Descobrir o exótico no Universo

Jocelyn Bell dedicou parte da sua carreira a apoiar raparigas estudantes

A atenção ao detalhe levou a astrónoma Jocelyn Bell a confirmar a existência de um dos objetos mais exóticos e mais importantes em astronomia: as estrelas de neutrões.

Um certo “ruído”
Natural da Irlanda do Norte, onde nasceu em 1943, Jocelyn Bell estudou Física em Glasgow, na Escócia. No princípio da década de 60, iniciou o seu doutoramento em Cambridge.

Com os colegas, construiu um novo radiotelescópio no Mullard Radio Astronomy Observatory. Na aparência um campo de estacas ligadas por fios, destinava-se este novo equipamento à deteção de fontes intensas no rádio, designadas quasares, que hoje se sabe serem núcleos muito brilhantes de galáxias longínquas.

Concluída a sua construção, o trabalho de Jocelyn Bell consistiu em obter e analisar o registo de emissões no rádio provenientes da abóbada celeste, registos que em geral preenchiam diariamente cerca de 300 metros de tiras de papel.

Os sinais que a astrónoma procurava eram bastante mais intensos do que um certo “ruído” que lhe despertou a atenção. Tratava-se de uma pulsação muito rápida, com um período de 1,34 segundos. O sinal era tão subtil que o seu próprio orientador de doutoramento, Anthony Hewish, estava disposto a ignorá-lo.

Bell descartou a possibilidade de ser uma interferência artificial com origem na Terra, já que persistia durante meses e acompanhava o movimento aparente das estrelas. Também a hipótese de um contacto extraterrestre foi rejeitada, pois Bell descobriu, entretanto, noutras direções do céu mais três fontes pontuais no rádio com as mesmas características: pulsações de uma fração de segundo a pouco mais de um segundo.

Bell e Hewish começaram então a conjeturar o tipo de objeto astronómico que poderia ser a origem desses sinais. Uma coisa era certa: pelas leis da Física não poderiam ser estrelas. Variações tão rápidas na emissão de radiação teriam de ser provenientes de objetos muito mais pequenos do que as estrelas.

O indício de uma possível explicação surgiu quando foi detetada, em 1968, uma fonte do mesmo tipo na Nebulosa do Caranguejo, na constelação do Touro. Esta nebulosa é constituída pelos restos de uma estrela cuja explosão (“supernova”) foi observada e registada por astrónomos em 1054.

Os restos mortais das estrelas
Hoje os astrónomos sabem que as supernovas são a forma como certas estrelas terminam a sua vida, esgotada a energia que as fez brilhar durante milhões, ou milhares de milhões de anos. No entanto, até à década de 1920, apenas era conhecido um tipo de “cadáver” estelar, as designadas “anãs brancas”.

Extinta a pressão da energia produzida no interior da estrela, a matéria abate-se sob o efeito da gravidade, já sem nada que se lhe oponha. O resultado é um corpo pequeno e muito denso. Em geral, as anãs brancas são corpos com uma massa semelhante à do Sol, mas compactada num corpo com dimensão comparável à da Terra. Devido ao seu pequeno tamanho, a energia térmica que ainda conservam atribui-lhes a cor branca, por estarem ainda muito quentes.

Até à terceira década do século XX, pensava-se que as anãs brancas eram sempre o estádio final da vida das estrelas, independentemente do tamanho destas. Mesmo as estrelas maiores haveriam de expulsar para o espaço a maior parte do seu material, reduzindo-se a uma anã branca.

Em 1930, o astrofísico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar, que estudou em Inglaterra antes de se fixar nos Estados Unidos, calculou que o processo físico que impede as anãs brancas de colapsarem ainda mais só é aplicável para aquelas que tenham uma massa inferior a 1,44 vezes a massa do Sol. Para corpos mais massivos, dá-se um colapso gravitacional ainda maior e estaremos então na presença de um outro objeto.

Em 1933, Fritz Zwicky e Walter Baade, nos EUA, trabalhavam precisamente sobre as explosões estelares do tipo ‘supernova’. Inspirados pela recente descoberta do neutrão, propuseram que estas explosões deixariam para trás um corpo tão denso que a sua pressão seria suficiente para fundir os protões e os eletrões, convertendo-os em neutrões.

Uma “cidade” de neutrões
Uma “estrela de neutrões” teria apenas algumas dezenas de quilómetros de diâmetro, o equivalente a uma grande cidade, mas conteria mais de duas vezes a massa do Sol. Tais objetos exóticos, tão pequenos e muito mais densos do que as anãs brancas, se existissem, seriam, porém, impossíveis de detetar com a tecnologia dos anos 30.

