E depois da pandemia, a face dupla da justiça

Esta dupla face da justiça – cuidar do ambiente e cuidar das pessoas – tem de estar obrigatoriamente presente no conceito e nas boas práticas de Smart City, sob pena de ser entendida como uma cidade estúpida

A economia do mundo, com uma malha cada vez mais apertada, atingiu um grau tal de interdependência e interação que qualquer vetor desencadeia de imediato efeitos de ricochete por todo o lado. A Covid-19 é a demonstração disso mesmo. O risco global sempre iminente e o efeito sistémico de propagação são as duas propriedades emergentes mais virulentas da economia mundo em que vivemos.

É preciso afirmá-lo com toda a clareza: estas propriedades emergentes têm um forte nexo de causalidade com as agressões humanas ao ambiente e a desigualdade social (pobreza) do capitalismo atual, que são as duas causas maiores do presente mau estar civilizacional, ao mesmo tempo, um grave problema de justiça ambiental e de justiça social.

Acresce que, tanto as agressões ambientais, como a desigualdade e a pobreza, pela sua amplitude, nos colocam a todos, cidadãos do mundo, praticamente face a face e à mercê de outras tantas mutações do vírus ainda mais agressivas.

Estamos, assim, no limiar de uma nova fronteira civilizacional e à beira de um limite natural que a Covid-19 apenas veio revelar em toda a sua extensão. Vejamos alguns dos traços mais relevantes desta transição civilizacional.

Em primeiro lugar, é muito provável que assistamos nos próximos anos a um abrandamento do processo de globalização e a uma relocalização geográfica de algumas fileiras e cadeias de valor, pois a conjugação de mais protecionismo, automatização industrial e inteligência artificial permitem recuperar custos de produção muito significativos que anteriormente justificaram a sua deslocalização para o sudeste asiático.

Desse abrandamento fará parte, também, o controlo e a contingentação em matéria de liberdade de circulação dos migrantes económicos.

Em segundo lugar, o combate às alterações climáticas e às situações de pobreza irá aproximar a justiça ambiental e a justiça social. Esta aproximação entre as duas faces da justiça irá estimular a formação de economias de proximidade e sistemas produtivos locais (SPL).

O objetivo é o aproveitamento e a gestão racional dos recursos endógenos, de tal modo que criem emprego local, protejam o ambiente e auxiliem os grupos sociais mais desfavorecidos. As duas faces da justiça funcionarão como os barómetros fundamentais das novas economias de proximidade.

Em terceiro lugar, a pandemia da Covid-19 tem mostrado a fragilidade do modo de vida de alguns grupos sociais no interior das grandes metrópoles. Estes hiper-lugares correm, assim, o risco de se transformarem rapidamente em não-lugares portadores de um vírus especial, o vírus de uma “cruel desigualdade social”.

Esperemos que a sociedade digital e a cidade inteligente obriguem os hiper-lugares a repensar o seu gigantismo, a sua arquitetura e as suas funcionalidades em direção a uma cidade mais policêntrica e menos vertical do que a atual.

Em quarto lugar, a probabilidade elevada de uma grave ocorrência multirrisco avisa-nos de que nenhum Estado-nação estará em condições de enfrentar sozinho as consequências de uma ocorrência dessa natureza. Por isso, doravante, os Estados nacionais terão de se organizar em comunidades de risco e em redes de conhecimento e ataque de primeira linha que nos poupem a surpresas muito desagradáveis.

Em quinto lugar, a Covid-19 mostrou-nos o contributo fundamental das tecnologias digitais em momentos críticos, por exemplo: a biometria, a telemedicina, o teletrabalho, o ensino à distância, o comércio online, os serviços públicos online, as plataformas colaborativas, etc.

Pela força das circunstâncias, está a desenhar-se, progressivamente, uma outra sociedade contemporânea, uma outra cultura social e, quase seguramente, um outro padrão de vigilância e cidadania. Esperemos todos que seja uma sociedade de moderação, com conta, peso e medida.

Em sexto lugar, a pandemia da Covid-19 mostrou-nos como será o mercado de trabalho do futuro: mobilidade e nomadismo, variedade de formatos espaciotemporais, fórmulas muito diversificadas de pluriatividade e plurirrendimento, associadas a muitas plataformas locais que visam regular os sistemas produtivos locais e as economias de proximidade.

E, no final, teremos, ainda, o “rendimento básico garantido” como elemento complementar inovador no quadro de instrumentos da economia social de mercado.

Em sétimo lugar, a pandemia da Covid-19 mostrou à evidência como há funções de soberania que não podem ser aligeiradas. É o caso da saúde pública nas suas várias dimensões, em especial no apoio à sociedade sénior, mas é, também, o caso da segurança pública no combate à violação de privacidade e no crime informático, que crescerão exponencialmente à medida que prossegue a transformação digital das sociedades.

