Crónicas do Sudoeste Peninsular: Revolução digital, universo sócio-laboral e 4º setor

As quatro grandes transições civilizacionais que temos à nossa frente – demográfica, climática, digital, migratória – irão provocar, a curto […]

As quatro grandes transições civilizacionais que temos à nossa frente – demográfica, climática, digital, migratória – irão provocar, a curto prazo, uma enorme turbulência, não apenas nas relações sociais e familiares, mas, também, nos mercados de trabalho e nas principais instituições da sociedade. Com efeito, a sociedade global, digital e cosmopolita, em que vivemos deixa prenunciar mudanças de grande alcance durante o século XXI.

Lembremos algumas dessas mudanças: as alterações demográficas e os problemas específicos das sociedades seniores, as alterações climáticas e os problemas de abastecimento local e segurança alimentar, a transformação digital e as alterações estruturais dos mercados de trabalho, as grandes correntes migratórias e os recursos crescentes despendidos em cooperação e segurança internacionais.

Assistiremos, inelutavelmente, a um emagrecimento dos setores de atividade e da atividade empresarial, tal como os conhecemos hoje, ao mesmo tempo que se abre um enorme desafio para reinventar e reprogramar o universo social, laboral e empresarial em profunda transição.

É neste contexto que emerge o 4º setor. O quarto setor é, em primeira instância, e em função da circunstância de cada sociedade, um banco de urgência e uma solução de recurso.

Mas não pode nem deve ser apenas isto, e essa é a razão pela qual a estruturação e organização de um “quarto setor” é uma tarefa de longo alcance, um setor de fusão com uma cultura de pluriatividade e plurirrendimento muito marcante por onde irá passar uma maioria de cidadãos, seja em atividades convencionais de inclusão social ou em atividades mais sofisticadas da economia colaborativa e partilhada.

 

Uma revolução em curso no mundo do trabalho

Está em curso uma revolução tecnológica com fortes implicações no mundo do trabalho. Vejamos as tendências pesadas, sobretudo no campo dos países do chamado mundo ocidental.

Em primeiro lugar, por razões de custo de oportunidade e competitividade no mercado global, a economia pública está obrigada a reduzir a despesa pública para poder reduzir os impostos. Pelo meio reduzirá o emprego público, substituindo funcionários públicos por prestadores de serviços em outsourcing.

Em segundo lugar, a economia social e solidária (o conjunto das instituições particulares de solidariedade social e organizações não governamentais) passará por uma forte racionalização e contração na medida em que depende dos subsídios públicos. Pelo meio reduzirá o emprego social e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades locais da sociedade colaborativa e partilhada.

Em terceiro lugar, a economia privada capitalista, devido à automatização e à concorrência feroz dos mercados globais, reduzirá ainda mais o emprego convencional e externalizará muitas tarefas que passarão a ser oferecidas pela economia on-demand para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime de freelance.

Em quarto lugar, a emergente economia colaborativa e partilhada, em sentido amplo, será uma espécie de lugar geométrico de todas as externalidades, positivas e negativas, das várias economias, uma imensa placa giratória onde o mais importante é mesmo a adesão aos valores colaborativos. Se essa adesão for sincera e entusiástica, a sociedade colaborativa será muito provavelmente a grande casa comum para a maioria dos cidadãos.

Nesta economia colaborativa e partilhada – o núcleo central do 4º setor – circularão, muito provavelmente, para além da moeda oficial, várias moedas locais e criativas. No mesmo sentido, o agente principal desta economia em rede será o cidadão pluriativo que acumula diversos rendimentos, monetários e não monetários, de diversas proveniências, a saber: um emprego em part-time num serviço público e/ou numa empresa privada, uma prestação de serviço em regime de freelance numa empresa on-demand, algumas horas num banco do tempo local em troca de um voucher e, finalmente, uma “inscrição” numa start up colaborativa que partilha e/ou vende uma parte dos seus recursos ociosos em mercados de ocasião e em troca de uma receita eventual.

Como facilmente se comprova, estaremos num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego, “condenados” a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo “se produz a si próprio” numa espécie de corporate individualisme.

