A data de 2 de novembro, Dia dos Fiéis Defuntos ou de Finados, é, desde há muito, dedicada pela Igreja Católica aos mortos e às suas almas, ou seja, um dia de lembrança e homenagem aos que já partiram, pelo que a romagem aos cemitérios é certa por estes dias ou nos antecedentes.
A construção dos cemitérios entre nós é relativamente recente, com pouco mais de 200 anos. Até então os corpos eram sepultados dentro das igrejas, sendo o chão propositadamente em terra para esse efeito, ou nos seus adros, quando momentaneamente o interior esgotava a sua capacidade.
Os mais ricos eram inumados próximo ao altar-mor, enquanto os mais pobres junto à entrada dos templos. Ainda que os alvarás de 27 de março de 1805 e de 18 de outubro de 1806 tenham ordenado a fundação de cemitérios públicos em Portugal, só a partir de 1834, com o liberalismo, a sua construção se materializou.
Para tal, contribuiu o decreto de 21 de setembro de 1835, determinando a criação de cemitérios em todas as localidades do país, aperfeiçoado pela lei de saúde pública, publicada em 1844, que proibiu os enterramentos dentro das igrejas, sempre que houvesse cemitério público, estabelecendo sanções a quem não cumprisse tal obrigatoriedade.
A sua aplicação gerou alguns tumultos, de que o mais famoso é a designada revolta da Maria da Fonte, na primavera de 1846, que teve lugar no Minho, e que se espalhou a grande parte do norte do país. Ela resultou, entre outros aspetos, da oposição das populações à obrigatoriedade dos enterramentos nos cemitérios, ao invés das igrejas, como sempre havia acontecido com os seus antepassados.
Esta tensão e oposição foram, aliás, bem retratadas por Júlio Dinis no romance a «Morgadinha dos Canaviais».
No sul do país e no Algarve, em particular, não são conhecidos momentos de insurreição naquele período, contra as leis de saúde pública em particular.
Na verdade, os cemitérios eram já uma presença na paisagem algarvia aquando da sua publicação.
O primeiro construído em Portugal foi mesmo no Algarve, na vila iluminista de Vila Real de Santo António. Projetada a régua e esquadro, numa das suas extremidades foi desenhado o cemitério, sobre um «eixo espiritual da vila», tendo entrado em atividade em dezembro de 1776.
Segundo Maria Manuel Oliveira, na Revista «Monumentos», n.º 30, de dezembro de 2009, ele poderá mesmo constituir, enquanto equipamento público, aberto e obrigatório a todas as classes sociais, não só o primeiro cemitério moderno português, senão mesmo o primeiro europeu em funcionamento.
Por outro lado, o também bispo iluminista D. Francisco Gomes de Avelar, durante a sua passagem pela Diocese do Algarve, entre 1789 e 1816, publicou em 1805 uma Pastoral proibindo os enterramentos nas igrejas, ordenando a construção de cemitérios na defesa da saúde pública.
Concedendo, ainda assim, licença provisória para que as inumações fossem levadas a efeito nos adros, às paróquias que não estavam habilitadas financeiramente a erigi-los.
Esta medida surgira após a resistência dos sambrazenses à proibição do prelado, em 1801, de serem efetuados enterramentos na igreja de S. Brás de Alportel. As obras para a construção do cemitério tiveram forte oposição, de tal forma que os trabalhos realizados durante o dia eram destruídos à noite, levando à aplicação da pena de cárcere a quatro indivíduos, nas fortalezas do cabo de São Vicente.
O castigo e as persuasões levaram a serenar os ânimos e a servir de exemplo na região, generalizando-se a sua construção, como anotou Ataíde Oliveira, na «Biografia de D. Francisco Gomes do Avelar», em 1902.
Refira-se que o aumento da população no Algarve e a exiguidade das igrejas para a sua inumação revelou-se um problema suplementar para as famílias e autoridades.
Segundo Silva Lopes, na sua «Corografia do Reino do Algarve», em 1756, o número de habitantes na região era de 81 417 indivíduos, valor que em 1802 subiu para 105 412, para atingir cerca de 127 446 habitantes em 1837.
