O Centenário do Ministério da Agricultura

Agora que celebramos o centenário, estou convencido de que, doravante, as prioridades de um Ministério da Agricultura serão mais transversais e ecléticas, provavelmente no sentido de um ministério da coesão territorial e da transição ecológica, como em França

No passado dia 4 de outubro, teve lugar na Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve uma sessão comemorativa do centenário do Ministério da Agricultura, com a presença do Senhor Ministro da Agricultura Luís Capoulas Santos e dos Secretários de Estado, Luís Vieira e Miguel Freitas.

Tendo sido convidado para proferir uma palestra a propósito dessa ocasião transcrevo aqui as linhas gerais dessa intervenção.

Introdução

Como imaginam, não é fácil tratar um assunto tão vasto em tempo tão limitado. O ângulo de observação conta muito, por isso vou adotar uma perspetiva mais eclética tendo em vista, justamente, minimizar os “eventuais danos” de uma abordagem mais especializada. É uma opção entre outras que encerra, também, alguns riscos.

No primeiro tópico, farei a “periodização do centenário”, não para procurar um padrão ministerial, mas para facilitar a leitura de um período tão alargado de tempo, com uma ênfase especial no período pós-25 de abril, ou seja, os últimos 44 anos.

No segundo tópico, mais próximo de nós, abordarei, na economia agrícola regional, a relação entre os efeitos de polarização, dispersão e aglomeração, no que diz respeito à gestão dos seus efeitos tal como se manifestam na triangulação entre turismo, ambiente e agricultura.

No terceiro tópico, a pensar já no futuro próximo, abordarei o modelo de governação agrícola regional, em especial no que diz respeito às variantes de modernização da administração pública no plano dos serviços regionais. Terminarei com duas pequenas notas finais.

I. O passado, a periodização de um século de existência

O centenário do Ministério da Agricultura decorre entre 1918 e 2018. No tempo do regime corporativo é preciso recordar que entre 1940 e 1974 não houve ministério da agricultura, mas, apenas, uma subsecretaria de estado (1940-1958) e uma secretaria de Estado (1958-1974) integradas no Ministério da Economia.

Em 1974, a administração regional da agricultura é feita de circunscrições florestais, estações agrárias, delegações agrícolas e veterinárias, juntas de colonização interna e hidráulica agrícola, organismos de coordenações económica, casas dos pescadores e grémios da lavoura.

– O período revolucionário entre 1974 e 1977:

Este período procura, obviamente, digerir a herança recebida, abrigar um número crescente de funcionários, ao mesmo tempo que se sucedem as soluções para “descorporativizar” e dar coerência aos vários serviços: coordenação agrícola do Algarve, serviço de apoio e desenvolvimento agrário do Algarve (SADA), centro da reforma agrária do distrito de Faro.

De resto, pelo interior destes serviços e da sua nova elite dirigente passavam todas as contradições políticas do período revolucionário.

– O período de consolidação orgânica dos serviços entre 1977 e 1985:

Este período atravessa os primeiros governos constitucionais, numa conjuntura muito crítica e atribulada. Basta lembrar as duas “cartas de intenções” assinadas com o FMI em 1978/79 e 1984/85, que impuseram fortes restrições de crédito bancário à economia nacional.

Estes factos querem também dizer que a modernização da agricultura ficou por conta e inteiramente dependente das decisões dos agricultores.

Neste período, a direção regional adotou uma política de proximidade com a criação das zonas agrárias, a prioridade à extensão rural e à formação profissional, razão pela qual se assistiu a um crescimento substancial do número de funcionários na sequência, de resto, da integração de “retornados”.

– O período entre 1985 e 1993, de transição e preparação para a PAC:

Este é o período das ajudas de pré-adesão às Comunidades Europeias (1986), do programa específico de desenvolvimento da agricultura portuguesa (PEDAP), da aplicação dos regulamentos europeus nº797 (investimento nas explorações agrícolas) e nº355 (investimentos de transformação).

É também o período da primeira etapa de transição da agricultura portuguesa (1986-1991), da reforma da PAC de 1992, da entrada em vigor do mercado único europeu (novembro de 1993), do início dos critérios de convergência nominal para a moeda única (1994) e o período em que se aplica o primeiro quadro comunitário de apoio (QCA) a Portugal.

Importa ainda recordar que nesta altura o governo português renegociou a 2ª etapa de transição agrícola, trocando a proteção do período entre 1991 e 1996 por uma compensação financeira de cerca de 120 milhões de contos.

