A enigmática realidade casuística

Mais do que causas, precisamos de causas com ideias e ideais que as sustentem

Sempre senti que a palavra “ideologia” causa desconforto e até arrepios a quem nasceu antes do dia 9 de novembro de 1989, a noite em finalmente terminava a Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim.

Ouvi-la remete-me para a lembrança dos tempos em que, sendo ainda criança, olhava interrogativamente para a imagens de pessoas a tentarem ultrapassar a infelicidade desse muro, que, além de físico, era sobretudo ideológico.

Aliás, quem visita países como a Eslováquia, a República Checa ou a Hungria, pode com facilidade perceber isso mesmo e essa divisão ainda permanece viva no presente, em regimes como os da Correia do Norte ou até de Cuba.

No entanto, a Europa e as sociedades europeias mudaram e nós mudámos também e hoje corre o período em que as ideologias políticas foram substituídas pela política das causas. A política das causas ou politica casuística não é menos perigosa ou menos lesiva das liberdades do que a de extrema ideologia, seja ela fascista ou comunista.

Pela política das causas, impomos os nossos ideais, interesses ou até gostos pessoais a toda a comunidade onde vivemos. E para isso são criados partidos políticos, cujo principal e único objetivo é defender causas unipessoais ou de grupos sectários.

Tomemos como exemplo o Partido Brexit, de Nigel Farage, que afirma claramente que «não tem outras políticas sem ser a defesa da saída do Reino Unido da União Europeia sem qualquer acordo de saída».

E depois? Ninguém sabe. Será legítima a criação de um partido só para essa causa, sem prever o futuro, sem uma linha de orientação ideológica, seja ela de esquerda ou de direita, com a qual nós possamos concordar ou discordar, mas que nos mostra propostas de organização e planeamento que são indispensáveis para qualquer sociedade?…

Em Portugal, vamos no mesmo caminho de casuística particular, surgindo como cogumelos partidos, ainda pequenos, que tentam navegar acima de alguma “nódoa” ideológica que os mancha, mas que simultaneamente os define.

Nas últimas eleições europeias, o PURP (Partido Unido dos Reformados e Pensionistas) coloriu a campanha com reivindicações unicamente direcionadas a essa notável e essencial – e digo-o sem qualquer ironia e total respeito e sentido pleno das palavras –, mas não única, faixa etária da nossa população.

No início do mês de Junho, o conhecido “Tino de Rans” fundou o RIR (Reagir, Incluir e Reciclar; tudo verbos importantes). Ao ser questionado sobre se o partido que criou se identifica com a direita ou com a esquerda, defendeu que o RIR «é um partido 360 graus, porque o próprio nome diz incluir».

Mas, em Portugal, o caso mais grandioso e paradigmático de um partido casuístico é o já muito conhecido PAN (Pessoas, Animais e Natureza, todos eles aspetos bons e sempre defensáveis), que, segundo André Silva, seu porta-voz e deputado na Assembleia da República, não é «nem esquerda, nem direita, nem centro». É «um partido de CAUSAS». Ora aí está! Ninguém sabe o que é o PAN, nem concretamente o que defende. Até porque, tal como acontece com o PCTP/MRPP, os seus congressos são… à porta fechada! E a soma das suas abstenções no Parlamento não permite perceber tendências…

Eu, pessoalmente, prefiro conhecer o mal que não quero, do que algo que não sei bem o que é. Peço desculpa, é que não sei o que é ser contra a antropomorfização da sociedade, até porque André Silva, deputado da nação e ser humano, se tivesse sido substituído por uma galinha na maior parte das votações, continuaria somente a somar abstenções e, logo, os seus votos continuariam a ser de pouca utilidade.

Volto a pedir desculpa, mas considero uma perda de tempo que alguém possa ver como defensável que o plenário dos eleitos da nossa Nação discuta uma mudança nos provérbios populares que envolvem animais.

E adote outras medidas que, não duvido, são apresentadas até com a melhor das intenções, mas que não procuram resolver problemas estruturais e educacionais, que acabam por resultar, esses sim e digo-o com tristeza, em atos que todos consideramos incorretos e desrespeitosos, quer para pessoas, quer para animais, quer para a natureza.

Mais do que causas, precisamos de causas com ideias e ideais que as sustentem, ou corremos o risco de tornarmos risíveis as nossas propostas e as nossas ações.

E de tornar impraticável a organização da nossa vida social, que já tem tantos óbices. E o que todos queremos é cuidar desta terra, que é a nossa casa comum, e viver em paz, respeitando-nos e respeitando tudo o que nos rodeia. E que a realidade seja mais clara, menos enigmática e casuística, mais simples, para que possamos avançar, crescer, progredir. Porque Só na lua não há vento.

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