Em março deste ano, realizou-se em Évora o 14º Congresso da Água, sobre o tema “Gestão dos Recursos Hídricos: Novos Desafios”.
No congresso, organizado pela Associação Portuguesa de Recursos Hídricos, os técnicos da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA) fizeram a apresentação de diversas comunicações sobre o empreendimento de fins múltiplos de Alqueva (EFMA) que pela sua importância eu gostaria aqui de registar:
– O impacto económico da agricultura de regadio em Alqueva: potenciação dos seus impactes,
– Importância da matéria orgânica no solo: relação com a qualidade da água a jusante,
– Circularidade da água em Alqueva: um modelo de gestão integrada assente no compromisso com a região,
– O EFMA e a salvaguarda de valores naturais: o sobreiro, a azinheira e os CTM’s versus o regadio,
– Qualidade da água no Empreendimento de Alqueva: evolução e tendências na rede primária do EFMA,
– As barragens e os novos caminhos da água em Alqueva,
– A lógica e o conteúdo das novas áreas limítrofes beneficiadas por Alqueva,
– Reabilitação de linhas de água: eficácia, efeitos e sensibilização,
– Massas de água do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva: uma nova realidade territorial,
– Intervenções de melhoria da qualidade da água: as albufeiras do Pisão, Serpa e Brinches.
Pela sua relevância, recomendo vivamente a leitura destes textos, quase todos relativos à otimização dos recursos solo e água, que podem ser consultados online.
No que diz respeito à economia agrícola do empreendimento, a EDIA publica o anuário agrícola, que também pode ser consultado online.
Relembro, também, os objetivos estratégicos que, com maior ou menor intensidade, sempre presidiram ao projeto: reserva estratégica de água, garantia de abastecimento de água às populações e atividades económicas, alteração do modelo cultural de agricultura tradicional alentejana, reforço da produção de hidroeletricidade, combate à desertificação física e humana, preservação do ambiente e do património, promoção do turismo, emprego e desenvolvimento regional.
Porém, não é sobre a economia agroindustrial do empreendimento que quero agora pronunciar-me. Queria aproveitar esta oportunidade para fazer uma atualização do conceito de “empreendimento de fins múltiplos”, à luz dos grandes desafios do século XXI, em especial, os investimentos tornados necessários pelas alterações climáticas, as economias de escala e as alterações sociodemográficas, os mercados de trabalho e a revolução tecnológica, a globalização dos mercados, as migrações e a formação das cadeias de valor, as economias de rede do projeto e o desenvolvimento regional.
A terminar, sublinharei a importância de existir um ator-rede, um centro de racionalidade in situ, que assegure as economias de rede e aglomeração indispensáveis à continuidade de um empreendimento de fins múltiplos como é o Alqueva.
1. As alterações climáticas e os investimentos de mitigação e adaptação
Agora que as eras geológicas são cada vez mais curtas e correm à velocidade das gerações, muitas representações e eventos decorrentes das alterações climáticas sofrerão também uma aceleração.
Num empreendimento que depende essencialmente da qualidade do solo e da água e num território que atravessará períodos de grande severidade hidrológica os investimentos de prevenção, adaptação e mitigação serão inevitáveis e muito onerosos.
Sem uma política de pagamentos por serviços ambientais e ecológicos tudo se complicará, em especial os custos de operação com solo e água.
2. As alterações sociodemográficas e as economias de escala
O EFMA, na sua vertente agroindustrial, nunca será um empreendimento regional para o Alentejo, pela simples razão de que esta região nunca terá dimensão humana e populacional suficiente para o efeito.
Quando passamos do investimento individual ou familiar para o investimento de sociedades e, finalmente, para o investimento de fundos de investimento, percebemos melhor a relação entre escala, internacionalização e retorno do capital investido, o que, obviamente, coloca uma pressão adicional sobre todos os recursos e, em especial, o solo e a água.
Quer dizer, numa lógica produtivista e extrativista superintensiva, como é aquela que prevalece na região neste momento, o deserto demográfico alentejano irá continuar.
De facto, não serão as economias de escala na produção a inverter a tendência, não obstante as necessidades sazonais de alguma mão-de-obra. Só mesmo uma estratégia mais redistributiva, orientada para a realização de pequenas economias de aglomeração numa base regional e territorial, estará em condições de o fazer.