Estes factos traduziram-se na abertura do mercado nacional à concorrência europeia e num impacto brutal sobre as pobres explorações agrícolas portuguesas que agora davam, timidamente, os primeiros passos no sentido da sua modernização.

– O período entre 1994 e 2006, modernização e emagrecimento da agricultura portuguesa:

Este período abrange dois quadros comunitários de apoio (1994-1999 e 2000-2006) e os programas de modernização da agricultura PAMAF e AGRO e os programas de acompanhamento AGRIS, RURIS e LEADER, nas vertentes mais rural e agroambiental.

Neste período, a agricultura portuguesa sofre o impacto de três reformas da PAC: a reforma de 1992 que introduz as ajudas diretas ao rendimento e as medidas de acompanhamento agroambientais e agroflorestais, as reformas de 1999 e de 2003 que aprofundam as regras de mercado, o desligamento das ajudas, as questões de segurança alimentar e a condicionalidade agroambiental.

Os programas de apoio modernizam as explorações agrícolas e o aumento da sua dimensão média, mas, ao mesmo tempo, a concorrência internacional reduz substancialmente o número de explorações.

Por outro lado, as novas regras de condicionalidade da PAC introduzem custos adicionais de operação, controlo e auditoria que implicam um esforço administrativo e técnico acrescido para as explorações agrícolas e direções regionais de agricultura.

– O período entre 2007 e 2020, atípico e surpreendente:

Este período abrange os dois últimos quadros de referência estratégicos (2007-2013 e 2014-2020) e os programas de modernização e desenvolvimento para a agricultura e desenvolvimento rural denominados PRODER e PDR respetivamente. Este é um período muito atípico, com a grande recessão de 2008, o programa de assistência financeira da Troika entre 2011-2014 e os dois programas de reforma da administração central do Estado, PRACE (2007) e PREMAC (2012) que introduziram na administração pública o chamado quadro de disponíveis.

O Ministério da Agricultura foi especialmente visado neste processo de emagrecimento do seu quadro de pessoal. No entanto, é, também, um período surpreendente, na medida em que a agricultura e a agroindústria se apresentam em contraciclo face à situação recessiva da economia portuguesa.

Neste período aumentam as exportações agroalimentares e melhoram a taxa de cobertura e o défice agroalimentar. Ao mesmo tempo, acentuando uma tendência que já vinha de trás, assiste-se ao reforço das funções de controlo, validação, inspeção e auditoria que a automatização de processos e procedimentos consente cada vez mais. A segregação de funções, a sua especialização funcional, digitalização e verticalização, aumentam o poder das direções gerais e das autoridades de gestão de Lisboa.

Se em 1977 os técnicos da direção regional eram essencialmente “técnicos de campo”, hoje, 40 anos depois, qual sinal dos tempos, os técnicos da direção regional são essencialmente produtores, analistas e consumidores de dados.

II. O presente, os efeitos de polarização, dispersão e aglomeração da economia regional algarvia

A economia regional do Algarve é fortemente polarizada pelo setor do turismo. Esta polarização coloca muita pressão numa economia de pequena dimensão e perturba bastante o funcionamento dos mercados fundiário, do trabalho e dos investimentos. O mercado fundiário fica expectante, o mercado do trabalho joga na sazonalidade, no biscate e na pluriatividade, o mercado de capitais aposta nos micro investimentos de oportunidade.

A polarização turística criou efeitos de dispersão na triangulação entre turismo, ambiente e agricultura. Além disso, reconhece-se que devido à pluriatividade e ao plurirrendimento as estratégias familiares condicionam as estratégias empresariais, numa atitude defensiva e calculista face à escassez de poupança regional.

A economia regional do Algarve costuma ler-se na horizontal, ao longo da linha de costa, da estrada nacional 125, da autoestrada A22, da estrada nacional 124. Como não está verticalizada, a economia regional transformou os territórios de baixa densidade (TBD) da serra e do barrocal em territórios de 2ª linha e converteu as medidas de política de desenvolvimento local e rural em instrumentos de baixa intensidade, eficácia e eficiência.

Refiro-me, em especial, aos programas integrados de desenvolvimento rural, aos centros rurais, às ações integradas de base territorial, às ações do programa PROVERE, às ações do programa LEADER, às várias medidas e ações do PRODER e do PDR.

