Identidade e desmantelamento

Sobre Paisagens – mais um artigo de José Carlos Barros

Platibanda – Foto: Filipe da Palma

A SERRA,
na Carta Topográfica do Termo da Vila de Cacela, desenhada em 1775 por José de Sande Vasconcelos, é um espaço indiferenciado de cerros estilizados: não interessa.

Sem gente (e assim será quase sempre, excluindo as escassas décadas entre o início das grandes arroteias de finais do século XIX e a campanha do trigo da primeira metade do século XX), sem actividade económica, de abundante contará apenas com uma sucessão de cerros e inúmeros barrancos formados ao longo do tempo pela erosão de águas a correr à superfície do xisto impermeável.

A Serra é então esse mundo à parte, monótono, de exíguo povoamento disperso por pequenos aglomerados, lugares e casais, com espaçadas várzeas de aluvião onde se cultivam hortas e pomares. Compreende-se o desinteresse de Sande Vasconcelos: a actividade económica e social desenvolve-se, essencialmente, a Sul dos ondulados, das cumeadas sucessivas, numa faixa estreita e aplanada entre as areias da praia e o xisto, em calcários do miocénico, numa complexidade geológica e paisagística que não é possível explicar pela tradicional divisão do Algarve em três fatias cortadas paralelamente à linha de costa meridional.

E é por aí, pois, que esta cartografia se liga aos interesses do Reino — nessa dinâmica económica e social entre a urbe e o campo que o desenho de Vasconcelos tão sabiamente busca no pormenor dos pontos de divisão do Termo, da delimitação rigorosa das parcelas, na diferenciação da qualidade dos solos, na identificação do Forte e das casas da Vila, das linhas de água e dos caminhos da rede viária, das fontes e das noras, dos lagares e dos fornos de cal, das culturas agrícolas e dos conjuntos arbóreos, dos valados, dos muros, das sebes de compartimentação com o agave e as opúncias das Américas a delimitarem a propriedade ou a defendê-la — espinhosas… — do inoportuno trânsito dos animais de fazenda…

É certo que o concelho de Cacela está, à data da elaboração da Carta — e quase quinhentos anos depois do foral outorgado por D. Dinis –, próximo de extinguir-se por decreto, com o seu Termo a integrar-se, não tardará, num novo concelho (Vila Real de Santo António) cuja sede por essa altura se vai erguendo, uma dezena de quilómetros a nascente, na Foz do Guadiana. Mas este é então, ainda — a Carta Topográfica o dá a entender… –, um dinâmico território agrícola e comercial de onde (como nos conta Hugo Cavaco no estudo elaborado a partir das actas de vereação do concelho de Cacela numa década de governo autárquico na segunda metade do século anterior à da elaboração da Carta) tudo se exporta («pão, palha, pipas de mosto, mel, azeite, amêndoa, vinho, azeitona, cal, bois, porcos, gado caprino e ovino»), num mundo de profissões que vão do serralheiro ao pantofeiro, do criador de gado à lavadeira, do aguardenteiro ao barbeiro que era também sangrador, da padeira ao almocreve e à tecedeira, do apicultor ao eguariço…

É TUDO ISTO
que o processo de destruição da Paisagem, nas últimas décadas, leva e arrasta: a diversidade, a bio-diversidade, a identidade, a Cultura, o orgulho e a auto-estima: até tudo, na monotonia do que menoriza, ser igual.

O ABACATE,
a anona-ou-lá-o-que-é e os frutos-vermelhos de hidroponia produzidos em estufas com recurso à impermeabilização dos solos, à acumulação de plástico, ao uso de elementos metálicos, ao abuso de agro-químicos e ao acesso condescendente à água e aos fundos comunitários, não desenham apenas uma Paisagem nova: inscrevem no território, sobretudo, a dimensão do desastre ou da rendição de uma Região que invoca, e reclama dos outros, aquilo que ela própria, ostensivamente, recusa: uma ideia de futuro.

José Eduardo Horta Correia explica nos seus escritos como, no Algarve, andam a par o processo de destruição do património e a sua histórica e ostensiva desvalorização, sobretudo — é certo — por parte de quem nos olha de fora. O problema é que deixámos — os que nascemos ou somos do Algarve — que este olhar, preconceituoso e lorpa, nos contaminasse até o tomarmos como nosso ou deixar de nos incomodar, numa espécie de anestésica aceitação de pressupostos. Ora, como Horta Correia lembra, a identidade e o futuro são coisas indissociáveis: uma Região que não é capaz de afirmar-se culturalmente, que não defende e afirma a sua identidade, não existe.

