O concerto de abertura da 11ª edição do Festival Terras Sem Sombra terá lugar no próximo sábado, dia 14 de Março, às 21h30, na igreja matriz de Santo Ildefonso, em Almodôvar.
À semelhança das edições anteriores, todos os concertos e atividades que decorrerão até 4 de Julho serão de entrada gratuita.
A organização do festival está a cargo do Departamento do Património da Diocese de Beja.
Fundado em 2003, o Festival Terras sem Sombra coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos, na inclusão, na sustentabilidade e na irradiação do Alentejo.
Uma programação de qualidade internacional integra – para além dos concertos – conferências temáticas, visitas guiadas e ações de pedagogia artística.
A valorização dos recursos naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espetáculo associa-se uma ação de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade, com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o Festival percorre.
Nesta 11ª edição, o FTSS inclui, entre as suas novidades, a direção artística do reputado crítico de música espanhol Juan Ángel Vela del Campo.
O historiador José António Falcão reassume as funções de diretor-geral interrompidas enquanto assumiu a presidência do OPART – EPE, que integra o Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado.
Sara Fonseca, vogal da direção do Departamento do Património da Diocese de Beja, é a diretora-executiva do Festival Terras Sem Sombra, e Pedro Rocha é o coordenador das ações de salvaguarda da biodiversidade.
O concerto de Almodôvar no próximo dia 14 de Março inaugura uma edição do FTSS que tem como tema “O Magnum Mysterium – Diálogos Musicais no Sul da Europa (Séculos X-XXI)”.
O programa do concerto, Medievália Ibérica: Monodias e Polifonias Hispano-Portuguesas dos Séculos X a XIV, reúne um reportório de cânticos sagrados hispânicos que, pelas suas origens e raridade da sua interpretação, o tornam um motivo de grande interesse para todos os amantes da música.
Com interpretação a cargo do ensemble Schola Antiqua – que, juntamente com o seu diretor musical, Juan Carlos Asensio Palacios, se dedica ao estudo, investigação e interpretação da música antiga e, em especial, de canto gregoriano, sendo internacionalmente considerados como integrando “a 1ª Divisão do Canto Gregoriano Peninsular” – o programa deste concerto une Portugal, a Galiza e uma zona de França com muitas relações com esta área ibérica.
Destaca-se do programa uma seleção de peças gregorianas incluídas no Breviário de San Rosendo de Celanova, localizado na diocese de Orense, região galega que manteve sempre contactos muito intensos com Portugal.
O códice em questão, datável do último terço do século XII, apresenta-se como um produto típico da transição do rito hispano-visigótico para o romano-franco, ao combinar a nova liturgia com reminiscências da antiga.
Outra raridade interpretada pelo Ensemble Schola Antiqua será a antífona em verso rítmico Stella coeli exstirpavit, de origem incerta, amplamente difundida como fórmula de proteção contra a peste e cujo texto, de manifesto colorido astrológico, se compõe de duas estrofes seguidas por três invocações a Maria, mãe de Cristo.
Ainda no âmbito da devoção à Virgem, as litanias que introduzem o concerto Medievália Ibérica são exemplificativas não só das orações intercessórias associadas às práticas processionais, mas também das mutações e acréscimos de índole mariana a que o repertório litânico dos santos foi sujeito a partir de finais do século XII.
Testemunhos magníficos de polifonia medieval são igualmente as três composições relacionadas com a Ordem de Cister incluídas no programa, bem como o hino a duas vozes, Exultet caeli curia, dedicado a São Bernardo, o fundador da casa-mãe cisterciense de Claraval.
Esta peça, datável em torno a 1225, constitui o único exemplo chegado até nós de escrita polifónica portuguesa anterior a 1400 e ainda, simultaneamente, um dos dois testemunhos mais antigos de polifonia ibérica.
Passeio pelas margens do Vascão
Tal como é já tradição das edições anteriores, músicos e público, moradores e visitantes juntam-se no dia seguinte – neste caso, domingo, 15 de Março –, para uma ação de voluntariado orientada para a salvaguarda da biodiversidade.