A separação entre trabalho, emprego e rendimento

Aqui chegados, abre-se um campo imenso de possibilidades que cruza várias aceções de pluriatividade e plurirrendimento.

Em primeiro lugar, a autoformação oferecida em Opensourcing estará sempre disponível e muito próxima do custo marginal zero.

Em segundo lugar, a escassez de empregos obrigará a repartir e fracionar os horários de trabalho e a oferecer um leque mais diversificado de oportunidades.

Em terceiro lugar, todo o mercado de trabalho se tornará muito mais volátil e adaptativo.

Em quarto lugar, será absolutamente imprescindível a complementaridade de rendimentos, monetários ou não.

Em quinto lugar, as atividades da economia colaborativa e partilhada permitirão ensaiar novas experiências, novos saberes e novas ocupações.

Em sexto lugar, através da economia colaborativa e partilhada, as diferentes comunidades de utilizadores e fornecedores organizarão novos formatos de prestação de serviços com suporte em plataformas tecnológicas cujas aplicações informáticas serão instaladas nos telefones móveis dos jovens e menos jovens que desejam entrar no “mercado de trabalho”.

De acordo com as suas faculdades, capacidades e experiências eles irão inscrever-se em diferentes “aplicações”, geridas muito provavelmente por uma start-up tecnológica recém-constituída, nas modalidades de horário, tempo de trabalho, pagamento, qualidade de serviço, que a sua “presumida reputação” lhes permitir oferecer.

Voltamos, assim, à pluriatividade e ao plurirrendimento, de certa forma ao homem dos sete ofícios de antigamente. Entretanto, enquanto aguarda por uma nova chamada de serviço, poderá continuar, em sua casa, a formação permanente num MOOC (massive open online course) praticamente a custo zero. É o maravilhoso mundo novo que chega!!!

Entretanto, enquanto esta revolução acontece, mudam, também, os termos do debate público em torno do direito laboral e dos direitos sociais dos “novos colaboradores” que serão, entre outros, os seguintes:

– A polarização e bipolarização do mundo do trabalho,
– O fracionamento dos horários e do tempo de trabalho,
– A intermitência e descontinuidade das relações laborais,
– A empregabilidade e formação ao longo da vida,
– A polivalência e multifuncionalidade das competências pessoais,
– Um direito universal de proteção social em vez de um simples direito socio-laboral,
– Um direito de pluriatividade horizontal em vez de um simples direito laboral,
– Um direito fiscal que tenha em devida conta o plurirrendimento e a pluriatividade,
– Um direito comercial que tenha em boa conta a intermitência e o trabalho independente,
– Finalmente, emergirá no debate público a discussão em redor do conceito de rendimento básico universal (RBU) e/ou incondicional, um rendimento mínimo garantido desligado da atividade económica convencional associada a uma relação laboral.

Esta evolução do universo socio-laboral não tem, infelizmente, um guião ou argumento conhecido e, sobretudo, não se conhecem bem as circunstâncias em que irá decorrer.

Suspeitamos, porém, que os percursos profissionais passarão por um período de forte turbulência socio-laboral e sociofamiliar e, nesta exata medida, o próprio RBU terá uma história muito atribulada, com inúmeros afloramentos no espaço público e versões muito mitigadas que se confundirão com rendimentos mínimos garantidos e rendimentos sociais de inserção.

Seja como for, a utopia permanecerá e alimentará o debate no espaço público em redor do Estado-Providência do século XXI.

A organização e estruturação do 4º setor

O 4º setor é o setor dos territórios inteligentes e criativos e onde a geometria variável faz parte da solução criativa. Os territórios objeto de intervenção foram quase sempre delimitados pela fronteira municipal, eles eram geralmente territórios conservadores, pouco inteligentes e imaginativos.

Doravante, a arte da composição dos territórios juntará territórios de geometria variável e esse atributo será um dos elementos fundamentais na estruturação e organização do 4º setor.