É, igualmente, o caso das prestações sociais da segurança social e, por último, mas não menos importante, a organização do poder judicial e da justiça em plena sociedade digital.

Em oitavo lugar, a coabitação da Covid-19 com a trumpolitics, o brexit, a crise das instituições internacionais e, agora, os efeitos gravosos e duradouros de uma recessão económica, provocam uma verdadeira convulsão na geopolítica mundial.

Aprofunda-se a desigualdade social, aumenta a vigilância digital, aperta-se o cerco às democracias políticas liberais e há uma certa psicologia das multidões que parece conformar-se com o espírito populista, autoritário e decadente das chamadas democracias políticas iliberais.

 



 

Em nono lugar, a Covid-19 vai obrigar-nos a refletir sobre o impacto que as grandes transições em curso – climática, energética, digital, demográfica, migratória, socio-laboral e agora, também, a emergência sanitária e os efeitos sistémicos de futuras epidemias – terão sobre as políticas urbanas, a saúde pública, as cidades inteligentes e o ordenamento do território, em suma, sobre a qualidade de vida dos cidadãos e a inteligência coletiva dos territórios.

Finalmente, em décimo lugar, nas cidades do século XXI, onde viverá a maior parte da população mundial, a vida ao quotidiano será verdadeiramente um grande desafio.

Esta é a razão pela qual o “espírito do lugar” nos remete para a reinvenção do quotidiano como uma necessidade urgente da saúde pública nas grandes cidades.

Estou a pensar, por exemplo, nas relações entre as artes de rua, a arquitetura e o espaço público, as tecnologias digitais e a instrumentalização dos equipamentos urbanos em matéria de vigilância eletrónica. Estar atento é, também, uma questão de saúde pública.

 

Notas Finais: cumprir as duas faces da justiça

A equação do risco global e do multirrisco coloca-nos no limite de uma nova fronteira cultural e civilizacional, aqui traduzida pela face dupla da justiça, ambiental e social, que continua por cumprir.

Senão, vejamos:

– Já lá vai o Acordo de Paris, é fundamental uma organização mundial com poderes reforçados para o combate às alterações climáticas, a transição energética, a descarbonização da economia e a formação das comunidades multirrisco, de acordo com os princípios mais elementares da justiça ambiental;

– Vem aí a tecnologia 5G, é fundamental uma nova ordem jurídico-política para a economia digital e uma proteção adicional para os trabalhadores em consequência das profundas alterações introduzidas nos mercados de trabalho, de acordo com os princípios mais elementares da justiça social;

– Estamos a envelhecer, a longevidade é cada vez maior, é fundamental um outro contrato social, uma outra sociabilidade para as relações interpessoais entre as gerações mais jovens, as gerações dos que trabalham e as gerações dos mais idosos, independentemente da sua condição de vida;

– As transições ecológica e digital abrem novas clivagens nos continentes menos desenvolvidos, é um imperativo humanitário salvaguardar os direitos fundamentais desses cidadãos, sob pena de eles nos devolveram todos os seus males em forma muita mais agravada;

– No desenho urbano das cidades inteligentes e criativas é fundamental que elas não se transformem numa simples máquina digital ao serviço de uma ideia tecnocrática de cidade, ao contrário, desejamos que sejam um genuíno hiper-lugar onde se cruzam o génio do lugar e a reinvenção do mundo;

– Depois da pandemia é fundamental que, em todos os casos, possamos salvaguardar o projeto europeu, a sua legitimidade política mais consubstancial, pois é o único ator da comunidade internacional que pode, ainda, jogar nos vários tabuleiros que acabámos de enunciar.

Uma nota final. Depois da pandemia da Covid-19, fica plenamente demonstrada a íntima conexão entre as duas faces da justiça. E esta dupla face da justiça – cuidar do ambiente e cuidar das pessoas – tem de estar obrigatoriamente presente no conceito e nas boas práticas de Smart City, sob pena de ser entendida como uma cidade estúpida.

Por isso, a minha advertência final. Uma cidade cada vez mais codificada pode colidir com a liberdade, a irreverência e a criatividade da comunidade humana que a habita. Sublinho a contradição, a tensão entre a banalidade e a reinvenção do quotidiano.

É preciso não esquecer que, para lá do tédio e da monotonia do quotidiano, há, também, os “pequenos nadas” e as micro liberdades do dia a dia que nos aliviam a dor da melancolia e solidão. A justiça ambiental e a justiça social recordam-nos esse imperativo categórico a todo o momento. É isso a política de cidadania ao quotidiano.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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