Este é o texto lido por António Cabrita na apresentação, em Portimão, da revista Zeus:
Não era para estar aqui, o que seria normal seria encontrar-me em Moçambique. Mas tenho uma mulher que é mais lúcida do que eu e que não esteve com meias medidas e ao terceiro dia das manifestações me enviou um bilhete de avião e ordenou, sem me perguntar, Vens no voo de amanhã. E como eu obedeço à sorte e ao afecto, vim. Mas estou triste, e estou muito apreensivo com os meus amigos, com os meus alunos, com os meus livros e os meus gatos, pois infelizmente acho que a brasa pode galgar a cidade e chegar à savana.
E como estou a roçar a depressão e nada loquaz, fiquei sem saber muito bem o que dizer e como dizê-lo neste momento, com a cabeça inclinada para o lado escuro da lua.
Entretanto, para a viagem do expresso para Portimão, resolvi meter no Kindle uns livros da Hannah Arendt, pois está no momento de a relermos, e outros do historiador americano Timothy Snyder, que tem umas análises muito certeiras quando ao estado de mutação política que atravessamos.
E quase involuntariamente, só de olhar para os índices dos livros, fui achando nexos entre o que aí se enuncia e o propósito que faz da Zeus uma revista prazenteira, mas também e sobretudo uma revista útil e pertinente para estes dias sombrios.
Veem, como sou um rapaz de sorte?
Pensar sem Corrimão, se chama um dos livros da Hannah Arendt, que meti no aparelho. Pensar sem corrimão, ou fora da caixa, é tudo o que ambicionamos que transpire nesta revista de cultura viageira, que se pretende recreativa mas também de problematização.
Porque desfrutamos do prazer do texto, dos prazeres da fuga que a literatura e a arte e as viagens marginam, dos prazeres da vida, se possível partilháveis e com um travo aos sabores cosmopolitas, mas também nos impele a responsabilidade e a necessidade de um rigor ético que nos situe. Pensar sem corrimão é uma delícia, como todo o devaneio de uma liberdade livre, mas as escolhas que agora fizermos terão necessariamente um efeito neste mundo bipolarizado e de isolamentos crescentes e identitários que nos espera e teremos de ter uma energia à altura da manutenção da liberdade que ansiamos dignificar.
As viagens, a literatura, o pensamento que se quer livre e não encapsulado, pressupõem uma necessidade de nomadismo, esse pensar sem corrimão, que aja como uma espécie de contraponto espiritual e até político às pautas da época e isso já está bem patente neste primeiro número em quatro figuras que souberam levitar acima do pensamento dominante das suas épocas: o escritor Teixeira Gomes, o poeta Kenneth White, o ensaísta Walter Benjamin e a artista Marina Abramovic.
Se conseguirmos este equilíbrio, que diria ecológico, em cada número, e somarmos a isso a apresentação de uma bela cidade, como neste caso Veneza, impecavelmente irrigada pelas artes do João Ventura, julgo que teremos um projecto e uma função: fazemos sonhar apresentando alternativas para o comedimento instrumental com que nos impingem o mundo.
Li entretanto na viagem excertos de outro livro, este de Timothy Snyder, Sobre a Tirania: vinte lições para o século XX. E houve três lições que me atraíram mais a atenção.
A primeira chama-se: Trate bem a língua,
este é claramente um dos objectivos da Zeus. E para isso, como eu e o João somos já vintage, temos um naipe de colaboradores que nos poderão garantir que se una o rigor ao prazer da língua. Não apenas em termos estilísticos mas também ao nível conceptual, posto que a distorção semântica deslocou-se dos filmes de horror para a nossa paisagem quotidiana e política e há que nos resguardarmos desta mancha.
Um bom exemplo dessa distorção semântica exerceu-a ontem o presidente Filipe Nyuse que visitou em Maputo duas lojas que foram saqueadas para poder chamar “bárbaros” aos manifestantes, esquecendo de dizer que alguns dos saqueadores, como se vê nos vídeos, eram membros da polícia que reprimia os manifestantes.
Na Zeus, contra os costumes desta época de pós-verdade, e sabendo que a distorção da realidade começa sempre na distorção da linguagem, não teremos deslizes semânticos, cada palavra realçará pelo seu peso exacto na significação que a valida.
Outro capítulo que me atraiu chama-se Acredite na Verdade.
Um dos métodos para deixar de acreditar na verdade neste mundo da pós-verdade é a hostilidade aberta à realidade que possa ser verificável.
Foi assim que a Frelimo ganhou com 70% dos votos, sendo que, na maior parte dos distritos, havia nas urnas mais boletins de votos do que cidadãos eleitores inscritos na área, e embora nas manifestações de rua se veja que protesta 70% da população, o que já dá uma explosão demográfica de 140% de eleitores. É magnífico. Nós juramos, tudo o que for publicado na Zeus é confiável e verificável.
Estes dois erros são possíveis por causa duma Terceira Lição, Cuidado com o Pensamento Mágico, o qual advém sempre que uma adopção aberta da contradição se sobrepõe a qualquer índice de racionalidade.
E este é um vício hoje espalhado no mundo. O Trump prometeu reduzir os impostos para todos, a eliminação da dívida pública, e o aumento dos gastos em políticas sociais e na defesa nacional. Estas promessas estão em contradição umas com as outras. Ora, lembra Snyder: «É como se um fazendeiro dissesse, vou ali ao galinheiro pegar uns ovos, depois vou cozê-los e servi-los à minha mulher, após o que vou fritá-los para dar o mata-bicho aos meus putos, e por fim vou devolvê-los ao galinheiro, intactos, e hei-de vigiá-los até que os pintainhos nasçam».
Eis um tipo de fábula embusteira que não serviremos na Zeus, pois pensar em três coisas impossíveis antes do pequeno-almoço é um exclusivo da Rainha de Copas da Alice no País das Maravilhas. E nós somos tristemente aristotélicos e bater-nos-emos pela verosimilhança das coisas, das estruturas discursivas e das narrativas.
Se cumprirmos estas prerrogativas, julgo que não trairemos a boa promessa que este número da Zeus constitui e que a há boas razões para que a festa seja pública.
Por último, queria agradecer reconhecidamente à Câmara de Portimão, pelo apoio a este projecto romântico, e, mais pessoalmente, agradeço com mil abraços ao João e à Maria da Graça por me acolherem como parceiro desta aventura e pela amizade com que me brindam, apesar da distância física que nos separa, tudo tão improvável nas nossas idades como retemperador.
Autor: António Cabrita tem vinte e tal livros publicados, em Portugal, Brasil (três livros de ficção) e Moçambique (livros de fábulas, poesia e ensaio). Foi jornalista durante 23 anos e editor. Em 2005, emigrou para Moçambique onde é professor de Dramaturgia na Universidade, em Maputo. Escreveu inúmeros filmes, sendo ainda tradutor. Co-dirige a revista Zeus.
Fotos da apresentação da revista Zeus, na Biblioteca de Portimão (da autoria de Miguel Veterano):
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