ideias feitas, factos consumados, interesses adquiridos, tráficos de influência, publicidade enganosa, propaganda vulgar, jogos de sedução, simulacros de participação; um ruído de fundo que não nos deixa ver claro, mas que importa classificar e arrumar;

9) Todos sabemos que o todo deve ser maior do que a soma das partes; essa é a tarefa dos verdadeiros líderes, isto é, descobrir entre os valores e os interesses e para lá dos narcisismos pessoais e de grupo onde está o valor acrescentado de uma ação coletiva inovadora;

10) Vivemos o tempo da cibercultura, da economia do imaterial e do imaginário; nesta economia dos signos e dos símbolos a produção de imagens e representações positivas dos territórios é uma tarefa da maior importância para a produção de soluções viáveis; esta tarefa exige de nós uma particular habilitação e paciência, mas, também, uma competência coletiva que não podemos aligeirar e que nem sempre está imediatamente disponível.

 

Três leituras fundamentais a propósito

A propósito do modo como usamos o pensamento, recomendo a leitura de três filósofos muito atuais, Zigmunt Bauman (a modernidade líquida), Paul Virilio (política e velocidade) e Daniel Innerarity (o novo espaço público).

Zigmunt Bauman, recentemente falecido, é conhecido por ser o filósofo da “modernidade líquida”, uma metáfora para o estado da nossa condição humana: tudo é volátil, efémero, precário, transitório, passageiro, instável, temporário, fluido, enfim, líquido.

No plano teórico-filosófico a passagem do conceito de estrutura (sólido) para o conceito de rede (líquido) dá bem conta dessa transição. E estas noções líquidas e fluidas têm aplicação em todas as áreas, desde as relações amorosas e familiares até às relações de poder nos campos da economia, da sociedade, da política e da revolução digital.

É esta grelha de leitura transversal dos problemas contemporâneos que dá sentido, consistência e densidade aos seus escritos filosóficos e sociológicos e, bem assim, às suas inúmeras intervenções sociais e culturais.

Quanto a Paul Virilio, também já falecido, na base das suas reflexões está a triangulação entre velocidade, tecnologia e política. Na era da crono política a velocidade das transações excede o tempo da política, tornando o estado-nação uma figura cada vez mais decorativa.

Por outro lado, vivemos cada vez mais o dilema do prisioneiro: estamos presos nas teias do imediatismo e do mediatismo, a aceleração do tempo impede-nos de ver a diferença entre verdadeiro e falso, a alucinação da informação causa a pulverização da cultura geral, a velocidade do tempo real põe em causa a perceção do mundo sensível e a empatia entre os seres humanos.

Ou ainda, acerca da arte e da cultura do tempo lento, a abolição das distâncias geográficas significa o envelhecimento do mundo, o esgotamento de um mundo finito e o advento de uma imensa melancolia!

Quanto a Daniel Innerarity, numa sociedade cada vez mais contingente, distribuída e policêntrica, os territórios estão obrigados a aprender, a ser territórios cognitivos e reflexivos.

Neste contexto, a base territorial será progressivamente dessacralizada, o Estado-nação deixará de controlar o seu território, enquanto os movimentos mais radicais protestarão contra o estado porque este não garante a sua soberania.

Há, com efeito, uma discrepância muito grande entre a necessidade de uma identidade coletiva para enfrentar os desafios globais e, por outro lado, o radicalismo individualista, a necessidade de afirmar a nossa diferença radical.

Está a ser difícil conciliar estas duas dimensões do espaço público, pois a liberdade radical pulveriza e fragmenta todas as formas de organização, das mais pequenas até às maiores.

Esta é, também, a razão pela qual as políticas de integração ou assimilação correm o sério risco de ser contraproducentes, pois não é de identidade que se trata, mas de diferenciação e diversidade. As culturas, como as pessoas, são muito egoístas e afirmar a integração é despertar a desobediência civil. A política é vítima fácil desta circunstância.

Notas Finais

Perante esta radicalidade assim afirmada, o mundo não cabe em classificações, tipologias ou culturas existentes. Necessitamos de outras linguagens para lidar com singularidades, diferenças, exceções, descontinuidades, contrastes. Olhamos em volta e o que vemos?

Uma democracia virtual de reflexos condicionados, onde vemos tudo através de um écran que entra em concorrência com a escrita, a linguagem e a oralidade, a aceleração da realidade impede-nos de ver a realidade, o tempo humano é esmagado, o instantâneo e o imediato são os conceitos do tempo atual e dos nossos modos de vida, em vez de acontecimentos passamos a viver de incidentes e acidentes.

Talvez não seja o fim da geografia, como não foi o fim da história, mas para tal é fundamental que dediquemos um cuidado especial aos “tempos que o tempo tem”, desde o tempo lento da arte e da cultura até ao tempo infinitesimal dos instantes do quotidiano.

Segundo os ensinamentos de Paul Virílio, para cada velocidade uma realidade. Em cada velocidade e em cada aceleração uma linha vermelha e o risco iminente de violação dos limites do tempo humano.

No final, cada um de nós é, também, um produto de múltiplas velocidades, cada uma delas abrindo para uma realidade diferente da nossa vida. Não é mau, se formos bem-aconselhados.

 

 

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