Entre o vírus e a bactéria, a Covid-19 e a “Xylella fastidiosa”

Se não tratarmos de cumprir a justiça ambiental e a justiça social por esse mundo fora, ele vai devolver-nos a sua pobreza e miséria sob múltiplas formas

A globalização alterou substancialmente o padrão de risco que pode ser expresso do seguinte modo: passámos do risco localizado para o risco globalizado, do risco concreto para o risco difuso, do risco conhecido para o risco desconhecido, do risco circunscrito para o risco sistémico, do risco visível para o risco invisível, do risco divisível para o risco indivisível, do risco particular para o risco coletivo, do risco privado para o risco socializado e do risco determinístico para o risco aleatório.

Por outro lado, se pensarmos nas nossas diferentes pegadas – ambientais, sanitárias, hídricas, digitais, alimentares, securitárias, tecnológicas, industriais – a possibilidade de haver episódios multirriscos é tão elevada que sentimos, de imediato, um nó na garganta.

Basta pensar, por exemplo, na convergência entre a pandemia, o risco de incêndio que se aproxima, o risco climático (seca extrema) ou o risco cibernético (ataques informáticos).

E poderíamos, mesmo, ir mais longe se pensarmos no conjunto de ameaças conhecidas pela sigla NRBQ, as ameaças de origem nuclear, radiológica, biológica e química, algumas das quais já experimentadas, por exemplo, na guerra da Síria.

A acrescer a estas eventualidades, como agora se comprova, sabemos que os custos do risco global são incomportáveis para os Estados mais vulneráveis e que o controlo do risco é uma tarefa infindável.

Além disso, é preciso contar com a encenação do risco e a sua espetacularidade que passam, geralmente, pelo crivo mediático e que condicionam fortemente a perceção do risco individual e a sua interiorização.

 

A globalização microbiológica e microinformática

Quando falamos de globalização e economia mundo, esquecemo-nos, frequentemente, da micro globalização, como se ela fosse infinitamente pequena e, portanto, incapaz de nos atingir.

A Covid-19 veio lembrar-nos que existe uma globalização microbiológica feita de vírus, bactérias e toxinas de muitas espécies e variedades. A globalização microinformática já aí está há mais tempo, apenas mais discreta e sem fazer vítimas mortais. Até ver.

Ora, as duas globalizações, a macro e a micro, estão profundamente ligadas, são as duas faces da mesma moeda e é esta característica que me assusta quando vejo a grave crise que atravessam as organizações internacionais e, em geral, o multilateralismo da ordem internacional.

Assusta-me aquilo que pode ser designado como “o paradoxo multilateral”, ou seja, o multilateralismo atravessa a sua crise mais grave de sempre no preciso momento em que a sua necessidade é mais urgente do que nunca. Os exemplos das agências das Nações Unidas, em especial, a OMC e a UNESCO estão aí para o provar.

Com efeito, estamos a assistir em direto a um novo agravamento das relações Norte-Sul, o norte a confinar-se e a recolher-se tratando dos seus problemas internos, e o sul entregue à sua sorte e vendo aprofundar-se a pobreza ambiental e a miséria humana.

Depois do Norte ter resolvido os seus problemas não se admirem que o Sul “exporte a sua pobreza e miséria” para os países do Norte, seja sob a forma de novos refugiados ambientais, refugiados de guerra e migrantes económicos, ou de velhos e novos vírus e bactérias, de bioterrorismo e ciberterrorismo.

 

Da Covid-19 à Xylella fastidiosa

Já aqui falámos da Covid-19, esse vírus cobarde que ataca sem avisar, qual passageiro clandestino na longa viagem da rota da seda que o trouxe da Oriente longínquo até ao Ocidente mais próximo de nós.

Agora é a vez da bactéria Xylella fastidiosa e amanhã, quem sabe, a vez de um qualquer vírus informático, pois os piratas informáticos que atacaram a EDP e a Altice, ameaçam fazer um novo ataque no próximo dia 25 de abril.

Por agora, refiro-me apenas à bactéria Xylella fastidiosa, recém-chegada, embora já ande pela Europa do Sul desde 2013 no sul de Itália.

À primeira vista, lembra uma cantora de opera romântica ou o nome de uma obra sinfónica do século XIX, o século do romantismo, onde algumas sinfonias eram denominadas de patéticas e fantásticas. Mas não é. É o nome de uma bactéria que ataca o mundo vegetal. Como já repararam, as estrelas do atual firmamento chamam-se vírus e bactérias, estrelas do mundo invisível, do universo microbiológico, ao contrário das estrelas coroadas por nós, os humanos.

Xylella fastidiosa é uma bactéria gram-negativa classificada como organismo de quarentena. É uma bactéria restrita ao xilema, o tecido das plantas vasculares por onde circula a seiva bruta, disseminada por insetos e com uma ampla gama de hospedeiros (mais de 300 espécies), onde se contam culturas agrícolas e espécies florestais de grande importância económica.

É um desafio de quase 30 anos na América para os produtores de videira e citrinos. O primeiro surto na Europa foi reportado em Outubro de 2013, no sul da Itália, na região de Apúlia.

A estirpe identificada em Itália é a Xylella fastidiosa, subsp. pauca, sendo responsável pela doença nas oliveiras. Como dissemos, é classificada como organismo de quarentena, estando incluída na Lista A1 da Organização Europeia para a Proteção de Culturas (EPPO) desde 1981.

A Xylella fastidiosa apareceu no Sul de Itália, em Outubro de 2013 na província de Lecce, e afeta mais de 300 hospedeiros diferentes (denominados “vegetais especificados”) constantes da Decisão 2015/789/EU, cuja sensibilidade à Xylella fastidiosa foi confirmada, tanto em estirpes europeias da bactéria, como não europeias.