O ÍMPETO DESTRUIDOR
leva, no mesmo caudal, a arquitectura e a Paisagem, o bem cultural globalmente entendido, a eira e o monumento, a açoteia e o ecossistema, o conjunto urbano e o sítio. Porque nenhuma destas coisas, individualmente, faz sentido sem nenhuma das outras — espelho em que deixámos de ver o nosso próprio rosto.

OS ESPARGOS
são do Inverno, deste mês de Fevereiro que está a chegar ao fim — e acabei agora de me lembrar como morrem bem no prato. Crescem nos incultos, na sombra e na humidade que as copas das árvores desenham em elipses no solo rústico, rude, ruderal, chão de oliveiras, de azinheiras dispersas, de alfarrobeiras com as raízes enterradas no calcário.

Cada vez são mais difíceis de apanhar — porque um sistema de monocultura regada, terraplenadora, encerrada em muros de vedações metálicas altas, com mão-de-obra emigrante, vai levando a eito o antigo mosaico policultural.

Mas os que há, os que é possível ainda apanhar, devem ser cortados à mão, um a um, a partir da cabeça do espargo, e apenas enquanto estalarem.

Rejeitadas as extremidades inferiores, e assim amanhados, escaldam-se com água a ferver. Tirando-se-lhes assim o excessivo amargor, juntam-se então, já temperados com sal, ao alhinho picado em azeite que ficou a alourar. Depois adiciona-se leite (eis o segundo segredo, já revelado o primeiro de se partirem à mão), deixando-se que por algum tempo acompanhe esse ligeiro refogar.

Finalmente se lhes juntarão os ovos sem que excessivamente se mexam, deixando-os abertos, fofos, um bocado soltos, como se estivessem cheios de oxigénio lá dentro. E eu quase a esquecer-me de como morrem tão bem num tacho ou numa frigideira em que começa por se alourar alhinho picado em azeite…

O MESMO
com a palmeira-anã, ou das vassouras: é a única palmeira do Algarve, a única que espontaneamente cresce na Região, em solos pobres de matos, do litoral ao sopé da serra, entre o aderno e a aroeira. Também os novos povoamentos monoculturais a foram marginalizando — até quase, em passeios a pé por onde os seus leques e as suas flores amarelas se erguiam na paisagem rasteira, deixar, praticamente, de ver-se.

E ninguém repara que a palmeira-das-vassouras vai desaparecendo, pela razão simples de que já esquecemos os seus usos, a arte da empreita que se lhe associava, os utensílios e os objectos que nasciam dela: vassouros ripados de caiar os muros e as paredes das casas, os caça-moças dos bailes-de-roda, as alcofas, as golpelhas dos burros, as seiras e os capachos, as patacas, as cevadeiras, os vasculhos…

[AGORA
há na Loja dos Trezentos.]

O PROCESSO
de desmantelamento patrimonial não fez as distinções de Sande Vasconcelos entre a Serra e a estreita faixa que, a Sul, sobe a partir da linha de costa. Foi tudo a eito: processos sábios de aproveitamento de água subterrânea, pomares de sequeiro, eiras e noras, chaminés rendilhadas, de grelha, de balão, cornijas e cimalhas, rebocos de argamassas de cal, escaiolas, pigmentos rosados e verdes, ocas e almagres, massas e esgrafitos dos cunhais e das ombreiras, platibandas, açoteias… Tudo a eito…

ENTRE TUDO ISTO,
no entanto, talvez a destruição de platibandas seja a mais perfeita metáfora do processo de décadas de desmantelamento patrimonial. Se é verdade que, como Jacinto Palma Dias ensina, a platibanda se afirma pela diferença, pela individualização, pela identidade — a sua destruição progressiva é a perfeita imagem de um processo em que abdicamos do futuro, na exacta medida em que abdicamos da afirmação do que nos distingue.

 

Autor: José Carlos Barros é Arquitecto Paisagista

 

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LEITURAS RECOMENDADAS:

— GTAA Sotavento (coordenação geral: Vítor Ribeiro): Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional. Edição da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, 2008.
— HUGO CAVACO: Cacela no Século XVII — Dez anos de Governo Autárquico. Edição da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, 1990.
— JACINTO PALMA DIAS: A metáfora da água, da terra e da luz na mitologia do Algarve arcaico. Editora Guadiana, 1999.
— JOSÉ EDUARDO HORTA CORREIA: O Algarve em Património. Gente Singular Editora, 2010.

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