Cibersegurança, a nova guerra fria

Esta é a 100ª Crónica do Sudoeste Peninsular escrita pelo professor António Covas e publicada no Sul Informação

Nas últimas duas décadas, a Internet e, mais genericamente, o ciberespaço tiveram e têm um impacto enorme em todos os setores da sociedade.

A nossa vida quotidiana, os direitos fundamentais, as interações sociais e as economias nacionais dependem do funcionamento regular e permanente das tecnologias da informação e das comunicações.

Um ciberespaço livre e aberto tem promovido a inclusão política e social em todo o mundo, derruba barreiras entre países, comunidades e cidadãos, permite a interação e a partilha de informações e ideias entre todos os pontos do globo, proporciona um fórum para a liberdade de expressão e o exercício dos direitos fundamentais e dá às pessoas meios para lutarem por sociedades democráticas e mais justas, como a Primavera Árabe demonstrou de modo tão impressivo.

Uma ética dos valores e dos princípios democráticos

Os direitos fundamentais, a democracia e o Estado de direito devem ser protegidos no ciberespaço e, para que este permaneça livre e aberto, devem aplicar-se no universo em linha as mesmas normas, princípios e valores que a União Europeia defende para o mundo material e tangível.

A nossa liberdade e prosperidade dependem cada vez mais de uma Internet robusta e inovadora, que continuará a prosperar se a inovação por parte do setor privado e da sociedade civil favorecer o seu crescimento. Mas a liberdade em linha exige também segurança e proteção. O ciberespaço deve ser protegido contra incidentes, atividades malévolas e utilizações abusivas e os governos têm um importante papel a desempenhar na garantia de um ciberespaço livre e seguro.

Nessa medida, compete aos governos salvaguardar o acesso e a abertura, respeitar e proteger os direitos fundamentais em linha e manter a fiabilidade e a interoperabilidade da Internet. No mesmo sentido, o setor privado detém e explora partes significativas do ciberespaço e, por conseguinte, qualquer iniciativa que pretenda ser bem-sucedida nesta matéria deve reconhecer o seu papel crucial.

As tecnologias da informação e das comunicações tornaram-se a espinha dorsal do nosso crescimento económico e são um recurso crítico do qual todos os setores económicos dependem.

Estão atualmente na base dos complexos sistemas que fazem funcionar as nossas economias em setores fundamentais e muitos modelos de negócio estão construídos com base na disponibilidade ininterrupta da Internet e no bom funcionamento dos sistemas informáticos. Vejam-se os casos das finanças, a saúde, a energia e os transportes, para citar apenas alguns.

Porém, para que possamos evoluir nas novas tecnologias ligadas à Internet, incluindo os pagamentos eletrónicos, a computação em nuvem ou a comunicação máquina-máquina, os cidadãos terão de se sentir cada vez mais confiantes e tranquilos.

Infelizmente, um terço dos europeus não têm confiança na sua capacidade de utilizar a Internet para serviços bancários ou compras e mais de um em cada dez utilizadores da Internet já foi vítima de fraudes em linha.

A estratégia europeia de cibersegurança

Nos últimos anos verificou-se que, para lá dos seus enormes benefícios, o mundo digital é, também, muito sensível e vulnerável. Os incidentes de cibersegurança, intencionais ou acidentais, estão a aumentar a um ritmo alarmante e poderão perturbar a prestação de serviços essenciais que consideramos garantidos, como a água, os cuidados de saúde, a eletricidade ou os serviços móveis.

As ameaças podem ter origens muito diversas, nomeadamente ataques criminosos, politicamente motivados, terroristas ou patrocinados por Estados, assim como catástrofes naturais e erros involuntários.

A economia da União Europeia já é afetada pela cibercriminalidade contra o setor privado e os particulares. Os cibercriminosos utilizam métodos cada vez mais sofisticados para se introduzirem nos sistemas informáticos, roubarem dados críticos ou exigirem resgates às empresas.

O aumento da espionagem económica e de atividades patrocinadas por Estados no ciberespaço coloca os governos e as empresas dos países da UE à mercê de uma nova categoria de ameaças.

Todos estes fatores explicam por que razão os governos de todo o mundo começaram a elaborar estratégias em matéria de cibersegurança e a considerar o ciberespaço uma questão internacional cada vez mais importante. A proposta da União Europeia para uma estratégia de cibersegurança data de 2013 e visa garantir a plena realização do mercado único digital, em particular, a proteção e promoção dos direitos dos cidadãos a fim de tornar o ambiente em linha na UE o mais seguro do mundo.