Esta listagem de hospedeiros inclui árvores de fruto, espécies florestais, plantas ornamentais e também herbáceas. No entanto, o maior o impacto económico da infeção incide na videira, citrinos, amendoeiras, pessegueiro, luzerna e mais recentemente, desde 2013, na oliveira.

O desenvolvimento da doença na planta depende da capacidade da bactéria se implementar e de se deslocar do ponto de inoculação pelo vetor picador-sugador de fluido xilémico.

A bactéria tem uma taxa de crescimento reduzida e os sintomas, por vezes, manifestam-se tardiamente, impedindo qualquer medida de controlo. Como resultado, muitos hospedeiros podem estar infetados e serem assintomáticos, tendo uma evolução dissimulada, mas muito mortífera.

Por isso, a deteção precoce da presença da Xylella fastidiosa é tão importante para que, no caso de ser identificada a presença da bactéria, se possa desenhar um plano de erradicação atempado e eficaz.

O diagnóstico da doença por observação visual dos sintomas, em plantas isoladas, é difícil e aleatório. Nestes casos, a inspeção visual deve ser feita através da observação das plantas no campo realizando-se, em simultâneo, a confirmação da presença do vetor.

Contudo, devido à possível confusão com sintomatologia associada a outras doenças, a sua identificação remete para o procedimento analítico das plantas afetadas e posterior confirmação por técnicas laboratoriais de diagnóstico.

Está provado que a Xylella fastidiosa tem um grande poder de adaptação e captação de novos hospedeiros. A sua competência natural de adquirir novos genes, transforma-a num organismo com as valências necessárias para se poder adaptar a qualquer nicho ecológico.

Esta flexibilidade de adaptação e o impacto das alterações climáticas exigem um forte plano de prevenção, sob pena de as perdas de produção e outros danos sejam refletidos na economia europeia, o que reclamará medidas de controlo extremamente dispendiosas.

Não existindo meios de luta direta contra a Xilella fastidiosa, o combate a esta doença passa essencialmente por medidas de natureza preventiva, atuando sobre o vetor e o material de plantação, designadamente:

– Limitar a mobilidade das plantas hospedeiras nas áreas afetadas, uma vez que um grande número de plantas hospedeiras é assintomático;
– Ter um grande controlo sobre a qualidade fitossanitária das plantas em viveiro, verificar sempre a sua proveniência, combater os potenciais vetores e os seus abrigos;
– Em Itália, a fastidiosa afetou, maioritariamente, as oliveiras mais debilitadas, com carências nutricionais, sendo recomendada a aplicação de inseticidas nas áreas afetadas, limpeza dos olivais, poda e outras práticas culturais, a fim de melhorar a saúde geral dos pomares;
– As medidas incluem o uso de cultivares resistentes, quando conhecidas, certificação do plantio de material e a remoção e destruição de material infetado;
– A gestão de insetos-vetores e hospedeiros silvestres nos arredores dos pomares, olivais e vinhas é muito crítica.

 

Notas Finais

Em Portugal temos vários fatores que facilitam a entrada desta bactéria: uma posição geográfica muito particular e condições climáticas com invernos pouco rigorosos, a presença de insetos-vetores como o Philaenus spumarius, a Cicadella viridis e a presença de hospedeiros preferenciais como as oliveiras, a vinha, citrinos, sobreiros, amendoeiras e ameixeiras, loendros, quercus, que são culturas de grande importância económica para a agricultura portuguesa.

No dia 3 de Janeiro 2019, foi detetado em Portugal o primeiro foco de infeção da bactéria Xylella fastidiosa em plantas de lavanda localizadas no jardim do Zoo de Santo Inácio, em Vila Nova de Gaia.

A Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) divulgou um comunicado a dar conta de que a contaminação tinha aumentado e se estendia agora a 13 focos em outros espaços públicos e jardins particulares daquele concelho, afetando dez espécies de plantas ornamentais e espontâneas.

A identificação de plantas hospedeiras impôs, no imediato, um raio de segurança de 100 metros em redor das plantas contaminadas e ainda uma zona-tampão circundante de cinco quilómetros de raio, em redor dos focos detetados.

Mas os novos focos de infeção obrigaram à elaboração de um novo mapa que identifica, para lá da zona infetada e da zona-tampão, uma nova área demarcada, incluindo agora 33 freguesias, total ou parcialmente abrangidas, de seis concelhos (Espinho, Matosinhos, Porto, Gondomar, Santa Maria da Feira e Vila Nova de Gaia). Obrigou, assim, ao alargamento da área demarcada e a várias medidas de proteção fitossanitária.

A minha curiosidade pela Xylella fastidiosa resulta do interessante paralelismo que ela tem com o coronavírus. Se observarmos com atenção, vemos o seu lado insidioso, misterioso, até assintomático, e depois procedimentos semelhantes em matéria de prevenção, zonas de contenção e tampão e zonas demarcadas. Estamos a falar, evidentemente, do seu impacto sobre plantas e não sobre humanos e animais.

E termino como comecei. Se não tratarmos de cumprir a justiça ambiental e a justiça social por esse mundo fora, ele vai devolver-nos a sua pobreza e miséria sob múltiplas formas e uma das mais virulentas, não tenhamos dúvidas, será a globalização microbiológica e bioquímica. E a procissão ainda só vai no adro.

E lembrem-se do que disse o Secretário-geral da ONU, António Guterres “Se não tratarmos dos pobres, os pobres tratarão de nós”.

 

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

Nota: A informação sobre a Xylella fastidiosa foi recolhida junto dos comunicados da Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV).

 

 




 

 

Comentários

pub