O dia em que o lobo mau ganhou

Perdoem-me, os mais atentos a anteriores escritos desta pena, o regresso a esta fábula. Toda a gente, miúda ou graúda, […]

Perdoem-me, os mais atentos a anteriores escritos desta pena, o regresso a esta fábula.

Toda a gente, miúda ou graúda, tem uma ideia, nem que seja aproximada, da correlação de forças que existe entre um pequeno clã de porquinhos (constituído, mais concretamente, por três indivíduos) e um solitário lobo, apostado na provocação do caos e da destruição, tendo em vista a deglutição dos referidos suínos.

O lobo, diz-nos a literatura, dá-se mal.

Alguns acrescentarão que convém não esquecer que o lobo é mau. A esses, peço que sustenham esse epíteto durante mais algumas linhas. Já lá vamos.

De qualquer modo, o lobo dá-se mal porque os róseos bácoros, embora patuscos e bonacheirões, não são parvos de todo.

“Então e os porquinhos que fizeram casas em palha e em madeira?”, perguntarão os mais recordados da historieta, de entre vós. Esses não foram parvos, na modesta opinião deste escriba. Foram, isso sim, num determinado momento, ingénuos ou tocados por alguma soberba, pois acreditaram que com pouco esforço, e muita ligeireza de espírito, estariam prevenidos contra todos os males, concretamente os derivados de elementos lupinos. No entanto, quando confrontados com a cruel e abrupta ruína das suas erróneas convicções, tiveram a presença de espírito de emendar a mão, e procurar refúgio junto do porquinho mais precavido, resguardado atrás de sólidas paredes de alvenaria.

Ergo, parece-me que não os podemos achar parvos de todo…

E, já que estamos na questão dos juízos, voltemos ao lobo e à sua alegada maldade. O lobo em causa é forte, é impetuoso, quiçá um nadinha prepotente e com alguns problemas de socialidade. E é carnívoro. Ora porquinho é chicha de primeira. Vai daí, o lobo não tenta comer os porquinhos porque seja mau, ou porque tenha alguma espécie de questão pessoal contra os recos. Fá-lo porque é essa a sua natureza.

Agora imaginemos que os dois primeiros porquinhos decidiam ignorar as evidências, e manter-se fiéis à sua teimosia e orgulho. Imaginemos que, mesmo perante o colapso do seu afinal frágil mundo de certezas, se mantinham obstinados na persistência do erro.

Alguém adivinha o resultado?

Pois é, os bacorinhos já eram…

O terrível tornado de Oklahoma, à semelhança de outros fenómenos naturais extremos (como o que assolou Lagoa e Silves, em Novembro do ano passado), envolvendo não apenas vento mas também água, fogo e terra, são enormes lobos a uivar e soprar à nossa porta.

Sejamos cegos, surdos e mudos, e esqueçamos as alterações climáticas e a influência das actividades humanas na sua evolução.

Enfiemos a cabeça na areia e consideremos que tudo isto (a intensidade extrema e a ocorrência cada vez mais frequente) é naturalmente assim, ou, à semelhança de alguns, que é inspiração divina de uma qualquer Nossa Senhora.

Nós temos a felicidade de ter tido quem, dotado de visão e presença de espírito, acautelasse a protecção de zonas fundamentais ao funcionamento dos ciclos elementares das nossas paisagens. Entre muitas outras e importantes funções, houve a tentativa de salvaguarda da não ocupação, com actividades incompatíveis, das zonas mais sensíveis dos sistemas naturais, onde normalmente as consequências destes fenómenos, de grande acumulação e libertação de energia, se fazem sentir de forma mais danosa para pessoas e bens.

Alguém nos construiu a casa de alvenaria. E fê-lo sob a forma da Reserva Ecológica Nacional, identificando áreas sujeitas a cheias, áreas de encostas potencialmente instáveis ou zonas de interface marítimo-terrestre (onde batem as ondas, pasmem-se os cépticos), entre outras.

É verdade, volto a bater nesta tecla, mas custa-me tremendamente o progressivo retrocesso civilizacional de 30 anos a que assistimos, impávidos e serenos. Pior ainda, com a nova Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo que se avizinha.

Já fizemos parte da vanguarda do pensamento europeu em ordenamento do território e conservação da natureza. Agora deixamo-nos, estupidamente, ficar para trás, assumindo uma condição à qual não sei se o termo magrebino é de justa aplicação… para os magrebinos.

Isto porque, presentemente, e estranhamente, há um afã de porquinhos, interessados e interesseiros, que incansavelmente labutam para que se deite abaixo essa casa, e que todos nos rodeemos de palha e de madeira, e que acreditemos que o lobo apenas nos quer demonstrar o seu amor e carinho.

Resta agora saber que estilo de porquinho são os restantes, que estilo de porquinho somos nós.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

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