Inteligência emocional e territórios-desejados

Os territórios são um objeto de conhecimento, mas precisam de ser, também, um objeto de desejo

A minha tese é simples: os territórios são um objeto de conhecimento, mas precisam de ser, também, um objeto de desejo, um território vivido, sob pena de serem um simples arranjo de conveniência.

Hoje em dia falamos, com frequência, de NUTS II e NUTS III (nomenclatura de unidades territoriais estatísticas), de associações de municípios, de euro-regiões, de comunidades intermunicipais (CIM), de euro-cidades, de grupos de ação local (GAL), de cidades inteligentes, e todas estas denominações coexistem numa região como o Algarve.

E porquê tanta proliferação de delimitações e denominações? E qual é o genuíno sentido, significado e alcance dessas designações? E que coerência elas mantêm entre si? E representam elas territórios vividos e verdadeiros objetos de desejo? E qual é a razão para não adotar as designações de barlavento e sotavento, muito mais próximas de uma cultura regionalista de longa data e, logo, também mais próximas de um território-desejado?

De facto, tenho muitas dúvidas de que possamos cair apaixonados por uma unidade estatística territorial, por uma comunidade intermunicipal criada por decreto-lei, por associações meramente administrativas ou por arranjos de circunstância que visam única e exclusivamente viabilizar candidaturas comuns aos fundos europeus.

E qual é o impacto que este “desejo reprimido” tem no nosso desempenho enquanto atores regionais com responsabilidades diretas no desenvolvimento de uma região?

Acresce que, num tempo de aceleração tecnológica e digital e formação de ambientes inteligentes, não há, manifestamente, muito tempo para exercícios de inteligência emocional, para além daqueles que acontecem e são veiculados nas redes sociais, quase sempre meros epifenómenos de uma ligeireza impressionante.

Não há, de facto, condições para grandes estados de alma ou mobilizações inspiradoras, pelo contrário, a inteligência racional e a inteligência artificial, por intermédio de algoritmos técnico-administrativos, tomam conta da ocorrência e onde poderia e deveria estar um exercício participativo de inteligência coletiva e de bom senso em redor de um território vivido, estará, porventura, um procedimento digital completamente descontextualizado e incapaz de mobilizar uma comunidade.

Quando falamos de NUTS, de CIM, de GAL, de Euro-regiões e Euro-cidades, entre outros programas de índole territorial, tudo, afinal, se resume a uma mastigação rápida de fluxos financeiros que é necessário maximizar a todo o custo para mostrar resultados efetivos em futuras avaliações intercalares e, logo de seguida, preparar reprogramações e a próxima edição de um novo quadro comunitário de apoio, se possível ainda com mais transferências de fundos que o anterior.

Tudo se joga entre fundos candidatados, comprometidos, aprovados, contratualizados, realizados, certificados, transferidos, liquidados.

Observe-se a região do Algarve, uma cidade-arquipélago de 430 mil habitantes. Ninguém faz o discurso anual sobre “o estado da região NUTS II”, sobre “o estado da euro-região AAA”, sobre “o estado da comunidade intermunicipal do Algarve”, sobre “o estado do barlavento ou o sotavento algarvio”, isto é, ninguém parece morrer de amores por estes territórios-zona que hoje ocupam e recortam o território algarvio.

A grande questão reside em saber até que ponto um determinado território é não apenas um “objeto de conhecimento” e uma geografia político-administrativa, mas, também, um “território-desejado” que mobiliza entusiasmo e adesão para um projeto de futuro e nessa mobilização se revela uma verdadeira “epifania territorial”.

Sim, porque um projeto verdadeiramente mobilizador e inovador congrega inúmeros recursos emocionais e sentimentais que são da maior relevância para o planeamento e a programação regionais. Estas duas inteligências, racional e emocional, precisam de estar reunidas para tal propósito.

Se, ao contrário, um território for percebido como um mero recipiente, um continente sem conteúdo, a inteligência emocional e a inteligência racional nunca se encontrarão para um grande projeto de futuro, isto é, não haverá inteligência coletiva territorial digna desse nome e capaz de reduzir os défices de conhecimento já acumulados.

Nestas condições poderemos, talvez, ser um território smart, mas muito dificilmente conseguiremos ser um território inteligente e criativo.

 

A arte da composição dos territórios-rede-desejados

A inteligência emocional, no registo que acabo de enunciar, é sobre a arte da composição dos territórios-rede-desejados e só ela nos pode levar para lá de um simples cardápio político-administrativo.

Veja-se, a propósito, a contingência dos nossos atuais territórios-zona. De um lado, as administrações públicas tradicionais gerindo programas operacionais pré-formatados e cada vez mais prisioneiras de instruções e procedimentos algorítmicos muito seletivos, de outro, as comunidades online, mais irreverentes e imaginativas, agindo em “modo de representação virtual” e procurando converter os seus empreendimentos em “atos orgânicos” que criem enraizamento nas comunidades locais de um modo efetivo.

É nesta transição das tecnologias de informação e conhecimento (TIC) para os territórios inteligentes e criativos (TIC) que muitas promessas se jogam, mas, também, alguma ambiguidade. Por um lado, a conexão digital traz o problema para o espaço público, faz ruído à sua volta, chama a atenção da sociedade civil e do poder político.

Nessa exata medida, o poder político fica confrontado com as suas responsabilidades públicas e é obrigado a agir. Por outro lado, as comunidades online precisam ainda de fazer prova de vida, isto é, não podem tratar a realidade como um mero epifenómeno, reduzida a uma série de eventos que se consome com grande voracidade.

