Em Giões, entre o almece, o pau roxo e o umbigo-de-vénus

Turistas foram até ao interior de Alcoutim “Colher e Cozinhar”, à descoberta da comida esquecida

«O senhor António produz mel», explicava Alexandra Santos. «Eu não! As abelhas é que produzem!», respondeu logo, com um sorriso, o senhor António, segurando na mão um frasco do seu mel escuro.

A cena passou-se este domingo, dia 26, na aldeia de Giões, concelho de Alcoutim. Foi mais uma jornada do Festival da Comida Esquecida, no caso a atividade “Colher e Cozinhar”, que levou um grupo de duas dezenas de pessoas de várias nacionalidades à descoberta desta zona, bem pertinho do rio Vascão, entre o Algarve e o Alentejo.

À casa do senhor António, o grupo foi buscar o seu mel de «rosmaninho, eucalipto e outras flores mais», que depois se havia de comer ao almoço.

Tudo começou num dos largos da aldeia, onde os participantes comeram almece, alguns pela primeira vez na vida. E o que é almece? É o soro do leite de ovelha ou de cabra, um subproduto do fabrico de queijo e de requeijão, que se costumava comer nestas zonas do interior do Algarve e do Alentejo logo de manhã, adoçado com mel, açúcar e canela ou um pouco salgado (era o caso), com migas de pão dentro.

«Era o pequeno almoço, nos meus tempos de criança, aqui por estes lados», explicava um dos participantes. Hoje, o almece, mesmo onde ele abunda, foi substituído por outras coisas bem menos saudáveis. É, portanto, uma «comida esquecida».

 

Para aquecer, porque estava fresquinho nesse domingo que amanheceu com sol e nuvens depois de uns diazitos de abençoada chuva, havia café de cevada.

Depois, o grupo seguiu a pé pelas ruas estreitas da pequena aldeia, hoje habitada sobretudo por idosos, até chegar a uma ribeira, onde a água já corria. «Que alegria ver a ribeira com água», dizia Ana Seixas Palma, da organização do Festival da Comida Esquecida.

A água não era ainda muita, por isso houve quem a atravessasse a vau, enquanto outros passaram pelas poldras, feitas em cimento no leito da ribeira. Ninguém se molhou, nem o Alexandre, o mais pequeno do grupo, calçado com umas belas galochas vermelhas.

Do outro lado da ribeira, de alcofas e cestos na mão, começou a colheita de plantas silvestres, que haveriam de ser usadas na salada (umbigo-de-vénus, mostarda-selvagem) ou no chá (macela).

De seguida, foi a vez de ir conhecer o rebanho de 300 cabras algarvias do Senhor Jorge, um dos maiores rebanhos do país, desta raça. Os participantes assistiram à ordenha mecânica das cabras. De cada uma delas, explicou a senhora que estava a tratar da ordenha, «tiramos um litro, dois litros, depende».

 

Dali, o grupo seguiu para o casão da quinta da Ana Paula, do José e dos seus filhos João e Gabriel. Foi lá, no meio de fardos de feno, alfaias agrícolas e muitas galinhas cacarejantes, que o grupo andou à caça de ovos para o almoço.

Como explicou Luísa, do turismo de habitação Recanto d’Aldeia, parceiro do festival, «esta é uma família como já há poucas por aqui. Todos trabalham, para além dos mais novos estudarem. Os pais são criadores de ovelhas e negociantes». O Gabriel, o mais novo da família, explicou que o que mais gosta de fazer é mesmo «brincar com os cães». E havia desde rafeiros do Alentejo a border collies, todos simpáticos com os visitantes.

Depois de conhecer as galinhas, os cães, as ovelhas, os porcos e as cabras, o João e o Gabriel foram mostrar os dois cabritinhos, que tinham nascido na véspera. Todos quiseram fazer festas nos chibinhos e tirar fotografias com eles.

Foi também no casão que os participantes experimentaram ordenhar uma cabra, mas à mão, à moda tradicional. A experiência correu bem à nutricionista brasileira Ivani, que está na Universidade de Coimbra a fazer um doutoramento e veio até ao Algarve para conhecer o que é isto de «comida esquecida». Como uma verdadeira profissional, depressa conseguiu extrair o leite da cabra. O bicho, por seu lado, parecia espantado com toda aquela gente à sua volta, mas aceitou a coisa sem sequer esboçar um coice.

A criadora Ana Paula explicou que usa o leite das suas cabras para fazer queijos frescos, apenas para consumo da família. E queijo de cabra fresco haveria de fazer parte da rica ementa do almoço. Mas ainda é cedo para chegarmos à mesa.

 

Depois, na horta da família, os participantes foram arrancar da terra, lavar e comer cenouras tenras, mas também apanhar coentros, tomates e alfaces, que ainda se mantiveram desde o Outono.

«As hortas, no Inverno, têm pouca coisa. Essencialmente há couves, as favas estão quase a aparecer. Este ano, porque tem chovido pouco, ainda está pior», explicou Alexandra Santos, da organização.

Começaram então os trabalhos culinários, num espaço exterior do Recanto d’Aldeia. Sob a orientação da jovem chef Margarida Vargues, foram distribuídas as tarefas: amassar para fazer bolo da esfregadura (outra comida quase esquecida), descascar alhos e cebolas, partir o pão, fazer a salada de pau roxo com azeitonas de sal, cortar os enchidos do Zambujal, preparar e cozinhar os espargos bravos com ovos (que tiveram a mão de um especialista local), preparar a salada de alface com as plantas silvestres colhidas.

O pau roxo, na realidade uma cenoura de variedade local, tradicional, que é roxa e amarela por dentro e por fora, ainda é cultivada, mas cada vez menos. É também uma verdadeira (e deliciosa) «comida esquecida». Não muito longe de Giões, em Castro Verde, a 20 de Janeiro, ainda se faz a Feira do Pau Roxo, mas este ano foi pequena a quantidade desses tubérculos que por lá se venderam. A falta de chuva atrasou as hortas…

Ao lado dos participantes, que se atarefavam nos trabalhos que lhes foram entregues, estava a chef Margarida Vargues, que, num enorme panelão, preparava um ensopado de borrego, que haveria de revelar-se delicioso.

 

 

A meio da preparação do almoço, o campo ali ao fundo foi atravessado pelo rebanho do senhor Jorge, com os badalos a ecoar no vale. Nesse domingo, as cabras saíram mais tarde para pastar, por causa dos visitantes, e pareciam ir com pressa para encontrar a erva verdinha que já despontou.

Depois foi tempo de sentar à mesa, para partilhar e degustar o que fora confecionado por todos. O repasto findou com bolo feito de massa de pão e mel (de Martinlongo), os bolos da esfregadura, as deliciosas filhós do Café do Poço Novo, de Giões, e um brinde com licor de funcho feito pela nossa anfitriã Luísa, do Recanto d’Aldeia.

A fechar, a foto de grupo, a cargo do fotógrafo Vítor Pina.

A próxima edição do Colher e Cozinhar será já no dia 23 de Fevereiro, em Maria Vinagre, Aljezur. As alcagoitas que por ali se produzem são, certamente, uma das «comidas esquecidas» que hão-de figurar na ementa. Os bilhetes podem ser comprados clicando aqui. E é bom que os interessados se despachem, porque os grupos são pequenos e os bilhetes costumam voar.

Depois, voltarão os Piqueniques de Charme do festival: no dia 28 de Março será na aldeia da Penina, aos pés da Rocha da Pena, no interior de Loulé, enquanto a 18 de Abril será na aldeia de Santo Estêvão, no interior de Tavira.

O Festival da Comida Esquecida é uma organização da QRER – Coop. para o Des. dos Territórios de Baixa Densidade, com o apoio do 365Algarve, das Câmaras de Loulé e Tavira, do Vila Vita Parc, do Projecto TASA e da ProActiveTur. O parceiro turístico é a Barroca – produtos culturais e turísticos.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação e 365Algarve (quando identificadas)

 

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