12 passas do Algarve

2018. Ano que, graças às capacidades redentoras daquele segundo mágico que separa o 31 de Dezembro do 1 de Janeiro, […]

2018.

Ano que, graças às capacidades redentoras daquele segundo mágico que separa o 31 de Dezembro do 1 de Janeiro, permite aspirar a toda uma vida nova.

Bem precisamos, depois de um 2017 fatídico, com sabor a terra queimada e à falência de um Estado, que é também sinal de um País cujo projecto – se é que o teve – colapsou por inteiro, revelando uma paisagem devoluta e disfuncional e um povo vulnerável e entregue basicamente à sua sorte e ao acaso das circunstâncias.

Tal bouquet conseguiu, ainda assim, ser saboroso para alguns. A mais até do que pode parecer à primeira vista.

No Algarve, esta vertiginosa atracção pelo abismo que é o desordenamento territorial faz escola, fazendo bater mais depressa os corações decisores em geral, que vêem no planeamento incómodo, adiando sistematicamente o investimento estratégico nesse capítulo. Preferem antes promessas ou concretizações avulsas de “grandes” projectos, quase sempre especulativamente imobiliários ou de transformação fundiária, como resorts ou afins, mais ou menos eco, consoante o nível de sadismo do sentido de humor dos seus proponentes, neles vendo os upgrades que faltam aos seus concelhos, que sem tais delicatessen territoriais concluímos estarem afinal pasmados e tristonhos…

É uma espécie de direito de pernada imobiliária que vigora sobre a região. O tal que, à semelhança do alegado uso costumeiro da Idade Média, que conferia ao senhor feudal o direito de desvirginar noivas na sua noite de núpcias, permite que qualquer intenção, desde que banhada numa aura de muitos milhões (mesmo que imaginários), abra o cinto de castidade de toda e qualquer pérola da paisagem do Algarve.

Sempre em nome de um bem maior, claro está, como tantas vezes nos repetem. Mas que, por puro azar, se adia, empreendimento após empreendimento, faltando ainda cumprir o milagre económico apalavrado. Chegamos à conclusão de sermos, nestas lides, como cães a perseguir as rodas dos carros. Quando finalmente as conseguimos abocanhar, descobrimos não saber afinal o que fazer com elas, nem qual a sua utilidade.

Certo é o capital natural sacrificado em nome de mãos-cheias de nada, que coloca em risco a nossa estabilidade biofísica e agrava problemas como a densificação da ocupação litoral, o despovoamento do interior, as assimetrias regionais e a monocultura económica. No fundo, o adiamento de uma verdadeira competitividade regional.

Tudo coisas boas, num quadro de crescente instabilidade, em que devíamos prestar particular atenção aos desafios globais, cujas dinâmicas não controlamos mas cujos efeitos nos atingem como aríetes, directa e indirectamente.

Por exemplo, ao nível das alterações climáticas e seus efeitos, apesar de muitos discursos, em termos práticos não nos estamos a preparar ou adaptar.

Por isso mesmo permanecemos tranquilos na linha de fogo dos fenómenos climáticos ampliados, consentido e legitimando ocupações em zonas de risco máximo – algumas ainda por cima ilegais, como nas ilhas-barreira da Ria Formosa.

Em parte, porque não temos a coragem colectiva de enfrentar o quão dolorosas são as medidas necessárias, que obrigam a redesenhar profundamente territórios e hábitos. Qualquer decisor que falasse verdade neste campo, estaria condenado a perder eleições…

Não deixa de ser curiosa a transversalidade do discurso crítico à lorpice dos Trumps desta vida, quando, em termos práticos, não marcamos uma diferença assim tão grande em relação a eles…

De outra forma, tranquilidade seria a última coisa nos nossos espíritos, numa região com as nossas características climáticas e geográficas, face à escassez de recursos hídricos. Somos o alegre louco que com um copo de água se acha preparado para atravessar o deserto.

Só assim se compreende a ideia de que um ano de reservas estimadas é uma situação que não requeira particulares medidas de racionalização do uso.

Pelo contrário, em vez de alterar comportamentos insustentáveis, procuramos forma de os legitimar, novamente com ideias de grandes obras, como mais barragens. É uma cegueira voluntária, esta de não querer perceber que a melhor forma de aprovisionar reservas é poupar e optimizar na utilização, particularmente pela alteração de padrões de consumo, seja a nível doméstico, de espaços verdes ou de culturas produtivas.

É a mesma cegueira que nos fecha os olhos à obliteração dos sistemas produtivos de sequeiro, que têm sido paulatinamente cilindrados (ou estufados) pelo progresso de uma maré de polietileno, abacates e outros exotismos, que, fora de qualquer lógica de equilíbrio em termos de mosaico de ocupação, estão a apagar a identidade e as dinâmicas ecológicas e sociais das paisagens rurais algarvias, esvaziando de significado a dieta mediterrânica e fazendo disparar os consumos de água.

Triste história esta, a do Algarve contemporâneo, que se faz à custa não de uma evolução, mas da destruição de todos e quaisquer laços com o seu passado e a sua História, apagando instantaneamente uma herança milenar, literalmente para estrangeiro ver.

Se ao menos sobrassem energias positivas do período entre o Natal e o Ano Novo, para distribuir ao longo do período entre o Ano Novo e o Natal…

Ainda assim, 2017 fechou com uma nota de esperança, que surgiu sob a forma do chumbo da Comissão de Avaliação do Estudo de Impacte Ambiental do projecto Sunset Albufeira Sport & Health Resort, no litoral do concelho de Albufeira.

Sem querer entrar em discussões acerca do mérito da intenção, esta é uma decisão que se destaca fundamentalmente pelo entendimento da paisagem como recurso estratégico e repositório de algo mais importante do que a mera soma das suas partes, numa inédita afirmação e vinculação política, no quadro das opções de gestão territorial, para além dos “meros” (porque frágeis e voláteis) instrumentos legais. Uma opção estratégica, portanto.

2018 não será, porque não pode ser, o ano de milagrosa resolução de todos os problemas.

Mas tem que ser um em que se dêem passos resolutos nessa direcção, pois começamos a ficar sem passas nas quais investir desejos voluntariosos.

Daqui a 12 meses saberemos.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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