Vem aí o Homo Digitalis!

Estamos cada vez mais próximo do chamado “ponto de singularidade”, isto é, o ponto onde o rendimento do trabalho se separa do tempo de trabalho

A cadeia de valor é conhecida. Numa extremidade, a multidão e a internet. Na outra extremidade, o smartphone e o internauta. No meio, os operadores de telecomunicações, as plataformas digitais e as aplicações informáticas. Estamos a falar da revolução digital na sociedade e na economia e da emergência de um denominado homo digitalis, por enquanto pertencente ainda ao domínio da espécie humana!

Vivemos em plena era das multidões e as plataformas digitais e suas aplicações são, cada vez mais, o novo lugar central da nossa vida coletiva. Na economia das plataformas podemos encontrar uma tipologia muito variada: de busca na internet (Google), de rede social (Facebook), de comércio em linha (Amazon), de aplicações para terminais móveis (Appstore), de mobilidade urbana (Uber), de produção de conteúdos (Youtube), de consumo colaborativo (Airbnb), de recrutamento profissional (Linkedin), de trabalho assalariado ou independente (Jobbying), de financiamento participativo (Kickstarter), entre muitas outras em praticamente todos os setores de atividade.

A associação estreita entre a economia das plataformas e o homo digitalis será, seguramente, um dos binómios que suscitará mais interesse e curiosidade no próximo futuro. A economia das plataformas terá um impacto decisivo sobre inúmeros aspetos da nossa vida coletiva:

– Qual é a proveniência das plataformas, globais ou made in?
– Qual é o modelo de negócio que adotam, extrativista ou colaborativo?
– Até onde as plataformas alteram os hábitos e rotinas do consumidor/utente/utilizador?
– Em que medida contribuem para melhorar o grau de literacia e acesso digital?
– Quais os efeitos diretos e indiretos sobre os mercados de trabalho?
– Que perturbações introduzem nas cadeias de valor mais tradicionais?
– Que relações estabelecem com as coletividades territoriais e as economias locais?
– Que impacto têm sobre o rendimento e a fiscalidade locais?
– Qual o modelo de ocupação do território, geram mais dispersão ou aglomeração?
– Que relações com as instituições de ensino superior e o emprego jovem qualificado?

Com esta simples enunciação estamos no coração de uma grande transformação tecnológica, aquela que nos transporta da sociedade industrial para a sociedade digital, aquela que nos conduz da sociedade do valor-trabalho para a sociedade do valor-data ou informação. As respostas a estas questões são, só por si, um campo imenso de investigação e uma agenda política fundamental que, em conjunto, nos ajudarão a seguir o rumo mais apropriado até ao futuro próximo.

Por outro lado, na sociedade digital onde já nos encontramos a nossa pegada digital estará por todo o lado e a nossa vida individual estará praticamente toda digitalizada: nos motores de busca, nas redes sociais, nas centrais de reserva, nas plataformas de compra e venda, de entretenimento, de crowdlearning, crowdsourcing e crowdfunding, de recrutamento e trabalho independente, de aluguer de ativos subutilizados, e em inúmeras aplicações que fomos descarregando em modo mais ou menos descontrolado.

Quer dizer, doravante, na sociedade digital “o produto somos nós”. Somos a mercadoria trocada nos chamados mercados biface. Somos “adquiridos gratuitamente” através dos rastos que deixamos em muitas plataformas (a primeira face do mercado) e somos “vendidos a terceiros”, geralmente empresas e sociedades, depois de devidamente “perfilados”, e mediante o pagamento, por parte dessas empresas e sociedades, de uma comissão à plataforma que faz a respetiva intermediação (a segunda face do mercado).

Quer dizer, tudo o que nós dizemos, fazemos, sentimos e experimentamos deixa um rasto e produz informação preciosa com muito sumo para as plataformas de intermediação. Depois de extraído, esse sumo converte-se num perfil personalizado de um consumidor/utente/utilizador e é este perfil personalizado que tem imenso valor para o universo mercantilista do capitalismo digital.

No contexto da sociedade digital e no universo socio-laboral correspondente o homo digitalis apresenta-se em três planos de natureza distinta. Como técnico especialista de uma determinada disciplina e trabalhando por conta de outrem numa empresa tecnológica, ele está, digamos, na sociedade pós-industrial.