3. Os mercados de trabalho e emprego e a revolução digital
Encurtar os ciclos de produção e reduzir os custos fixos, reduzir o risco aleatório ao risco previsível, ter controlo sobre o preço do produto final através de variedades e produções de época precoce e/ou tardia, eis um conjunto de objetivos operacionais que se conseguem, em boa medida, com uma gestão criteriosa da chamada “agricultura de precisão”.
Nesta modalidade de agricultura produtivista e tecnológica, os custos de trabalho são convertidos em prestações de serviços feitas a pedido junto de agências temporárias de emprego e independentes da origem do trabalhador.
Do mesmo modo, a responsabilidade social e ambiental converte-se numa variável endógena do sistema autónomo em funcionamento, de acordo e nos termos do “algoritmo residente”.
4. A globalização, as migrações e a formação das cadeias de valor
O EFMA tem muita importância nos planos regional e nacional, mas é, obviamente, uma pequena economia no grande mercado globalizado da economia agroalimentar e agroindustrial, com exceção do azeite.
Este facto significa que não terá impacto relevante na formação das grandes cadeias de valor internacionais onde se insere. Do ponto de vista económico, o controlo dos custos de operação e produção é mais determinante do que a formação do preço final do produto.
Por outro lado, sabemos que a cadeia de valor pode estar mais ou menos polarizada e mais ou menos extrovertida e que na distribuição de valor o sistema de preços, internos e externos, praticados pode reter ou exportar mais ou menos valor acrescentado.
Lembremos a formação de uma cadeia de valor: consumos intermédios (despesa com bens e serviços de consumo corrente, com bens de investimento), valor acrescentado (rendas, juros, salários, lucros), dividendos distribuídos, impostos pagos, lucros reinvestidos, relações com o sistema bancário e financeiro.
Nesta longa distribuição de valor tudo pode acontecer, estamos, porém, convencidos de que o “território é o último a saber”, pois não temos informação privilegiada sobre “quem tira partido do quê”.
5. As economias de rede e aglomeração e o desenvolvimento regional
De um ponto de vista estritamente económico e financeiro, a chegada do investimento estrangeiro à região é determinante para rentabilizar toda a cadeia de valor. Todavia, as fileiras estão muito verticalizadas e cada um trata do seu negócio com a discrição que se impõe.
Quem trata, porém, dos efeitos externos, positivos e negativos, dos vários investimentos e muito em especial da malha capilar e arterial regional, pois só ela é capaz de informar e determinar a coerência lógica do desenvolvimento regional do Alentejo?
Estamos a falar da interligação dos regadios, da interligação dos abastecimentos públicos, da interligação energética, da interligação dos habitats e áreas protegidas, da interligação dos mercados agroalimentares locais, da interligação dos empreendimentos turísticos e alojamentos locais, da interligação dos mercados de trabalho locais, da interligação dos pequenos investimentos, etc.
Este é, verdadeiramente, um Alqueva apontado ao futuro, um território-desejado, uma comunidade viva genuína.
6. Um ator-rede para o desenvolvimento regional
A década de 2020-2030 será decisiva para a consolidação do EFMA em termos da sua interligação regional e contributo para o desenvolvimento da região. Algumas medidas cautelares de carácter regulatório são, desde logo, necessárias:
– Impedir que se torne um ativo especulativo nas mãos dos fundos de investimento,
– Impedir que se torne um elemento de contencioso nas relações com Espanha,
– Impedir que se torne num mau exemplo de responsabilidade social e ambiental,
– Impedir que a EDIA se reduza a um mero operador de infraestruturas.
A dinâmica dos “empreendimentos de fins múltiplos” no século XXI é, como se compreende, muito mais exigente e já não se reduz a um conjunto de operações de gestão de infraestruturas, solo e água.
Digamos que, hoje, o “ecossistema Alqueva” aponta na direção de uma 2ª ruralidade, de um espaço rural a três dimensões – espaço de produção, conservação e recreação – suportado pela smartificação do território, razão pela qual se torna necessário rever o “modelo de negócio” da própria EDIA e a partir dela conceber um verdadeiro ator-rede para o desenvolvimento de toda a região sul do país.
Nota Final
A Web Summit está em Lisboa e estará em Portugal até 2028. Foi afirmado que a agricultura está praticamente ausente da sessão deste ano.
É imprescindível que a EDIA e o sistema de ensino superior regional lancem rapidamente uma incubadora empresarial em meio rural para a área do EFMA e que, de algum modo, se possa articular esta iniciativa com os organizadores do Web Summit em próximas edições.
O EFMA precisa de uma iniciativa emblemática nesta área, este é o momento certo para o seu lançamento.
Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas