Crónicas do Sudoeste Peninsular: Incursões pelo rural tardio português

A transição ecológica e a transição digital e, sobretudo, a convergência destas duas transições, são os grandes desafios deste século. […]

A transição ecológica e a transição digital e, sobretudo, a convergência destas duas transições, são os grandes desafios deste século. Elas transportam-nos até aos territórios-rede da 2ª ruralidade que são uma malha fina e delicada de pequenos empreendimentos muito bem articulados entre si, verdadeiros laboratórios para testar pequenas economias locais de aglomeração.

O segredo desta arte da composição de territórios é a instituição de um ator-rede que seja capaz de ouvir, interpretar, promover e realizar as aspirações de um território que é sentido e desejado.

Neste particular, a gestão de plataformas digitais pode ser muito útil para colocar as comunidades locais numa relação inovadora com os recursos escassos das comunidades onde vivem. Nesta arte da composição dos territórios-rede cabe uma variedade imensa de configurações socio-territoriais, uma espécie de “arquitetura de interiores” de uma região. A revolução do rural tardio português só agora começa. Senão, vejamos.

– As agriculturas de precisão
No quadro da chamada “internet das coisas“ vem aí a “indústria dos objetos conectados”. Doravante tudo será smart, mais tarde ou mais cedo: a cidade, a habitação, a fábrica, o hospital, o aeroporto, a universidade, o automóvel, o centro comercial, mas, também, o campo agrícola, a empresa pecuária, a floresta, o parque natural, a bacia hidrográfica, etc.

Quer dizer, no âmbito da “internet das coisas” (IOT) e dos sistemas automáticos, praticamente nada escapará aos dispositivos de monitorização, sejam sensores, chips, drones, robots ou câmaras de vigilância.

Se a esta “plantação digital” juntarmos a constelação tecnológica formada pelas nanotecnologias, as biotecnologias, as ciências da vida, do solo e da água e as indústrias da alimentação, teremos seguramente uma ocupação do território muito diferente da atual, com menos gente in situ e mais gente ex situ ocupada em tarefas de vigilância, programação, planeamento e controlo, geridas à distância por “seres aumentados” que administram interfaces eletrónicos e digitais de todo o tipo. Aqui a imaginação não tem limites, o rural tardio português agradece.

– As agriculturas pós-produtivistas e hipocarbónicas
Paralelamente às agriculturas de precisão, surgirão as denominadas agriculturas pós-produtivistas, umas mais sociais e comunitárias outras mais especializadas, mas todas, em princípio, agriculturas de maior proximidade (transição ecológica).

As alterações climáticas, a agroecologia, as economias de nicho e a alimentação saudável, mas, também, os pagamentos pela prestação de serviços ambientais, funcionarão como pretexto e causa próxima e despertarão uma curiosidade crescente por parte dos neorurais.

Nas palavras do Arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles relativas ao “organicismo da paisagem global”: plantações de árvores não são floresta, engenharia florestal não é silvicultura, culturas transgénicas não são agricultura, animais clonados não são pecuária, operações fundiárias não são engenharia biofísica, arranjismo verde não é arquitetura paisagística, esverdeamento de culturas não é prestação de serviços ambientais. Em vez disso, paisagem global é um mosaico muito complexo e interdependente onde cabem a conservação da natureza, a produção de alimentos frescos, as amenidades agroturísticas e a gestão das áreas de paisagem protegida, de acordo com critérios técnicos, mas, também, estéticos e éticos. Vejamos algumas aplicações desta multifuncionalidade.

– As “denominações de origem protegida (DOP)”
No quadro de um parque natural ou de um subsistema serrano, por exemplo, podemos (a parceria local) modernizar o sistema produtivo local, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma denominação de origem protegida (DOP) e uma nova estratégia de visitação do por via de um marketing territorial mais ousado e imaginativo;

– Os “mercados ou segmentos de nicho”
No quadro de um centro termal, de um aldeamento turístico ou de uma amenidade fluvial podemos (a parceria local) recriar um nicho de mercado, por exemplo, um novo espaço público de qualidade para o “turismo acessível, terapêutico e recreativo” (turismo de saúde e bem-estar) com base numa pequena aglomeração de atividades terapêuticas, criativas e culturais criadas para o efeito;

– Os “complexos agroturísticos com campo de férias e aventura”
No quadro de uma empresa, cooperativa ou associação de desenvolvimento local podemos (a parceria local) lançar uma estratégia criativa e integrada de agroturismo e turismo rural que inclua a participação dos visitantes nas práticas agrorurais tradicionais e a colaboração de voluntários de campos de férias, trabalho e aventura;

