A rede 5G, uma nova fratura dos territórios?

A sofisticação tecnológica do 5G compara com a simplicidade do nosso interior quase abandonado

Pela sua extraordinária relevância, peço licença aos leitores do Sul Informação para transcrever uma parte da Resolução do Conselho de Ministros (RCM, nº7-A/2020) de 7 de fevereiro relativa à introdução em Portugal da 5ª geração de comunicações móveis.

«A nova tecnologia de rede que agora emerge é a geração «gigabits», estimando-se que permita a transmissão mais rápida de um volume de dados muito maior (cem vezes superior), de forma praticamente instantânea (latência cinquenta vezes inferior), bem como a conexão de muitos mais dispositivos (um milhão de dispositivos por km2).

Para além da comunicação entre as pessoas é, agora, a comunicação entre as coisas (a «Internet das coisas») que encontra ambiente tecnológico para alterar significativamente o nosso quotidiano e a nossa forma de viver, passando a ser possível recolher e tratar, em tempo real, volumes de informação impensáveis com as tecnologias atualmente disponíveis, permitindo não só otimizar e melhorar os processos existentes, mas, sobretudo, potenciar o desenvolvimento de abordagens diferentes, quer ao nível de modelos de negócio, de prestação de serviços e de organização social, designadamente nos transportes, na saúde, na indústria, na logística, na energia, no entretenimento e na agricultura.

A rede 5G permite criar sinergias com outras tecnologias, designadamente a inteligência artificial, a realidade virtual e aumentada, a Internet das coisas e a integração das redes de satélites. Por isso, o país precisa de dispor de redes 5G nos setores que mais contribuem para as mudanças na competitividade e na qualidade de vida, seja nas universidades e escolas públicas, nos centros de investigação, nas zonas industriais, nos portos e nos aeroportos, em todos os modos de transporte, nos hospitais e centros de saúde, seja na gestão das cidades. E deve fazê-lo de forma que a oportunidade seja concedida a todo o território e a toda a população, para que o 5G não acentue as assimetrias regionais e, pelo contrário, contribua para as combater, alavancando uma transformação digital da sociedade.

Na União Europeia, definiu-se que, em cada Estado-Membro, pelo menos uma grande cidade fosse preparada para o 5G até ao final de 2020 e que todas as zonas urbanas e as principais vias de transporte terrestre tivessem cobertura 5G ininterrupta até 2025, sendo entendimento deste Governo estender o alargamento da cobertura 5G a todo o território nacional até 2030. Não sendo possível garantir este nível de cobertura de imediato, deve, em qualquer caso, aproveitar-se esta oportunidade para procurar alargar a cobertura do território através das atuais redes 4G, criando-se incentivos para esse efeito.

Assim, nos termos da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve assegurar as seguintes metas de natureza estratégica para o país:

i) Até ao final do ano de 2020, pelo menos uma cidade situada em territórios de baixa densidade, de acordo com a delimitação adotada pela Comissão Interministerial de Coordenação na deliberação de 26 de março de 2015, e uma cidade do litoral, com mais de 50 mil habitantes deverão estar cobertas com rede 5G, através de redes individuais de cada um dos operadores, de redes partilhadas ou de redes grossistas;

ii) Até ao final do ano de 2023 devem estar dotados com redes 5G:
I) Os concelhos com mais de 75 mil habitantes;
II) Todos os hospitais públicos, 50 % dos centros de saúde públicos situados em territórios de baixa densidade e 50 % dos centros de saúde públicos do litoral, que não se encontrem já cobertos por rede fixa de elevado débito;
III) Todas as universidades e institutos politécnicos;
IV) 50 % das áreas de localização empresarial ou parques industriais dos concelhos do litoral e 50 % das áreas de localização empresarial ou parques situados em territórios de baixa densidade;
V) Os aeroportos internacionais;
VI) As instalações militares prioritárias, tal como definidas pelo membro do Governo responsável pela área da defesa nacional;

iii) Até ao final do ano de 2024 devem estar dotados com redes 5G:
I) Os concelhos com mais de 50 mil habitantes;
II) 95 % do traçado das rodovias nacionais com tráfego superior a 7,3 milhões de veículo/ano;
III) A A 22, A 23, A 24 e A 25; as Estradas Nacionais n.º 1 e n.º 2;
IV) 95 % da linha ferroviária de Braga a Lisboa e do corredor ferroviário do Atlântico;
V) 98 % das linhas de comboio suburbanas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto;
VI) 98 % das redes de metropolitano de Lisboa, Porto e da Margem Sul do Tejo;
VII) O Porto de Sines, o Porto de Setúbal, o Porto de Lisboa, o Porto de Leixões e o Porto de Aveiro;

iv) Até final do ano de 2025, devem estar dotados com redes 5G:
I) Tendencialmente 90 % da população, tendo acesso a serviços de banda larga móvel com uma experiência de utilização típica de um débito não inferior a 100 Mbps;
II) Os restantes portos comerciais nacionais;
III) As rodovias com tráfego superior a 863 mil veículos/ano;
IV) A linha ferroviária Lisboa/Faro; e,
V) As restantes instalações militares.

