A gruta junto à ribeira de Boina e à EN125, na zona da Companheira (Portimão), onde há cerca de um mês sondagens arqueológicas descobriram vestígios de ocupação pelo Homem de Neandertal, com 50 a 60 mil anos, vai passar agora a ter um portão, que apenas permita a entrada aos investigadores.
É que, apesar de os vestígios serem apenas constituídos por instrumentos de pedra lascada e restos de ossos de animais, só visíveis aos olhos treinados dos arqueólogos, a gruta é muito acessível, porque a entrada se situa no talude da EN125, e, com toda a publicidade que tem sido dada ao caso, teme-se que possa haver visitantes indesejados, que, mesmo sem querer, destruam os frágeis vestígios desses nossos antepassados remotos.
O mais curioso é que, apesar de a gruta se situar a 30 metros do perímetro da obra da nova ETAR da Companheira e a 45 metros do local onde efetivamente haverá trabalhos de construção, o dono da obra, a empresa Águas do Algarve, é que vai pagar o portão, em articulação com a Direção Regional de Cultura do Algarve.
Nuno Bicho, o professor e arqueólogo da Universidade do Algarve que coordena os trabalhos de sondagem em curso e descobriu os instrumentos em pedra lascada talhados à moda do Neandertal, salientou, numa visita ao local com jornalistas, na segunda-feira passada, que «o portão é colocado e pago pelas Águas do Algarve, por um gosto cívico, no sentido de garantir a proteção do património arqueológico». A gruta está «completamente fora do perímetro da obra, por isso as Águas do Algarve não tinham qualquer responsabilidade, mas quiseram ir para além do que era legalmente sua obrigação». A empresa, faz questão de sublinhar o investigador, «tem sido absolutamente exemplar neste caso».
Mas, no terreno onde está a decorrer a obra, também têm sido encontradas outras cavidades na rocha calcária, típicas de uma zona cársica. No entanto, até agora, e como verificou o Sul Informação no local, trata-se apenas de «vazios», espaços ocos abertos no calcário, sem qualquer acesso ao exterior, resultantes de fenómenos geológicos e da ação da água.
Todos esses espaços, nomeadamente na área onde serão construídos os enormes tanques de decantação da futura ETAR, logo que são encontrados, têm sido alvo de exame minucioso. Mas são isso mesmo, apenas «vazios».
No terreno, mas numa zona que não será afetada pela construção de qualquer estrutura, foi ainda encontrado um algar, uma cavidade natural aberta na rocha calcária por ação da erosão química provocada pela água, como as que se encontram na costa algarvia.
Esse algar, detetado durante a segunda fase da avaliação do potencial arqueológico do terreno e após a desmatação, apresenta-se agora tapado de terra e vai ser alvo de escavações arqueológicas e de avaliação mais detalhada, como garantiu, na visita ao local, Tiago Fraga, arqueólogo responsável pela Archeofactory, a empresa contratada pelo empreiteiro para fazer o obrigatório acompanhamento arqueológico.
A intervenção no algar, que está ainda a ser «validada», ou seja, autorizada, pela Direção-Geral do Património Cultural, deverá começar no espaço de um mês e passa por utilizar meios mecânicos para retirar a terra que o está a tapar e depois «ir lá abaixo».
Para complementar este trabalho, no perímetro da obra vão agora ser feitos «estudos de levantamento do maciço, através de perfis geo-elétricos», explicou Teresa Fernandes, porta-voz das Águas do Algarve, que também acompanhou a visita dos jornalistas. Com esse levantamento, o arqueólogo Tiago Fraga garante que serão obtidas «informações mais conclusivas».
Entretanto, apesar de todos os cuidados que a potencial presença de património arqueológico de grande importância exige, as obras da nova e tão desejada ETAR da Companheira continuam a ritmo normal, provando que é possível conciliar proteção do património e construção.
«A obra está orientada de modo a não haver atrasos, para as zonas onde se sabe que não há vestígios. As máquinas estão a trabalhar em zonas onde se sabe que não há nada», assegurou o arqueólogo Tiago Fraga.
Uma gruta escondida perante os olhares de todos
Mas o local mais importante é mesmo a gruta, cuja entrada se vislumbra a meio do talude da EN125, onde o trânsito passa veloz e continuamente.
Nuno Bicho, arqueólogo da UAlg, trepa agilmente até à entrada da gruta, apenas para mostrar onde esta se encontra, meio tapada por um arbusto. A gruta, que até já era conhecida de algumas pessoas mais curiosas da zona de Portimão, ficou mais ou menos visível quando, nos anos 90 do século passado, se construiu a nova ponte do Arade e a variante a Portimão da EN125. Mas nunca tinha sido devidamente identificada, muito menos investigada.
«A câmara, que tem uns cinco metros por cinco e uma altura que pode ir dos dois ou três metros até sítios em que temos de rastejar, está a uns quatro metros do topo da colina e a entrada atual a uns dois ou três metros do topo», disse o arqueólogo ao Sul Informação, que o visitou esta semana no laboratório do seu ICArEHB – Interdisciplinary Center for Archaeology and Evolution of Human Behavior, situado no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve, em Faro.
«Mas a entrada original não seria muito distante do que é hoje», acrescenta.
