Cisterna milenar do Castelo de Alferce dá pistas para a história deste povoado fortificado

Campanha de escavações, que deveria ter durado três semanas, vai atingir um mês

No alto do cerro, a guarnição e os habitantes da pequena fortaleza islâmica precisavam de ter água, até porque a ribeira passa lá em baixo, a mais de 300 metros de distância, descendo a íngreme encosta. Por isso, foi construída uma cisterna. E é essa cisterna que agora acaba de ser desentulhada e posta a descoberto, 1000 anos depois da sua construção.

Este foi o principal resultado da campanha de escavações arqueológicas que, desde há três semanas, tem estado a decorrer no cerro do chamado Castelo de Alferce, em plena serra de Monchique.

Fábio Capela, arqueólogo municipal da Câmara de Monchique, é o responsável por mais esta intervenção, no âmbito do projeto “Da Pré-história Recente ao Medieval Islâmico: antigas ocupações humanas no Cerro do Castelo de Alferce”.

Na quinta-feira, dia em que o Sul Informação visitou os trabalhos, estava radiante pela notícia que acabara de receber: «o senhor presidente diz que podemos continuar as escavações por mais uma semana! Vai ser a mais longa campanha que já fizemos aqui, um mês inteiro!».

Da cisterna, ao longo das três últimas semanas, saíram «carros e carros de mão» carregados de terra. «Tem sido um trabalho duro, mas muito satisfatório», confessa Ricardo Rato, geógrafo da Câmara de Monchique que é, como Fábio Capela faz questão de frisar, «o único técnico superior da autarquia que se voluntaria para vir aqui trabalhar connosco».

Ricardo está na parte mais funda da cisterna, a 2,60 metros do solo, a retirar pedras e terra, que depois é carregada pelo jovem voluntário Diogo Petreques, no carrinho de mão. «Essa terra tem de ser peneirada», avisa Fábio Capela.

De repente, Diogo dá um grito de satisfação e mostra um pequeno fragmento cerâmico que descobriu no meio da terra escura. «É o pedaço de uma asa de algum recipiente», explica, com a segurança de três semanas de aprendizagem prática. «Temos encontrado outros fragmentos de cerâmica por aqui, mas, na cisterna, tem sido sobretudo fragmentos de telha, provavelmente da cobertura abobadada que a cisterna teria», acrescenta o arqueólogo responsável.

 

Diogo segura na mão o fragmento de cerâmica que acaba de descobrir na terra retirada

Fábio Capela está contente por, ao fim de duas semanas e meia de escavações, terem conseguido chegar ao fundo da cisterna, que parece coberto por lajes de pedra, ao contrário das paredes, que são feitas de argamassa. «A abóbada que deveria cobrir esta estrutura e seria formada por vários arcos também seria argamassada. Esta cisterna é bastante semelhante à do Castelo dos Mouros, em Sintra», explica.

A cisterna está agora quase toda à vista, depois de séculos parcialmente entulhada. De um dos lados, podem ver-se quatro degraus, também recobertos a argamassa, que conduziam ao fundo da cisterna, sempre que fosse preciso limpá-la. «Deve haver mais degraus, dois ou três, até ao fundo, mas para já, neste lado, ainda estão tapados».

A meio da manhã, chega a arqueóloga Susana Gomez, do Campo Arqueológico de Mértola e da Universidade de Évora – duas das entidades que, a par da Universidade do Algarve, da Câmara de Monchique, da Junta de Freguesia de Alferce e da Direção Regional de Cultura colaboraram neste projeto de investigação arqueológica, com a duração de quatro anos. Susana Gomez desce pelos degraus e entra na cisterna, para observar em pormenor as paredes, onde se vêm alguns desenhos e símbolos esgrafitados.

A luz do meio da manhã, bem como as sombras dos sobreiros à volta, não ajudam a perceber as formas, mas a arqueóloga, acocorada, conversa com Fábio Capela sobre a hipótese de haver ali algo escrito na argamassa fresca, ou seja, há 1000 anos, quando a obra foi terminada. Mas, uns metros ao lado, há algo que parece uma cruz…

Os trabalhos de investigação vão prosseguir com um levantamento 3D da estrutura da cisterna e com o «decalque com papel vegetal das inscrições». Talvez daí resulte mais alguma luz sobre os grafitos.

 

Mas o que intriga mais o arqueólogo do Município é uma zona da cisterna, onde se vê que a parede foi aberta. «Para quê? Qual a finalidade? Isto terá ocorrido quando a cisterna foi desativada? E porque foi desativada? Ou seria o acesso a uma mina de água?». Fábio vai lançando questões, que espera ver respondidas quando puder alargar o perímetro da escavação, à volta da cisterna milenar. «Passou-se aqui qualquer coisa e eu gostava de perceber o que terá sido».

