Qual o valor do teu palheiro?

O palheiro de planta circular testemunho resiliente de um tempo outro, escreve (e fotografa) Filipe da Palma

“…ler e interpretar a arquitectura vernácula, é ler e interpretar o território e a comunidade. Entender estes propósitos, é entender o seu carácter espontâneo e indígena, primitivo, anónimo e rural, desprovido de pretensões de ordem teórica. Em suma, esta arquitectura simboliza uma relação trilógica de nível conceptual, composta de três pólos de referência, o Homem, o Sítio e os Materiais…

Diogo, Manuel: “A arquitectura popular, valor e tradição”, em comunicação apresentada no Congresso Internacional de Arquitectura Popular. Porto: Universidade Lusíada, 1998, p.18

 

 

Desde tenra idade habituado a atravessar a Serra do Caldeirão – por ter família no entorno do xistoso maciço, já no concelho de Almodôvar – e, no presente, por ter uma habitação na freguesia de Cachopo, não se constituiu em mim surpresa atravessá-la por mais duas vezes para que me fosse possível fotografar a recuperação do telhado cónico de um palheiro de planta circular em Corte de Ouro, freguesia de Ameixial, concelho de Loulé.

No tempo que permeia entre as deslocações familiares – eu, como filho – até aos dias de hoje – eu, como pai – passaram algumas décadas, que naturalmente trouxeram mudanças, por vezes muito vincadas, quer na paisagem e nos esparsos aglomerados populacionais que polvilham a Serra, quer no tecido social que os compõem.

Em cinco décadas, apesar do traçado da Estrada N2 não ter mudado, é hoje muito mais fácil por ela circular. Foi em 2003 que o troço entre Almodôvar e São Brás de Alportel foi renovado e classificado como Estrada Património, tendo espoletado obras e cuidados que têm vindo a ser desenvolvidos no sentido de um melhor piso, melhor sinalização e maior segurança.

Em 2016, passou a fazer parte da Associação de Municípios da Rota da Estrada Nacional 2, cujo objectivo que a si preside é a dinamização do turismo ao longo do itinerário. Atravessando a Serra do Caldeirão no sentido longitudinal, desempenha hoje um papel de capital importância no sentido de serviço à população e às comunidades:

– Facilitando o transporte de pessoas (muitas delas idosas) aos hospitais do litoral, visto que, pelo interior, foram muitos os postos de saúde que encerraram e ou perderam valências.
– Facilitando o transporte de crianças e jovens às escolas do litoral, visto que, pelo interior, foram muitas as escolas que numa lógica mercantilista da educação foram encerradas.
– Facilitando o transporte de toneladas diárias de lixo produzido no litoral ao Aterro Sanitário do Sotavento, onde fica longe dos olhos do comum cidadão do litoral, mas permanecendo no Coração da Serra e seus habitantes.

Os palheiros de planta circular, completamente desconhecidos no Barlavento, marcavam presença utilitariamente vivida na área serrana dos concelhos de Loulé, São Brás de Alportel, Tavira, Castro Marim e Alcoutim.

Edificados por necessidade de guardar fenos, deviam sua existência a uma agricultura e criação pecuária praticada pela vasta maioria dos habitantes da região, construídos com o material disponível na área, nomeadamente com xisto, palha de centeio colocada sobre caibros de madeira e varas de esteva sem escoramento de coluna central.

O território serrano, desde sempre habituado a ver partir seus filhos, via-os igualmente regressar após uma campanha de trabalho nas planícies do Alentejo ou no fértil baixo Algarve. A partir da década de 50 do passado século, as saídas assumiram um carácter perene, fixando-se seus filhos principalmente na litoral fímbria do Algarve e em países do pós-guerra como França e Alemanha.

As aldeias, os sítios e os montes foram sangrados de vida humana de cujo trabalho dependia igualmente a manutenção dos palheiros, que, por terem uma cobertura orgânica, necessitam de renovação cuidadosa. Pelo comprimento das hastes da palha de centeio, que se deseja comprida, a mesma tem necessariamente de ser ceifada à mão, pois somente assim permite manter o maior comprimento sendo que a máquina a parte tendo em vista uma fácil obtenção do cereal.

O palheiro de planta circular é, pois, testemunho resiliente de um tempo outro, de um Algarve antigo ligado aos ciclos de vida/ cultivo/ colheita, encerrando em si uma linguagem própria de um tempo com outros significados, vivências e saberes.

Tendo no presente perdido a sua função – porque o mundo do qual são reflexo se encontra desaparecido – são poucos os que resistem inteiros e este exemplar de Manuel Luísa e Otília Pereira somente ainda resiste pelo esforço da QRER – Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios de Baixa Densidade, transmutando-o em objecto passível de consumo turístico, como portal de acesso, não só de conhecimento, mas de viver e experienciar a tangibilidade do Antigo, do Vernáculo, da Identidade.

Assim, para a recuperação deste palheiro foram envidados esforços pela Junta de Freguesia do Ameixial, Câmara Municipal de Loulé, Região de Turismo do Algarve, no âmbito de Algarve Walking Season que suportaram a acção da QRER.

Tendo a cobertura sido recuperada pela primeira vez, pelo esforço das entidades acima mencionadas há cerca de três anos, agora, a palha teve de vir do Norte, nomeadamente de Covelas, no distrito do Porto, facto este que evidencia bem a dificuldade e o desaparecimento de elementos que se encontram interligados. Ao desaparecimento de um ou sobrevém o desaparecimento de outro ou a substituição por um outro, exógeno.

Invoco o exemplo passado ocorrido na Mealha, aldeia situada na freguesia de Cachopo, que se constitui no local onde mais palheiros de planta circular existem no Algarve, tendo cerca de dez sido alvo de intervenções de recuperação no virar do milénio, num esforço conjunto e articulado de várias entidades – onde igualmente o utilitário se transmuta em decorativo – sendo que hoje já nenhum dos palheiros resta coberto.

Hoje, a maioria encontra-se com o cónico cavername exposto, tendo alguns sido utilitariamente recuperados com tela asfálticas. Nesta aldeia, somente um, pelo esforço individual, sem auxílio de qualquer entidade, somente movido pelo gosto/paixão e por poder fazer, o fez.

Foi assim que, por duas vezes, me desloquei a Corte de Ouro para poder fotografar o mais detalhadamente possível a colocação de uma nova cobertura no palheiro. Porque tal implica uma empírica linguagem de saberes imemoriais que se encontra em risco de desaparecimento e com ele a redução da variedade de soluções perante a Vida, reduzindo-a a materiais, matérias e formas cuja existência é igual na Serra do Caldeirão ou na Cochinchina.

Pela noção de estar a perder a cada ano que passa conhecimento que confere identidade e individualidade, por ter na fotografia a capacidade de registo e de tornar visível o oculto e o não mencionado, por achar a região do Algarve ainda tão rica nas soluções encontradas de viver e sentir a paisagem, mas em risco, fotografo e penso o porquê de o fazer e em sua validação perante mim.

Numa próxima oportunidade, a câmara fotográfica – e a atenção que ela requer – ficará relegada para segundo plano e meterei as mãos na palha.

 

Autor do texto e das fotos (todos os direitos reservados): Filipe da Palma, fotógrafo

 

 

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