É indiscutível, foram realizados muitos projetos, mas a sua sustentabilidade deixou muito a desejar. De facto, não podemos gerir estes instrumentos como simples medidas de mitigação e compensação, pois serão apenas despesa pública e nunca investimento público reprodutivo.

A grande tarefa residirá, portanto, na inscrição dos efeitos de rede entre turismo, ambiente, agricultura e cultura na cadeia de valor de um determinado território e na criação de um ou vários projetos de ligação, por exemplo: parques agroecológicos intermunicipais, percursos turísticos acreditados, produtos de nicho denominados, serviços ecossistémicos remunerados, valores patrimoniais reconhecidos internacionalmente, provas desportivas e eventos culturais de grande prestígio. O modelo de governação regional será decisivo.

III. O futuro, o modelo de governação da economia regional algarvia

No modelo de governação regional, os grandes impactos causados pelas alterações climáticas, as alterações demográficas, as vagas migratórias e a aceleração digital põem em causa a consistência dos territórios e, muito em especial, a triangulação entre turismo, ambiente e agricultura.

Neste contexto, uma administração pública regional responsável não pode limitar-se a ser uma mera loja do cidadão e/ou uma simples circunscrição, antena ou delegação de uma direção geral em Lisboa.

O futuro dos territórios-rede dependerá muito da “arte da composição das cadeias de valor” (ver Público, 4 de abril de 2018) e nesse contexto a recomposição das estruturas de back office das direções regionais serão fundamentais, sempre no “modo” estrutura de missão ou equipa de projeto.

No plano da modernização da administração pública, três hipóteses são possíveis:

– Em primeiro lugar, a “modernização conservadora do estado-silo”. Aqui, estamos em pleno estado informático e nas mãos do negócio digital.
Há mais segregação de funções, mais digitalização de funções, mais Big Data, mais verticalização tutelar, no fundo, uma versão modernista que junta lojas do cidadão, aplicações informáticas para o utilizador e um novo “centralismo desconcentrado”.

– Em segundo lugar, a “modernização digital do estado-plataforma”. Estamos em plena revolução digital, com inúmeras plataformas digitais e comunidades online entre produtores e utilizadores.
A administração local e regional é, ela própria, desmaterializada, altera-se a relação entre o front office e o back office, aparecem novos prestadores de serviços em regime de outsourcing (start up) que convencionam com a “antiga administração” a passagem do testemunho. O drama é, mesmo, a passagem de conteúdos das comunidades online para as comunidades offline e a sua rematerialização.

– Em terceiro lugar, a smartificação do território e a regionalização dos serviços. O que dissemos a propósito das economias de rede e aglomeração e formação das cadeias de valor respetivas só é possível com territórios inteligentes e criativos, isto é, com estruturas de missão e equipas de projeto que saibam lidar com problemas complexos que juntam na mesma cadeia de valor os diferentes sinais distintivos e valores patrimoniais territoriais.
A smartificação do território e a regionalização dos serviços, com a integração e cooperação dos seus back office respetivos, apontam neste sentido, em que as comunidades online são instrumentos úteis das comunidades reais que habitam e vivem o dia a dia dos territórios-rede.
É aqui que a arte da composição dos territórios-rede e das cadeias de valor se afigura fundamental.

Notas finais
A terminar, duas notas finais. A primeira diz respeito à WEB SUMMIT que ficará em Portugal por mais dez anos. Creio que seria uma boa oportunidade para o Ministério da Agricultura lançar um programa de apoio às start up da 2ª ruralidade (ver Público, 17 de março de 2018).

Os exemplos já existem na agricultura de precisão, na silvicultura preventiva, na gestão cinegética, mas, também, na proteção das culturas e na luta biológica.

As alterações climáticas, mas não apenas, são um excelente pretexto para lançar este programa de ação tendo em vista antecipar e monitorar os efeitos externos negativos das alterações climáticas e a adaptação dos sistemas produtivos.

A segunda nota diz respeito às tarefas do Ministério da Agricultura no próximo futuro. Agora que celebramos o centenário, estou convencido de que, doravante, as prioridades de um Ministério da Agricultura serão mais transversais e ecléticas, provavelmente no sentido de um ministério da coesão territorial e da transição ecológica, como em França.

Seja como for, importa não subestimar os problemas de abastecimento e segurança alimentares, os chamados sistemas agroalimentares locais (SAL), pois em face das alterações climáticas nada parece estar definitivamente adquirido.

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