Qualquer escavação arqueológica é uma destruição. Por isso, escavar a cisterna e depois deixá-la à mercê da chuva e do vento, no Inverno, não pode ser. Fábio Capela sublinha que «um dos nossos grandes desafios, imediatos, será arranjar forma de tapar a estrutura para a proteger, até ao próximo Verão e à próxima campanha arqueológica». Para ajudar a estudar o que poderá ser feito, virá ao castelo de Alferce, por estes dias, uma técnica de conservação e restauro que faz parte da equipa do projeto.

Rui André, presidente da Câmara de Monchique e ele próprio grande entusiasta da arqueologia e do património, que entretanto tinha chegado para inteirar-se do andamento dos trabalhos, dá algumas sugestões: «podemos colocar aqui uma cobertura com o formato dos telhados das casas da Madeira, quase até ao chão, criando um canal à volta para drenagem das águas, de modo a impedi-las de entrarem».

Susana Gomez acena com a cabeça, em sinal de concordância, mas diz: «não se esqueçam que uma cisterna é feita para recolher água, tudo está preparado para isso. Portanto, manter a água de fora vai ser difícil». «Certo é que o que for feito será sempre em articulação com a Direção Regional de Cultura», avisa Fábio.

 

Mais a oeste da cisterna, há duas arqueólogas – uma delas é Andreia Campoa, que já por cá andou em 2017 – a escavar numa zona aberta para sondagem. E também aí a informação conseguida em três semanas de trabalho deixa o arqueólogo municipal muito feliz.

Na prática, os investigadores abriram uma fatia de terra com uns dois metros de largura junto a um dos antigos torreões do recinto menos antigo do castelo – do período Omíada, da segunda metade do século X -, retirando toneladas de pedras que deveriam fazer parte da muralha e caíram, «não por ação humana, mas devido a atividade sísmica», garante Fábio. «Vê-se isso pela forma como as pedras estão dispostas».

Por baixo, apareceu, na zona mais interior, um troço da muralha omíada, muito bem construído e com vestígios da argamassa que foi usada para o rebocar.

A uns três ou quatro metros de distância, no exterior, surgiram os restos de uma outra muralha exterior, mais antiga – século IX – e feita de forma menos perfeita.

Entre ambas as muralhas, foram ainda encontrados os restos de uma outra estrutura, talvez uma casa, com chão de barro.

As duas muralhas, segundo o que, em 2019, foi determinado pela prospeção geofísica, são aqui mais ou menos paralelas. As escavações confirmam isso.

A muralha omíada seria, então, rebocada exteriormente a argamassa, com uma camada de 5 centímetros de espessura. Os investigadores já recolheram amostras desse material, tal como fizeram na cisterna, para serem analisadas. É objetivo saber qual a composição, mas também descobrir se cisterna e muralha foram construídas na mesma altura, usando o mesmo tipo de argamassa.

Mas porquê rebocar as muralhas? Porque não deixar a pedra à vista? Talvez para que a fortaleza fosse vista à distância. «Talvez o poder Omíada tenha querido deixar a marca do seu poderio militar não só reformulando o recinto, construindo a muralha do alcácer por cima das estruturas anteriores, mas também tornando-a bem visível na paisagem», responde Fábio Capela.

 

Já se sabe que as lixeiras dos antigos fazem a felicidade dos arqueólogos. E aqui, no Castelo de Alferce, não foi exceção. Junto à muralha, no lado exterior, foi encontrada uma «camada de lixeira», que «deu muita fauna, nomeadamente restos de peixe, ameijoas, bem como ossos de porco, vaca, veado, coelho. E ainda muito carvão, pela primeira vez».

Um dos membros da equipa de investigação, que está precisamente a fazer um doutoramento no tema, ficou feliz com o aparecimento dos restos de peixe e de ameijoas. «Até os olhos lhe brilhavam, quando começaram a aparecer estes vestígios», recorda Fábio.

«Não sabemos ainda de que espécies são, mas presumimos que sejam do mar, porque aqui não há rios onde se possa pescar». Olhando do alto do cerro, por entre os ramos dos sobreiros queimados pelo grande fogo de 2018, o mar brilha lá ao fundo, bem longe. «Certamente que não comiam peixe todos os dias. E será engraçado saber se, no caso das ameijoas, se trata de espécies que ainda hoje existem e são consumidas, ou não».

Estes vestígios orgânicos deverão depois ser sujeitos a datação radiométrica, para se determinar quantos anos têm e ajudar os arqueólogos no seu permanente trabalho de juntar as peças do puzzle. «Até agora, as nossas datações foram feitas só a partir dos materiais».

Mas também os sedimentos estão a ser analisados por um outro investigador, de modo a determinar, por exemplo, «qual a temperatura da época, qual o coberto vegetal e outra informação no âmbito da arqueobotânica».