Esta caminhada pelas margens da ribeira do Vascão conta com a colaboração do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do Guadiana) e da Liga para a Proteção da Natureza, com o apoio da Câmara Municipal de Almodôvar.
A organização do Festival Terras Sem Sombra tem apostado fortemente na defesa e promoção do estudo e valorização da bacia do Vascão, sendo este o quinto ano consecutivo em que é inclui no programa de biodiversidade do festival.
Este rio, que assinala a fronteira entre o Alentejo e o Algarve e, simultaneamente, estabelece a ligação entre morfologias (Serra do Caldeirão e Peneplanície alentejana), é um dos poucos cursos de água relevantes em Portugal sem qualquer interrupção no seu trajeto (barragens ou represas). Facto singular, constitui um dos critérios mais relevantes para a classificação da área como Sítio Ramsar.
Ao longo de um percurso pedestre, os participantes nesta ação analisarão a biodiversidade do Vascão nas suas múltiplas facetas e serão indicadas pistas para a sua valorização.
A iniciativa associa-se ao projeto LIFE Saramugo – Conservação do Saramugo (Anaecypris hispanica) na Bacia do Guadiana, da Liga para a Proteção da Natureza, recentemente iniciado e que tem atuações previstas neste curso de água.
A valorização da Aguardente de Medronho, património do Sul
A componente patrimonial e promoção e a internacionalização dos produtos regionais é outra das marcas de identidade do Festival Terras Sem Sombra, que este ano escolheu a aguardente de medronho, produto de excelência da região de Almodôvar.
Esta aguardente (Arbutus spiritus) é uma bebida muito conhecida em todo o país, em especial no Sul. Toma-se quase sempre após a refeição, com o café, como um digestivo. O medronheiro (Arbutus unedo L.), por seu turno, é uma das espécies mais comuns de frutos carnudos na região do Mediterrâneo.
Em São Barnabé, uma freguesia nas serranias entre o Alentejo e o Algarve que enfrenta o envelhecimento da população, a crescente emigração, a desertificação e a degradação dos solos, desde sempre que o rendimento familiar se funda na agricultura e a produção de aguardente de medronho representa uma contribuição forte para o sector económico.
Trata-se de uma atividade tradicional que faz parte da herança cultural portuguesa e está a conseguir sobreviver ao declínio do interior.
Na zona de Almodôvar, o clima continental proporciona que a Primavera esteja cheia de flores e o Verão se revela amiúde quente e seco, sendo, pois, um lugar perfeito para os medronheiros, que crescem espontaneamente ao longo da vasta faixa montanhosa em que se destaca a Serra do Caldeirão.
Surpreendem-nos aqui um território único, com uma mancha vegetal pouco tocada pelo homem, e sucessivos espaços onde a agricultura tradicional permanece inalterada, em equilíbrio com a natureza. O medronheiro constitui um elemento importante nesta paisagem única.
O medronheiro cultiva-se, entre nós, pelo menos desde o século IX. Em Outubro, Novembro e Dezembro, ocorre a colheita à mão dos medronhos, sendo, depois, alvo de processamento em pequena escala, sem aditivos, de modo a obter-se um sabor perfeito.
Tem-se conjeturado que a tecnologia de destilação do medronho terá vindo para a Península Ibérica com os muçulmanos. Em bom rigor, até hoje, foi muito pouco o que mudou desde a época medieval.
Não existe uma indústria em grande escala de produção da aguardente de medronho no país. Tudo costuma ser feito localmente, sob a forma de pequenos negócios familiares, o que assume uma dimensão cultural e social muito importante, nem sempre bem compreendida.
Há poucos anos, um excesso de zelo na interpretação da legislação comunitária lançou o caos entre as modestas destilarias alentejanas e algarvias. O bom senso acabou por imperar. Na atualidade, jovens empresários estão a dar cartas no sector, cujo futuro se adivinha risonho.
Após uma grave crise que afetou muitas explorações agrícolas e industriais do Sul, é com orgulho que a região assiste à fecunda transmissão de artes e saberes entre gerações, ao serviço de um produto de qualidade: a aguardente de medronho, um dos símbolos da identidade nacional.