Estamos todos a aprender esta transição, uma aprendizagem que começa no grande universo imaterial das comunidades online e redes sociais com a germinação de uma ideia, que se transfere, de seguida, para uma incubadora digital ou espaço de coworking, que se revela e ganha reputação no espaço público e que, finalmente, se materializa num ato orgânico de criação e enraizamento territorial como se tivesse voltado às origens das comunidades reais.

Aos olhos do “observador emocionalmente inteligente” os territórios não são um simples produto administrativo, eles são cristais multifacetados, reinventados e recriados de forma continuada e onde os fatores identitários, as artes e a cultura têm um papel fundamental.

Desse empenhamento faz, também, parte a cooperação territorial descentralizada, um recurso acessível e barato, que aumenta os ativos à nossa disposição e valoriza os elementos que antes podiam ser considerados marginais. Ou seja, os territórios têm mais recursos e ativos do que nós imaginamos, apenas não foram ainda redescobertos e recompostos pelo trabalho de investigação-ação.

Esta é a essência dos sinais distintivos territoriais (SDT), fruto da arte da recomposição de fatores identitários e culturais, que permite novas hermenêuticas territoriais e, portanto, novos significados e significações, ao mesmo tempo que transportam mais valor imaterial para a valorização dos sistemas produtivos locais e regionais.

Com efeito, uma indicação geográfica, uma denominação de origem, uma marca com notoriedade, um nome prestigiado, uma paisagem literária, um ícone histórico-cultural, um vestígio arqueológico, um percurso de natureza, um endemismo local, o artesanato, todos são um bom pretexto para a arte da recomposição dos territórios e suas cadeias de valor tradicionais.

É uma grande oportunidade para as regiões mais pobres em recursos materiais. A inteligência emocional leva-nos até ao coração destes sinais distintivos territoriais e aumenta extraordinariamente, esperamos nós, o número e a qualidade das representações que fazemos dos territórios e de cada um em concreto.

E esta iconografia territorial é um discurso de legitimação, mas reporta-se, também, a um “território desejado” na medida em que encerra múltiplas territorialidades, logo, objeto de muitas geometrias variáveis de sentimentos e desejos.

Creio que, no próximo futuro, naquilo que eu designo como a “2ª ruralidade”, a novidade mais importante será, justamente, a emergência de uma grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais, com graus diferenciados de enraizamento no território. Inicialmente, tudo poderá parecer um pouco caótico, mas na 2ª ruralidade os neorurais desempenharão um papel fundamental e tornarão o campo quase irreconhecível tal como o conhecemos hoje.

A arte das comunidades online e das redes sociais vai trazer-nos uma espécie de “realidade aumentada” em múltiplos formatos de “agricultura acompanhada pela comunidade”, de gestão comunitária e agrupada de aldeias e vilas, de economia da partilha e economia circular, onde não haverá recursos ociosos e expectantes e onde a patrimonialização dos recursos arqueológicos e históricos e a sua moderada turistificação serão, também, uma realidade. Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor.

 

Notas Finais

A inteligência emocional está no centro da desafeição cívico-política que hoje se verifica em quase todos os sistemas políticos domésticos.

Esta desafeição espelha um sério desequilíbrio, a saber, o poder reside mais nas redes institucionais e burocráticas do estado-administração, enquanto o capital social, mais difuso e inorgânico, mas, também, mais irreverente e imaginativo, reside nas redes sociais e comunidades online.

A expressão mais vincada deste desequilíbrio mostra-nos que o ativismo político das gerações mais jovens passou a morar nas redes sociais e nas comunidades online onde procura pertencimento, identidade e reconhecimento. Estamos, pois, ainda longe de uma interação favorável e positiva entre comunidades online e offline. Há aqui muito trabalho para fazer em matéria de investigação-ação-extensão.

Na região do Algarve, a intuição diz-me que a governação política oscilará entre um princípio de ordem, sob a forma de um modelo institucionalizado de governação regional (o “modelo coordenativo” das CCDR), e um princípio de espontaneidade, sob a forma de uma inteligência coletiva territorial que emergirá progressivamente em múltiplos formatos.

A região crescerá entre estes dois polos, umas vezes com uma tonalidade mais político-administrativa, outras vezes mais irreverente e imaginativa.

Agora que se fala tanto em descentralização, será interessante observar como irão convergir os dois processos de descentralização neste momento em curso.

A descentralização político-administrativa para o nível municipal, que será sempre uma descentralização formal e institucionalizada, operada essencialmente no interior das estruturas político-partidárias, e a descentralização operada pelas tecnologias da informação e da comunicação e multiplicada pelas redes sociais, que será uma descentralização mais criativa e cultural.

A grande novidade da próxima geração é que a inteligência coletiva estará muito para lá das fronteiras regionais e germinará no universo da cibercultura. É o tempo das gerações Y e Z, as gerações dos screenagers e da internet móvel em todas a suas variantes técnicas.

Os cibernautas das gerações Y e Z (nascidos de 1980 para cá) são muito mais criativos, convivem e trabalham mais em comunidades virtuais e ambientes simulados do que em comunidades reais e ambientes físicos.

Eles pertencem ao universo dos servidores e utilizadores mais do que ao universo dos vendedores e compradores. Eles são pessoas e indivíduos que trabalham em regime de coworking, em crowdsourcing e outsourcing, estão constantemente conectados e usam a sua criatividade para agregar valor compartilhado aos serviços imateriais que prestam no universo do ciberespaço.

Neste sentido, quero crer que eles colocarão a sua inteligência racional e emocional ao serviço do potencial colaborativo e da inteligência coletiva que habitam as redes empresariais, as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de inovação social e cultural, as redes amigas do ambiente ou os territórios-rede da 2ª ruralidade. Se assim for, será uma grande oportunidade e uma enorme bênção para todos os territórios.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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