Da primeira sondagem feita num quadrado de um metro de lado no interior da gruta, por Nuno Bicho, por outros elementos da sua equipa, e ainda pelo arqueólogo Frederico Tatá Regala, da Direção Regional de Cultura do Algarve, foi retirada uma caixa cheia de espólio. São «utensílios em pedra lascada, típicos do período do Paleolítico Médio, momento em que viveu o Neandertal, e alguns restos ossos, de faunas, provavelmente correspondem aos animais que foram caçados e comidos por esses nossos antepassados, coelho, veado, auroque [um antepassado dos bois atuais]».
Tudo está agora devidamente acondicionado e identificado em pequenos sacos de plástico com etiquetas.
O arqueólogo espalha o conteúdo de um dos sacos na mesa e explica: «estas são as peças diagnóstico», ou seja, os objetos talhados em pedra (as marcas do talhe são visíveis nos pequenos instrumentos líticos) que permitem perceber, pela técnica utilizada, a que época humana se referem. E como se avalia isso? «Tem a ver com a morfologia da peça, como foi preparada para ser extraída», acrescenta Nuno Bicho.
Além de ossos de animais, como um enorme dente de cavalo, há diversos instrumentos em pedra, que eram usados «para raspar ou para caçar», por exemplo. Trata-se, diz o investigador, de «lascas Levallois», a técnica identificada como tendo sido usada há 50 ou 60 mil anos pelos Homens de Neandertal e por isso peças que permitiram identificar e fazer uma primeira datação da gruta da Companheira.
Mas alguns dos materiais recolhidos serão também enviados para datação no Instituto Max Planck, em Leipzig, na Alemanha.
Os instrumentos de pedra lascada têm um aspeto muito rudimentar, feitos num material que não era sílex, «talvez seja grauvaque». Instrumentos líticos muito simples, mas que poderão contar histórias bem antigas, desses nossos desaparecidos antepassados, dos quais nós, os homens e mulheres atuais, temos 2 a 5% de ADN nos nossos genes.
E o que se seguirá agora? Ainda no âmbito do protocolo entre a Direção Regional de Cultura e a UAlg, que tem a ver com o projeto liderado por Frederico Tata Regala, para avaliar e reconhecer o potencial arqueológico do sistema cársico na região, «vamos acabar a sondagem que iniciámos e depois vamos parar», diz Nuno Bicho. «Vamos mesmo – ou tentaremos ir – até à rocha base, para termos uma ideia do potencial completo da gruta».
Depois a gruta será fechada com o portão e «eu e a minha equipa poremos um pedido especial para um projeto de investigação não só para esta gruta, mas também para a de Ibn Ammar. A ideia é fazer um trabalho específico sobre as grutas que existem aqui no vale do Arade».
Esse projeto de investigação terá duas vias paralelas – uma passa pelo financiamento e reconhecimento científico através da Fundação Ciência e Tecnologia (FCT), «no âmbito do concurso que esperamos que abra ainda este ano».
A outra será submeter à DGPC, no próximo ano, um PIPA (Projeto de Investigação Pluri Anual), para iniciar os trabalhos de investigação a partir de 2017.
O projeto de investigação pretenderá determinar a relação entre as gruta de Ibn Ammar, do outro lado do vale do Arade, e esta. «Num determinado período, os nossos antepassados Neandertais viveram neste vale e aproveitaram os seus recursos. Do ponto de vista científico, a ideia não é apenas escavar um sítio arqueológico, mas perceber o enquadramento e a ecologia de um determinado grupo humano que viveu há 50, 60 mil anos».
Nuno Bicho está entusiasmado e considera que o potencial desta gruta da Companheira poderá ser fonte de estudo e investigação durante muitos anos. «Em Vale de Boi [concelho de Vila do Bispo], começámos em 2000, só parámos um ano, já lá vão 16 anos de trabalho», exemplifica.
«A distância a que a gruta está é meia hora de caminho daqui [de Gambelas]. Aquilo ficará fechado com o portão quando lá não estivermos, o que garante a segurança do sítio. Depois, é uma gruta, abrigada do sol, da chuva, do vento, do calor e do frio. Podemos escavar todas as semanas lá, ao longo de todo o ano. Podemos incluir alunos da UAlg na escavação e ir lá dois dias por semana durante todo o ano, o que nos vai facilitar muito o trabalho», explica o arqueólogo.
Em laboratório também haverá muito trabalho a fazer, nomeadamente a identificar os ossos dos animais e outros vestígios.
Enquanto está a arrumar de novo, nos saquinhos, os materiais já recolhidos na gruta, Nuno Bicho pára e observa com mais atenção um pequeno osso, que aos olhos destreinados da repórter parece ser um dente.
Não seria fantástico encontrar ossos de Homem de Neandertal? Nuno Bicho é cauteloso: «Em Portugal, com exceção do Lagar Velho, que é um enterramento único no mundo, não há vestígios de ossadas humanas no Paleolítico. Há em duas ou três grutas da Estremadura Portuguesa apenas um ou dois dentes ou uma falange de Neandertal. As possibilidades são muito baixas de encontrar ossos de Neandertal, muito menos um esqueleto inteiro. Mas há sempre a esperança»… Veremos o que resulta das investigações que se vão seguir nos próximos anos.
Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação
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