As áreas objeto de intervenção serão muito variadas e incluirão: condomínios de bairro, condomínios de aldeia, territórios-rede em zonas rurais desfavorecidas, áreas de paisagem protegida, agricultura acompanhada em áreas suburbanas e periurbanas, smartificação de aldeias e municípios, quintas pedagógicas e terapêuticas, terroirs vitivinícolas, geoparques, zonas termais, zonas serranas, zonas de regadio, associações agroflorestais, cooperativas de produtores e outros territórios sensíveis.

Os destinatários-beneficiários destas intervenções são muito diversificados e incluem: desempregados de longa duração, jovens desempregados à procura do primeiro emprego, aposentados e reformados de baixos rendimentos, grupos vulneráveis e sensíveis da população, trabalhadores precários em trânsito, trabalhadores migrantes em dificuldades de integração.

A estratégia de intervenção nestes territórios deve abranger uma gama muito larga de instrumentos operacionais, por exemplo: a organização de um sistema de institutional food e circuitos curtos, organização de um mercado do trabalho do tempo parcial, organização de um mercado de trabalho on demand, organização de um sistema de voluntariado, organização de um sistema de mercados de ocasião, organização de um mercado de serviços ambientais, organização de um mercado de serviços energéticos, organização de um sistema de serviços partilhados, organização de um mercado de serviços turísticos e de um banco de alojamento local, organização de um espaço comum de artes e ofícios.

Em cada território, a metodologia de intervenção deve contemplar: a criação de uma comissão promotora, a definição de um território de partida, a criação do ator-rede, o projeto de desenvolvimento, o recrutamento dos destinatários das ações de intervenção, o desenho dos trajetos profissionais pluriactivos, o desenho dos projetos associativos e colaborativos, o desenho dos pacotes de formação profissional, o desenho dos projetos empresariais, o desenho de um sistema de incentivos apropriado e o desenho dos sistemas remuneratórios de transição.

Finalmente, a matéria-prima do território em questão serão os chamados “signos distintivos territoriais”. É sobre eles que se vai construir o projeto de desenvolvimento.

Dou alguns exemplos: áreas de paisagem protegida e zonas sensíveis, amenidades paisagísticas e turísticas, endemismos locais, percursos de natureza, denominações de origem protegida, sítios e estações arqueológicos, museus e monumentos, serviços ecossistémicos e corredores verdes, apelações patrimoniais, materiais e imateriais, matas e bosquetes, mercados de nicho e marcas coletivas, parques e quintas pedagógicas, paisagens literárias, festivais, romarias e peregrinações, etc. Estes sinais distintivos constituem o colar de pérolas do território-rede e é a partir deles que se faz a construção social de uma “geografia desejada”, de uma nova identidade simbólica do território.

Notas Finais

Chegados aqui, estou convencido de que por detrás da exuberância tecnológica, da economia das aplicações e dos “empreendedores de start up” há uma revolução silenciosa em curso, uma revolução do bom senso, da inteligência coletiva e da convivialidade.

Por isso, estará em curso, também, o lado mais utópico da revolução digital, em versões muito variadas: a economia colaborativa do 4º sector – o dom, a solidariedade, o voluntariado, a comunhão, a contribuição – a organização dos bens comuns, as moedas sociais e complementares, a inteligência coletiva territorial e a formação de atores-rede, o rendimento básico de existência (a grande utopia do século XXI), a plena aplicação dos princípios da economia circular e uma nova organização do trabalho mais criativa e inovadora.

Em tempo de revolução digital e cibercultura acrescento um último tópico para debate. Trata-se do debate essencial que está por fazer acerca das relações de causalidade entre a métrica das redes digitais e a métrica dos territórios político-administrativos, muito em especial os territórios mais remotos e desfavorecidos do interior do país.

Serviços públicos fixos e permanentes e devidamente municipalizados ou serviços públicos polivalentes, itinerantes e multimunicipais?

O que é que a sociedade digital, as comunidades online e a governação algorítmica podem fazer por estes territórios remotos e esquecidos e pelas comunidades reais do país oculto?

Abandonam, reocupam, retalham, privatizam? Teremos de voltar mais vezes ao assunto.

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