A paisagem, como a vida, não se detém no medo

Ultrapassada a necessidade dos actuais sacrifícios, queremos continuar a estar separados?

A 11 de Setembro de 2001, o ataque terrorista às Torres Gémeas do World Trade Center, na baixa de Manhattan, em Nova Iorque, ceifou a vida a cerca de 2.700 pessoas, ferindo muitos outros milhares e traumatizando milhões.

Este ataque, para além da sua dimensão humana, política e económica, teve um efeito avassalador em termos psicológicos e sociais à escala mundial, ou não vivêssemos – já então – numa sociedade globalizada.

O medo passou a ser presença constante, e a sua gestão nos mais variados níveis do quotidiano uma preocupação de primeira ordem. Sem saber onde ou em quem identificar os sinais da ameaça – se o coração da cultura ocidental fora atacado sem dó nem piedade, o que estaria a salvo? – passámos a olhar o próximo, e principalmente o “estranho” (que somos todos nós em relação a nós todos), com desconfiança.

A paisagem e, dentro dela, o espaço público, é onde a comunidade se realiza verdadeiramente, onde o espírito de lugar, que é também espírito das gentes, é herdado, apropriado, comungado e edificado por todos. De tal forma, que é nos espaços públicos de uma sociedade que mais fácil e eloquentemente ela se revela e caracteriza. Nos comportamentos sociais, nos hábitos de utilização, nas sonoridades, na linguagem arquitectónica dos espaços, na presença da vegetação e na forma como ela é tratada, no asseio e cuidado emprestado à manutenção, entre muitos outros pequenos e grandes factores. É também espaço de higiene mental, de desafogo, descompressão, de (re)encontro com o sortilégio das nossas raízes telúricas perdidas – mas não cortadas – por exemplo em parques e jardins (que são ainda por cima viveiros de amor e de poesia).

É espaço de contacto com nós próprios e com os outros. Onde nos permitimos ser humanos, numa sociedade cada vez mais desumanizada.

Arrisco mesmo dizer, sem prova científica mas com intuição empírica razoavelmente informada, que o que mais nos atrai nos espaços públicos é mesmo a presença ou a possibilidade, consoante a vontade, de contacto com o próximo, em literal proximidade ou figurativo pano de fundo para um isolamento pessoal.

Também aqui o medo entrou, em 2001, ao ponto de serem produzidos documentos orientadores para a concepção e construção de espaços abertos (soft targets) preparados para dificultar atentados terroristas ou outros eventos anómalos (perturbações de ordem pública, maioritariamente) e para uma mais eficaz intervenção das forças da autoridade e supressão de alterações da “normalidade”. Por força da infeliz repetição de ataques terroristas um pouco por todo o mundo, desde então, muitos desses manuais, seja nos Estados Unidos da América ou na União Europeia, são recorrentemente (re)visitados e actualizados.

Curiosamente, no epicentro do ataque ao World Trade Center, uma árvore foi impossivelmente resgatada do entulho do Ground Zero, recuperada, e hoje integra o memorial às vítimas do 11 de Setembro. Foi baptizada como “Survivor tree” (árvore sobrevivente). Uma pereira-de-jardim (Pyrus calleryana, originária… da Ásia) que representa hoje resiliência e sobrevivência, sendo anualmente distribuídas plântulas de si originárias, para que se reproduza em vários pontos dos EUA, como testemunho de esperança na adversidade e renascimento.

​O medo, ainda que presente, não vingou no desenho do espaço público. Este continuou a ser orientado por princípios – embora toda a regra tenha excepções, obviamente – criativos e não destrutivos, e a vivência busca a alegria e o bem-estar, não a segurança (no sentido que aqui se trata, naturalmente). Outras coisas passaram, como videovigilâncias e outros métodos que, dissuasores, são também controladores, num debate inesgotável e de aparentemente impossível resolução.

 




 

O medo que hoje nos visita é diferente. É também invisível, e não tem também rosto. Pior, tem a possibilidade de todos os rostos, até os mais próximos, e é um medo que não se prende necessariamente com o próprio, mas antes com outros, mais idosos e/ou frágeis.

A forma como este medo nos ataca no espaço público, é particularmente violenta: subtrai-nos desse espaço, esvazia-o de nós e esvazia-nos a nós dele. Não há manuais, não há orientações para o desenho e concepção. Há apenas vazio.

O espaço público transferiu-se para o espaço virtual, testando os seus limites e a sua real eficácia, enquanto second life. agora por obrigação e não por opção. A geografia pulverizou-se no espaço que a não tem, tentando mostrar que não há longe nem ausência.

Mas não há também toque ou presença, quebrando a fundamental empatia e perpetuando a saudade.

Ninguém consegue antever os efeitos da suspensão – estranha, porque freneticamente mediatizada, e tantas vezes pouco informada – em que o Mundo mergulhou.

Será este um ponto de viragem para a Humanidade? Será este vírus (até pela possibilidade de advir de perturbações ambientais) o catalisador de que precisávamos para a tão necessária catarse que as evidências ambientais, sociais e económicas há muito aconselham?

O futuro não se interrompe.

Por isso tal importa equilibrar, de forma ponderada e eficaz, o confronto entre o optimismo néscio e o imobilismo fatalista, entre esperança e terror. Afirmar que todos vamos ficar bem – quando tantos já não estão e sabemos que tantos não vão ficar –, que a Economia, se deixada à vontade, resolverá tudo, acreditar que o Mundo acabará – por trágica e assustadoramente veloz que seja a mortandade desta doença, por exemplo os números de mortes por fome esmagam-na – ou acreditar que subitamente devemos mergulhar em distopias autoritárias, são variantes de bloqueio a um necessário realismo pragmático, simultaneamente optimista e pessimista.

Não pertencendo às hordas de especialistas ad hoc que povoam as redes sociais em intensa gritaria, não sei e muito menos possuo certezas monolíticas (daquelas que invariavelmente erram) acerca de como se alcança um tal equilíbrio para desenlace do actual bloqueio. Mas gostaria de ver esse debate encetado e, podendo, dele participar enquanto cidadão.

De entre outras coisas, será o resultado desse diálogo a determinar a (re)ocupação futura dos nossos espaços de identidade e a forma como se organizarão e viverão doravante.

Porque a paisagem é um processo vital de construção simbiótica – benéfica ou prejudicial para uma ou ambas as partes, depende dos casos – em que se estabelece uma relação entre gente e terra, que mutuamente se entranham uma na outra. A paisagem é assim auto-biografia dos povos, das culturas, dos tempos.

Como a “Survivor tree” demonstra, a paisagem não se detém no medo, porque é a própria vida que nele se não detém.

Aqui no Lugar ao Sul, tem sido recorrente e eloquentemente mostrado como no passado já ultrapassámos adversidades similares. Com responsabilidade, com dor, é certo, mas acima de tudo com crescimento e maturidade.

O medo não constrói nada. Excepto muros. E muros dividem, não unem.

Ultrapassada a necessidade dos actuais sacrifícios, queremos continuar a estar separados?

 

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 




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