Solicitar à ANACOM que estude a introdução de mecanismos que beneficiem os operadores que se comprometam a assegurar num prazo a determinar, individualmente ou em conjunto com outros, a cobertura em 4G da totalidade das escolas públicas de todos os níveis de ensino e da linha ferroviária do Norte.

Determinar que a receita proveniente do procedimento de atribuição do espectro radioelétrico para a rede 5G seja utilizada para a criação de medidas destinadas a apoiar projetos de estímulo à transição e inclusão digitais, designadamente na área da educação, da investigação, de produção de conteúdos digitais, da capacitação ou do fomento da literacia digital, bem como da transformação digital das empresas e da Administração Pública, nos termos que venham a ser definidos pelo Governo. Recomendar, ainda, a atribuição de um prémio pela ANACOM, para as melhores aplicações relativas à educação, à produção e disponibilização de conteúdos digitais, à gestão das cidades, ao turismo, ao trabalho e inclusão, à segurança, à indústria, à saúde, à energia e à proteção e sustentabilidade ambiental.

Determinar que, em execução da presente resolução, o Governo deve:

a) Identificar os instrumentos de financiamento de projetos 5G, que possam servir de base ao desenvolvimento de projetos e ensaios tecnológicos 5G, tendo em considerações as regiões e os setores da economia nacional;

b) Identificar e adotar as necessidades de interesse público relativas a segurança, defesa nacional e proteção civil relacionadas com as redes 5G, nomeadamente no respeitante ao futuro das redes de emergência;

c) Desenvolver e publicitar estudos relativos ao eventual impacto do 5G na saúde pública com o objetivo de dotar a população de informação rigorosa sobre o assunto;

d) Promover as iniciativas científicas, de investigação e pró-empreendedorismo que criem as condições para fomentar a capacidade endógena de conceber tecnologias, produzir conteúdos digitais, desenhar modelos de negócio, discutir padrões técnicos e reforçar a capacidade crítica da população na codefinição e na absorção das soluções de conectividade futura;

e) Apoiar o desenvolvimento de testes de casos de uso nas áreas da gestão da plataforma marítima e da gestão do território rural utilizando os sistemas 5G;

f) Estimular a criação de «zonas livres tecnológicas» onde possam ser desenvolvidos projetos experimentais;

g) Desenvolver iniciativas com vista à promoção da eficiência energética e da sustentabilidade ambiental na instalação de sistemas 5G».

Aqui chegados, não resisto a comparar esta RCM de 7 de fevereiro sobre a rede 5G com uma outra RCM de 27 de março (RCM nº18/2020) relativa à revisão do programa de valorização do interior. A comparação é eloquente.

A sofisticação tecnológica do 5G compara com a simplicidade do nosso interior quase abandonado. Confesso que fico sem saber o que pensar sobre o futuro da coesão territorial, tal é o número de boas intenções e profissões de fé que são formuladas em ambos os casos.

Uma coisa é certa e pode ser dada como adquirida: teremos a rede 5G em alguns pontos do território e teremos, também, um país 5V, um país com muitas velocidades e futuros muito diferenciados e incertos.

Notas Finais

No entanto, o que fica por esclarecer é muito mais do que aquilo que fica exposto nas duas RCM. Senão vejamos:

– É dito que a rede 5G é muito eficiente energeticamente e que ajuda a reduzir a nossa pegada ecológica, mas há ainda muitas dúvidas e muito por esclarecer em matéria de impacto sobre o ambiente e a saúde pública;

– É dito que, quando a cobertura territorial é muito onerosa para os operadores deve ser o Estado a fazer o investimento em cooperação com os operadores (o PN da Peneda Gerês), porém, as relações entre os operadores, o Estado e o regulador já conheceram melhores dias,

– É dito que as receitas obtidas com a venda das licenças de espetro electromagnético serão alocadas a um Fundo de financiamento do 5G, porém, há ainda dúvidas sobre os incentivos financeiros para melhorar a cobertura de rede através da atual rede 4G,

– É dito que a saúde pública e a ciber segurança estão asseguradas e em constante monitorização, porém, não vemos esclarecimentos convincentes sobre o assunto,

– É dito que a rede 5G nos faz entrar na era da hiper conectividade, porém, não se esclarece como se concilia o nível de utilização, a qualidade do serviço prestado e o preço ao cliente e se alcança, por essa via, a equidade e coesão territoriais.

Para mim, a rede 5G terá um duplo efeito de acumulação: aumenta os efeitos de aglomeração onde eles já existem (o litoral) e aumenta os efeitos de dispersão onde eles também já existem (o interior).

Assim, o interior mais remoto ficará nas mãos de plataformas de alojamento local, de turismo de natureza, de desportos radicais, de observação da fauna e flora, de apoio domiciliário, entre outras, ou seja, serão territórios em regime de ambulatório.

E a procissão ainda só vai no adro. Voltarei ao assunto.

Boas Férias, até setembro.

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