«O nosso projeto não é só para pôr a descoberto as estruturas. Queremos também conhecer melhor os hábitos alimentares da populações que aqui estiveram, por exemplo. Ou como seria a paisagem, que fauna andaria por estes montes, o que se cultivava ou caçava, o que se comia».

Além de ossos, espinhas, conchas, carvões e sedimentos, têm sido encontradas alguns fragmentos de objetos de diversas épocas do passado: uma seta, talhada em sílex, com a ponta partida, parte da lâmina de uma faca, também em sílex, um fragmento de cerâmica, de pasta grosseira, com furos regulares, que Fábio Capela presume que possa ser uma queijeira ancestral. Ou ainda a elegante pega de um candil, uma candeia islâmica, em pasta cerâmica clara, ainda com restos de pintura. Ou mesmo a ponta de uma outra candeia, também em barro, e o bordo de um pote, «omíada, tipicamente do século X».

«O que tem aparecido mais são as cerâmicas. Temos sacos cheias delas», explica Fábio. Sacos e sacos de bocados de telhas, de restos de candeias e outros utensílios, no fundo fragmentos a partir dos quais os investigadores esperam reconstituir o passado do Castelo de Alferce.

Susana Gomez, atual responsável pelo Campo Arqueológico de Mértola, disse ao Sul Informação que este local é «uma mina» para os investigadores. «É um sítio fundamental do ponto de vista científico. Está virgem e é de um período cronológico do qual sabemos pouco. Há muitas questões, que se podem alargar a todo o Sul de Portugal, e que aqui podemos ter condições para encontrar as respostas», explica, entusiasmada.

Para Fábio Capela, o «sonho» é que a Câmara de Monchique consiga comprar o terreno que abarca praticamente todo o topo do cerro, onde se situa o alcácer omíada. O proprietário é o senhor Diamantino, já idoso, que o Sul Informação, até conheceu em 2017, durante outra reportagem no local, e que está interessado em vender.

«Mandámos fazer uma avaliação oficial, porque a Câmara não pode comprar nada sem essa avaliação prévia. Em breve, vamos fazer uma proposta de aquisição ao proprietário. Esperemos que ele aceite».

A questão é que o terreno se insere numa vasta zona de 2,5 hectares classificada como Sítio de Interesse Público em 2013. «Não se pode construir aqui, nem, na prática, fazer cá nada. Mas as pessoas têm sempre a expectativa de receber mais dinheiro…», admite o autarca.

Rui André acrescentou que a Câmara de Monchique viu aprovada uma candidatura de 200 mil euros que fez ao programa PADRE (Plano de Ação de Desenvolvimento de Recursos Endógenos), para «valorizar o sítio arqueológico, colocar sinalética e informação e criar no Alferce, no antigo Centro de Dia, um Centro Interpretativo. Depois, a partir daí, será criado um percurso pedestre de descoberta, que passa pelo Barranco do Demo, até ao cerro do castelo».

Enquanto o projeto não se concretiza, o arqueólogo municipal Fábio Capela espera que pelo menos a pandemia abrande, de modo a que, no próximo Verão, possa finalmente ser criado, com as duas universidades envolvidas – Évora e Algarve – um campo-escola, que possa acolher um grupo alargado de jovens estudantes de arqueologia. «Este ano estivemos aqui só cinco, seis pessoas. Mas precisamos de mais, porque ainda há muito trabalho a fazer!», garante.

 

Fábio Capela mostra troço da muralha, posto a descoberto em 2004, por uma equipa francesa

 

O que é o Castelo de Alferce?

O Castelo de Alferce é um povoado com origem na Idade do Bronze, ou talvez mais antigo, do Calcolítico (3º e 2º milénio antes de Cristo, ou seja, entre 5000 e 4000 anos atrás), que foi depois ocupado na época islâmica, entre os séculos X-XI, talvez funcionando como hisn (pequeno povoado fortificado), provavelmente de apoio ao Castelo de Silves.

O que resta da fortificação, situada num cerro com uma vista imensa sobre a Picota, a bacia hidrográfica da Ribeira de Odelouca e a sua barragem, as vias entre Silves e Monchique, e o litoral, são troços das muralhas, a base de torreões e a antiga cisterna.

Mas não se espere grande monumentalidade, porque a pedra aparelhada que os antigos usaram para construir as muralhas foi sendo, ao longo dos séculos, levada pela população para as suas próprias construções.

O povoado fortificado do Cerro do Castelo de Alferce encerra uma área intramuros com aproximadamente 9,1 hectares, composto por três recintos amuralhados não concêntricos. O recinto mais interior, que deverá ter sido o último a ser construído, tem forma pentagonal. Este povoado fortificado seria o centro de um território militar e de uma microrregião.

O chamado castelo de Alferce «corresponde ao primeiro de dois recintos fortificados que compõem a fortificação islâmica que coroa o cerro e que, no estado atual de conhecimento, deduz-se que terá sido construída no século IX e terá estado em atividade até ao século XI».

 

Fotos de: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

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