Essa estratégia conta, nomeadamente, com uma agência europeia de cibersegurança, um sistema de certificação de cibersegurança ao nível europeu e as determinações da diretiva europeia SRI sobre segurança de redes de informação. A implementação desta estratégia tem sido demorada, a vertigem tecnológica, a atividade de lobbying e o labirinto legislativo das instituições europeias explicam uma boa parte dos atrasos na materialização desta estratégia.

Cibersegurança, uma nova guerra fria

Mais recentemente, sobretudo depois do referendo britânico, a eleição do presidente americano, a eleição do presidente brasileiro e, ainda, a reeleição do presidente chinês, assistimos a uma acumulação de factos relevantes que trazem a cibersegurança para o primeiro plano da política internacional.

A controvérsia em redor das redes digitais de última geração 5G e o protagonismo do gigante chinês Huawei é o último exemplo desta acumulação de factos na cena internacional. A dimensão da cibersegurança salta à evidência e, por mais moderadas que sejam as profissões de fé nesta matéria, é toda a geopolítica e geoeconomia das cadeias de valor que se encontra, doravante, posta em causa.

Recordemos a sucessão dos factos depois de 2016: a privacidade individual e o uso abusivo de dados pessoais, as notícias falsas e a desinformação deliberada, os ataques informáticos recorrentes e o cibercrime, a incriminação e a proteção dos piratas informáticos, a tributação dos grandes conglomerados tecnológicos e as pesadas contraordenações por violação grosseira das regras de concorrência, a discussão em redor dos campeões europeus em conjunto com a temática da harmonização fiscal, a monitorização do investimento estrangeiro no que diz respeito aos setores estratégicos europeus e, finalmente, as questões de segurança coletiva associadas à introdução das redes de última geração 5G.

Todos estes factos têm um fator em comum, a saber, estão estreitamente associados a uma abordagem mais imaterial das cadeias de valores, na linha dos chamados ecossistemas inteligentes que acolhem no seu seio os últimos desenvolvimentos da revolução digital.

Com efeito, doravante, assistiremos a uma profunda transformação na configuração das cadeias de valor, pois os efeitos externos do novo ecossistema digital serão inimagináveis e os fatores imateriais passarão a determinar o perfil da “cadeia de valor METI” (matéria, energia, trabalho, informação). Vale a pena acrescentar um efeito paradoxal desta nova geografia digital.

Falo de uma eventual reindustrialização e relocalização das fileiras económicas induzidas pela automatização e robotização do processo industrial, pois ao reduzirem substancialmente os custos industriais tendem para um custo marginal zero e podem, assim, regressar ao seu local de partida. A própria insegurança informática e cibernética irá acelerar esta tendência de reindustrialização e relocalização do processo industrial.

Este efeito paradoxal que referi não é totalmente indiferente à controvérsia em redor da tecnologia 5G e das relações económicas e comerciais da empresa chinesa Huawei, mas, também, da nova estratégia internacional do Estado chinês. A ordem multilateral neoliberal que promoveu a globalização está a chegar ao fim, estamos, agora, apenas no início de uma ordem multipolar que procura delimitar as suas áreas de influência e traçar um novo equilíbrio de poderes.

Ora, multipolaridade, áreas de influência e balança de poderes pertencem ao domínio da geopolítica e da segurança coletiva regional e não são, propriamente, um campo aberto e pacífico para os negócios internacionais e a expansão geográfica das cadeias de valor.

Podemos estar, mesmo, à beira de uma regulação musculada da internet e até de uma renacionalização do ciberespaço de cada polo regional de segurança coletiva. A transformação digital 5G pode ter efeitos externos negativos e traduzir-se num trade off entre liberdade e segurança de difícil administração no plano das relações internacionais e tanto mais quanto da segurança coletiva à segurança privada vai um pequeno passo muito fácil de transpor.

No limite, tudo o que dissemos acerca da nova geografia digital das cadeias de valor pode ser posto em causa e a revolução 5G traduzir-se, afinal, num regresso a casa de muitas dessas cadeias de valor.

Nota Final

Os grandes riscos digitais, cada vez mais sistémicos e aleatórios, serão uma ameaça constante a pairar sobre as nossas cabeças no futuro próximo e serão um primeiro fator a determinar a nova geografia das cadeias de valor.

Talvez o mais relevante, cada segmento da cadeia global de valor transporta, ele próprio, um risco de segurança, pela informação estratégica que contém e revela. Por outro lado, na medida em que a segurança coletiva e a segurança privada estão cada vez mais próximas, é a nossa própria privacidade que está permanentemente em causa.

Um número crescente de episódios de guerra informática e cibernética é um custo de contexto muito elevado para a globalização das cadeias de valor. Da guerra fria nuclear à guerra fria cibernética, eis uma ameaça para levar a sério nas guerras do amanhã.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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