Como free lancer ou trabalhador independente em tarefas ou colaborações muito variadas de crowdsourcing, de economia a pedido e economia partilhada em condições laborais muito diversas, ele está, digamos, na sociedade colaborativa. Finalmente, como utente e utilizador de plataformas e redes sociais onde deixa a sua pegada digital, ele está em plena sociedade do Big Data, praticando aquilo que na literatura se designa genericamente por digital labor.

Nestes três planos da sociedade digital o homo digital passa por uma verdadeira transfiguração no que diz respeito à sua condição socio-laboral. Enquanto na sociedade industrial o operário da indústria ou dos serviços está sindicalmente enquadrado e beneficia de um contrato coletivo de trabalho e de um direito laboral que o protegem das arbitrariedades da entidade patronal, na sociedade digital assistimos a uma fragmentação da condição laboral e da proteção social, digamos, em plena transição do “silo industrial” do capitalismo para o “túnel digital” do capitalismo.

Onde ontem se referiam a exploração e alienação do operário industrial, referem-se hoje a alienação e adição do trabalhador digital: sem horário de trabalho, sem contratação coletiva, em regime de prestação de serviço, sem sindicato, sem ordem profissional, sem regime regulamentar e regulatório, em modo de outsourcing, sem seguro coletivo, afinal, em regime precário de pluriatividade e plurirrendimento e, muitas vezes, desligado de uma comunidade verdadeiramente empresarial.

Notas Finais

Na sociedade digital, à medida que a automatização e a inteligência artificial tomam conta das profissões industriais mais repetitivas e rotineiras, ficamos cada vez mais próximos, também aqui, do chamado “ponto de singularidade”, isto é, o ponto onde o rendimento do trabalho se separa do tempo de trabalho.

O trabalho passa a ser, digamos, uma categoria líquida que assume formas e modalidades muito diversas. Isto é, teremos de encontrar um denominador comum ou equivalente geral para o tornar convertível e transferível entre diversas modalidades: trabalho por conta de outrem, trabalho por conta própria, trabalho colaborativo, trabalho comunitário, trabalho voluntário, trabalho on demand, biscastes e macjobs, trabalhos realizados aqui e no estrangeiro, etc.

Naturalmente, uma boa parte do que aqui se diz fica inteiramente dependente da consistência das respostas às questões relativas às plataformas digitais tal como as enunciámos anteriormente. Para memória futura e em jeito de ilustração refiram-se as relações entre as plataformas digitais e os ecossistemas locais formadas pelas coletividades, as economias de rede locais e as instituições de ensino superior regionais.

Neste relacionamento triangular, um primeiro aspeto diz respeito à relação entre fratura digital e cobertura digital, o que levanta a questão da infraestruturação do território sem a qual o acesso fica bastante prejudicado.

Um segundo aspeto diz respeito às competências digitais e ao grau de literacia digital de toda a população, o que, só por si, pode determinar uma alteração radical dos modelos de ensino, educação e formação profissional.

Um terceiro aspeto diz respeito ao acesso aos dados existentes nas diversas administrações públicas, o que levanta questões fundamentais como a regulação da privacidade, mas, também, a modernização digital da administração.

Um último aspeto, porventura o mais decisivo, diz respeito aos incentivos para fazer emergir plataformas digitais adequadas às necessidades das economias locais e regionais, o que levanta a questão crucial dos modelos de negócio das plataformas.

Um primeiro modelo considera uma plataforma global muito centralizada que procura acrescentar os seus rendimentos de escala em conexões mais descentralizadas, por exemplo, em áreas metropolitanas ou grandes aglomerados urbanos.

Um segundo modelo pode ser concebido localmente e partir de uma plataforma mais distribuída made in Portugal, por exemplo, de um ecossistema local ou regional como aquele que as coletividades, a economia local e as universidades e politécnicos podem construir em associação.

Finalmente, um terceiro modelo, porventura o mais consistente, é, justamente, aquela que congrega e articula uma plataforma global com o ecossistema local ou regional numa parceria de projeção internacional.

Até lá, o caminho faz-se caminhando.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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