Paul Virilio: a cada velocidade, uma realidade

António Covas presta homenagem ao filósofo, arquiteto e urbanista francês Paul Virilio, falecido em Setembro

Com a condescendência dos leitores do Sul Informação, permitam-me que preste aqui uma sentida e singela homenagem ao filósofo, arquiteto e urbanista francês Paul Virilio, falecido no passado dia 10 de Setembro, aos 86 anos de idade.

A sua filosofia é muito peculiar. Nas suas palavras, “A minha língua estrangeira é a velocidade, é a aceleração do real”. Na base das suas reflexões está a triangulação entre velocidade, tecnologia e política. Sempre muito imaginativo, criou a dromologia, uma área de estudo interdisciplinar acerca da velocidade e do modo como ela muda a perceção do tempo e do espaço e, portanto, a natureza dos fenómenos políticos, sociais, económicos e culturais. Com ele dizia, o “século XXI deve preocupar-se com as nanotecnologias, mas, também, com as nanocronologias, com o tempo infinitesimal, com a conquista do infinitamente pequeno do tempo”.

Nos seus enunciados filosóficos mais expressivos, quase todos reportados aos “tempos que o tempo tem”, a velocidade tanto marca o tempo lento da arte e da cultura como o tempo infinitamente pequeno do ciberespaço, esse sexto continente para onde emigramos virtualmente. Eis alguns desses enunciados. As palavras são de Paul Virilio, a composição é da minha responsabilidade. Um artigo próximo deste está no jornal Observador.

Velocidade e cronopolítica

Vivemos na era da cronopolítica, em pleno culto da velocidade-luz, numa verdadeira corrida contra o tempo. Tudo fica para trás. A velocidade das transações excede o tempo da política, tornando o estado-nação uma figura cada vez mais decorativa.

Do mesmo modo, a velocidade das transações consente e garante a hegemonia da especulação sobre as necessidades reais da economia. No mesmo sentido, a velocidade é uma espécie de embriaguez que deixa para trás o mundo sensível e a sensibilidade.

Na corrida contra o tempo, tudo concorre para a formação de um buraco negro da extra-territorialidade, lá onde tudo pode acontecer.

Os acidentes do conhecimento

É preciso afirmá-lo sem rodeios. A propaganda do progresso oculta os acidentes do conhecimento, a gravidade do tempo acidental. Na idolatria do progresso, a velocidade é a face escondida da riqueza e do poder. Uma investigação que não investiga a sua própria tragédia ou desastre não é uma investigação.

Ao transferirmos uma parte significativa do conhecimento para as máquinas do tempo, corremos o risco de que a sincronização dos sistemas automáticos e a velocidade de propagação dos seus efeitos nos coloquem à beira do “desastre integral”.

O geocídio ou o fim da geografia

Estamos a cometer uma espécie de geocídio. A História transferiu-se da Terra para o Céu. Hoje em dia o poder não é mais geopolítico, vivemos a dimensão mística do cosmos, do grande vazio sideral, das ondas que atravessam o ciberespaço.

É o fim da geografia, o fim dos lugares identitários. A Terra é muito pequena para a velocidade, a economia e a ecologia irão ficar face a face e fundir-se, isto é, a aceleração do tempo torna o mundo plano. No mundo plano emergem os não-lugares e a identidade dá lugar à rastreabilidade. Sem um lugar onde possa ser, torno-me um estranho.

O dilema do prisioneiro

Vivemos o dilema do prisioneiro, presos que estamos nas teias do imediatismo e do mediatismo. A aceleração do tempo impede-nos de ver a diferença entre verdadeiro e falso. Por outro lado, a aceleração do tempo real põe em causa a perceção do mundo sensível e a empatia entre os seres humanos.

Finalmente, devido à torrente e à loucura da informação, está em curso a desconstrução da cultura geral que nos pode levar até à alucinação.

O tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina, um tempo instantâneo, infinitamente pequeno, um tempo do reflexo e não da reflexão. Somos prisioneiros desse tempo infra que a aceleração transforma num tempo inabitável e irrespirável.

A colónia virtual

Numa democracia virtual de reflexos condicionados, vemos tudo através de um écran que entra em concorrência com a escrita e a imagem em concorrência com a linguagem. O ciberespaço, o sexto continente, é uma espécie de colónia virtual para escapar ao mundo plano.

Nesta colónia virtual, experimentamos a sincronização das emoções ou a possibilidade de um comunismo dos afetos, isto é, corremos o risco de uma nova tirania dos sentimentos. No sexto continente a aceleração da realidade impede-nos de ver a realidade, o tempo humano é esmagado, não vemos nada.

Já não vivemos o presente, vivemos o instante de uma realidade acelerada, tudo num instante. O instantâneo e o imediato, eis os conceitos do tempo atual e a substância dos nossos modos de vida.

Os transportes e as transmissões fizeram encolher o mundo, de tal modo que vivemos uma espécie de encarceramento psicológico, onde parece que estamos constantemente a ser observados.

Os sistemas automáticos

A velocidade foi a revolução dos transportes, hoje a velocidade é a revolução das transmissões instantâneas. Se o tempo é dinheiro e a velocidade é poder, a financeirização da economia é uma questão de alta velocidade.

Os mini-crashes serão cada mais frequentes devido aos automatismos das máquinas e à matematização da realidade. A velocidade transforma o estado-nação numa variável endógena da globalização, a economia dos acidentes será um tópico recorrente.

A arte e a cultura do tempo lento

A globalização gera um sentimento de claustrofobia da humanidade, a Terra é muito pequena para a revolução das telecomunicações. Ora, nós também vivemos de distâncias.

A arte e a cultura introduzem distância e duração, por isso nós dizemos, faça da sua vida uma obra de arte.

Não há globalização sem virtualização, o teatro e a dança são as únicas duas linhas de resistência à virtualização, as duas artes do corpo por excelência.

A abolição das distâncias geográficas significa o envelhecimento do mundo, o esgotamento de um mundo finito, que melancolia!

O risco de uma ciência sem consciência

A finitude da vida e os acidentes sistémicos que nos esperam: a bomba atómica, a bomba informática, a bomba genética, a bomba climática.

Há um momento em que a arrogância da ciência se torna insuportável, pois não tem em devida conta os seus efeitos negativos: a pegada ecológica, a pegada informática, a pegada nuclear, a pegada genética, a pegada climática.

Um dia a ciência ainda vai ser obrigada a engolir a sua arrogância tecnocientífica e a viver de acordo com a grandeza da pobreza.

Nota Final

É tempo de ler Paul Virilio, apesar de algumas críticas sobre o pendor por vezes alarmista de algumas das suas reflexões.

É certo, talvez não seja, ainda, o fim da geografia, como não foi o fim da história anunciado por Fukuyama. A dromologia de Paul Virilio revela-nos que para cada velocidade teremos escolhido uma realidade e um tempo de vida.

É, pois, fundamental que dediquemos um cuidado especial aos “tempos que o tempo tem”, desde o tempo lento da arte e da cultura até ao tempo infinitesimal dos instantes do quotidiano.

No final, cada um de nós é, também, um produto de múltiplas velocidades, cada uma delas abrindo para uma realidade diferente da nossa vida.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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