Tal não impediu os cientistas teóricos de tentarem descrever as características que deveriam ter. Uma estrela, que originalmente terá mais de um milhão de quilómetros de diâmetro, com a sua velocidade de rotação e o seu campo magnético, ao reduzir-se a um corpo com apenas dezenas de quilómetros de extensão, pelas leis da conservação da Física, passará a ter uma velocidade de rotação vertiginosa e um campo magnético potentíssimo.

Os eletrões, acelerados pelo campo magnético, emitem radiação praticamente em todos os comprimentos de onda quando se aproximam dos polos magnéticos. Produzem-se então dois feixes de radiação opostos, ao longo do eixo magnético.

Se este eixo, por seu lado, não estiver alinhado com o eixo de rotação da estrela de neutrões, os feixes irão varrer o espaço à semelhança de um farol. Se por coincidência a Terra se encontrar no campo de varrimento de um destes feixes, iremos ver uma cintilação, tal e qual um farol, mas com o mesmo período da rotação da estrela, da ordem de um segundo, ou até menos. Foi o que Jocelyn Bell verificou durante o seu doutoramento, três décadas depois de Zwicky e Baade terem apresentado a sua hipótese.

Em 1968, Anthony Hewish e Jocelyn Bell publicaram na revista Nature um artigo em que defendiam que as fontes de emissão no rádio que estavam a observar podiam ser explicadas como estrelas de neutrões com um feixe de radiação incidindo na Terra a cada ciclo da rotação. Um jornalista deu-lhes o nome de ‘pulsar’, ou seja, ‘pulsating star’, estrela pulsante (embora de facto a estrela não pulse – não varia o seu tamanho – mas apenas varia a emissão eletromagnética que chega à Terra).

Apesar de Jocelyn Bell ser a segunda autora do artigo, em 1974, Anthony Hewish e um seu colega receberam por esta descoberta o prémio Nobel da Física, sem que Bell fosse incluída neste reconhecimento. Houve críticas da comunidade científica a esta decisão. Ainda assim Jocelyn Bell argumentou com modéstia ser um prestígio demasiado elevado para um estudante de doutoramento. O seu orientador reconheceu, no entanto, no discurso do Nobel, a dedicação de Bell e a sua atenção ao detalhe como sendo fundamentais para a descoberta.

Objetos exóticos…e populares
As estrelas de neutrões são dos objetos astrofísicos mais produtivos. Têm sido usadas para confirmar previsões da Teoria da Relatividade de Einstein, incluindo a primeira deteção indireta de ondas gravitacionais em 1974 (que conduziu ao segundo Nobel da Física envolvendo pulsares, em 1993). Em agosto de 2017, já na era dos observatórios de ondas gravitacionais, como o LIGO, foi detetada a primeira colisão de duas estrelas de neutrões.

As sondas Pioneer 10 e 11, que se encontram agora no limiar do Sistema Solar, levam, cada uma delas, uma placa com um mapa representando 14 pulsares que, quais faróis no oceano cósmico, poderão ajudar uma potencial civilização extraterrestre a encontrar o lugar do Sistema Solar na Galáxia.

Também na música, as estrelas de neutrões deixaram a sua marca, como na capa do primeiro álbum dos Joy Division, Unknown Pleasures, de 1979, baseada na visualização dos ritmos do primeiro pulsar descoberto por Bell, visualização produzida por um estudante de doutoramento em 1970. O músico Vangelis publicou em 1976, oito anos após o artigo de Hewish e Bell, o tema Pulstar no álbum Albedo 0.39, tema que foi utilizado, entre outros, na série documental Cosmos, dirigida por Carl Sagan.

Jocelyn Bell dedicou parte da sua carreira a apoiar raparigas estudantes, assim como estudantes de doutoramento provenientes de comunidades menos representadas na Física, inspirada pela sua própria experiência como a única aluna inscrita no curso de Física em Glasgow. A estas causas entregou ela os três milhões de dólares do prémio especial Breakthrough em Física Fundamental, que recebeu em 2018.

 

Estrelas que brilham no tempo” é uma rubrica com que o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço se associa à celebração dos 100 anos da União Astronómica Internacional (IAU), recordando figuras importantes na história da astronomia dos últimos 100 anos.

 

Autor: Sérgio Pereira é Comunicador de Ciência no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, onde planeia e produz conteúdos, eventos e projetos com o objetivo de envolver a sociedade na ciência e na tecnologia ligadas ao Espaço e ao Universo.
É mestre em Comunicação de Ciência com especialização em jornalismo de revista e formação inicial em Design de Comunicação. Trabalhou vários anos no desenvolvimento de soluções web em agências de comunicação digital.

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