– As “redes de turismo de aldeias e de natureza”
Um grupo de aldeias com vocação especializada num determinado sector ou produto, as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo, património mundial da Humanidade, associa-se com os empreendimentos turísticos, as associações ou clubes de produtores, uma escola superior e as associações culturais mais representativas, tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de visitação e valorização do património material e imaterial dessa sub-região;

– As “marcas coletivas” para o relançamento de uma gama de produtos
Um grupo de empresas, cooperativas agrícolas e associações de desenvolvimento associam-se tendo em vista desenhar e aplicar uma estratégia conjunta de modernização agrária e comercial para uma sub-região que foi objeto de investimentos públicos significativos e que precisa urgentemente de ser relançada (por exemplo, os novos regadios);

– Os “sistemas ou mosaicos agroflorestais (SAF)”
No quadro de uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), associações de produtores florestais, reservas cinegéticas, áreas de paisagem protegida e as zonas de proteção especial, as comunidades humanas implicadas associam-se para constituir um “sistema agroflorestal (SAF)” ou agro-silvo-pastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos da floresta;

– Um “centro de ecologia funcional e arquitetura paisagística”
As áreas ardidas são um bom pretexto para esta iniciativa. Um centro de investigação na área da biodiversidade, da ecologia funcional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural, uma associação agroflorestal, empresas de turismo em espaço rural, empresas na área do termalismo, propõem-se criar um programa de investigação-ação-extensão tendo em vista a preservação da biodiversidade e dos endemismos locais, a melhoria da oferta de serviços ambientais e a valorização comercial destes ativos biodiversos por via do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos;

– Os “programas vocacionados para aldeias serranas e de montanha”
Um agrupamento de municípios conjuntamente com as associações de desenvolvimento local, os parques naturais e os operadores empresariais respetivos criam uma parceria para desenhar e lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serranas e de montanha e um cabaz de produtos correspondente;

– Os “parques biológicos e ambientais”
Um agrupamento de municípios, um grupo termal, uma área de paisagem protegida, uma associação ambientalista ou de desenvolvimento local propõem-se criar uma espécie de “santuário, amenidade ou ecossistema exemplar” que seja um local de visitação e observação, mas, também, um laboratório de boas práticas agroecológicas e aprendizagem das técnicas de engenharia biofísica, ecologia da paisagem e reabilitação de habitats, economia da conservação, do baixo carbono e da energia renovável e a arquitetura funcional associada à bioconstrução e bioclimatização;

– Os “Parques Agrícolas Intermunicipais” com objetivos de reinserção social
No campo da ação social, um projeto intermunicipal, associativo ou comunitário e com base no voluntariado junta os Sindicatos, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), uma escola superior agrária; o objetivo desta parceria é um programa de reinserção social em sentido amplo, que inclui a formação profissional e a realização de contratos de “institutional food” para abastecimento de escolas, prisões, hospitais, quartéis, lares, etc;

– As “Quintas Pedagógicas, Recreativas e Terapêuticas”
No campo da ação pedagógica, recreativa e terapêutica, um projeto intermunicipal, associativo e comunitário, dirigido aos grupos mais vulneráveis da população com necessidades especiais, que junte as IPSS, os serviços hospitalares, a universidade, as ordens profissionais e os centros de investigação, tendo em vista a provisão de serviços médicos, pedagógicos, recreativos e terapêuticos, mas também ambientais e que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida dos grupos mais sensíveis de população;

– Os condomínios para a gestão de bens comuns
No campo da ação coletiva e da provisão de serviços comuns, para impedir o uso abusivo de recursos naturais que agravam as alterações climáticas e a utilização dos solos, podem ser desenhados várias estruturas associativas sob a forma de condomínio, seja para gerir um banco de terras, um espaço baldio, uma linha de água, um bosquete multifuncional, uma área de agricultura social, um território cooperativo, um parque periurbano, tendo em vista a gestão de “bens comuns” em risco iminente.

Nota Final
Em todos os casos referidos, o propósito é sempre o mesmo: a valorização de recursos escassos e em risco, uma ação coletiva inovadora, a criação de um ator-rede inteligente, a formação de novas cadeias de valor e uma comunidade de autogoverno eficaz.

No rural tardio português, a smartificação do território pode ajudar bastante, as instituições de ensino superior e os recém-licenciados são fundamentais, os municípios e as associações de desenvolvimento local são decisivos e todos eles são determinantes para lançar parcerias e estruturas de acolhimento que despertem a curiosidade dos neorurais.

Em conjunto, a smartificação do território, a criação de territórios-rede, a modernização da agricultura e uma turistificação feita com conta, peso e medida, podem estar na origem de um número apreciável de start-up inovadoras em espaço rural e de um fluxo significativo de neorurais. Apesar das dificuldades temos razões para estar otimistas.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

Comentários

pub