Ora José de Beires, notável e diligente governador civil de Faro na década de 1870, que já aqui recordámos, na sua oportuna e decisiva ação aquando da terrível seca de 1875, legou-nos similarmente um conjunto de Relatórios repletos de informações, hoje imprescindíveis sobre o Algarve e a sua história.
Num desses relatórios, o de 1873, foi incluído um «Mappa demonstrativo do estado de todos os cemitérios existentes no mesmo districto no anno de 1872», que nos permite saber quando foram criados, quem os financiou, a área que ocupavam, por quem eram geridos e o número de campas que albergavam.
Ainda que a grande maioria tivesse sido construída após 1834, havia 20 anteriores, dos quais sete foram descritos como fundados em «época remota», como os do concelho de Aljezur (vila, Odeceixe e Bordeira) e das freguesias de Sagres (já existia em 1795), de Odiáxere (em 1798 já ocorriam sepultamentos no adro), de Cacela (terá sido instituído no final de 1805) e de Budens (ainda que este não deva ser anterior a 1837, acrescentamos nós).
No caso de Castro Marim, a data era ignorada, enquanto em Vila Real foi criado em 1776, como vimos. Os restantes 11 eram: São Brás (1800); Alcantarilha (1802); Alvor (1812); Conceição de Tavira (1816); Silves (1819); Estoi (1820); Martinlongo (1825); Azinhal (1827); Santa Bárbara (1827); Luz de Lagos (1829) e o da Ordem Terceira do Carmo (1816) em Faro.
Em 66 freguesias existentes no Algarve em 1834, 19 tinham um cemitério público, sendo, em termos de localização, transversais à região.
Em 1835 foram criados mais dois, Fuzeta e Moncarapacho, e até 1844 mais nove, Monchique (1836), Quelfes (1837), Alferce (1838), Guia (1840), S. B. de Messines e Estômbar (1841), Alte (1842), Alcoutim (1843) e a Ordem Terceira S. Francisco de Faro (1844).
Aquando da revolta da Maria da Fonte, existiam 31 cemitérios públicos na região. Até ao fim da década de 40 do século XIX, foram construídos mais três e no decénio seguinte 18.
Para, em 1860, ficarem concluídos outros 12 (muitas vezes já vinham a ser utilizados havia vários anos, como Albufeira, Boliqueime ou Pêra) e por fim em 1871, mais três, Porches (ainda que as inumações se fizessem no adro pelo menos desde 1846 e no cemitério desde dezembro de 1855, como consequência da cólera, que já aqui recordámos, apenas as paredes do cercado ficaram acabadas em 1871), Querença e Ameixial. Estes últimos ainda não se encontravam finalizados no ano seguinte, situação que se repetia em Odeleite (1857), Lagoa (1856) e Boliqueime (1868).
Apesar das diversas circulares emanadas do governo civil para as autarquias da região, como em setembro de 1851, no concelho de Loulé, a construção das necrópoles do Ameixial e Querença foi sucessivamente protelada.
No Ameixial, até ao verão de 1871, os enterramentos ocorreram dentro da igreja, para só depois terem lugar no cemitério, a partir de setembro daquele ano, entretanto criado junto à ermida de S. Sebastião.
A Junta de Paróquia do Ameixial reconhecia e pedira à Câmara de Loulé, em setembro de 1870, autorização para o lançamento de um imposto sobre os seus fregueses, «ponderando a necessidade urgente de se construir um cemitério, afim d’evitar o grande inconvenniente que resulta do enterramento na Igreja parochial», visto «não terem outros meios com que podessem occorrer a esta despesa».
Situação semelhante aconteceu em Querença, aqui a edilidade louletana autorizou aquela Junta de Paróquia a aplicar um imposto para o mesmo fim, bem como para financiar obras de que a igreja local carecia, a 4 de janeiro de 1871, sendo que em setembro seguinte, as inumações já ocorriam no cemitério (então na lateral do templo). As parcas receitas das autarquias e as dificuldades de aquisição de terrenos revelavam-se frequentemente complexos, a que se conjugava algum alheamento das elites locais em relação ao problema.
ssim, somente 36 anos após a publicação do decreto a ordenar a construção de cemitérios públicos, ele foi cumprido em Ameixial e Querença, constituindo estes os derradeiros cemitérios a serem edificados no Algarve, 95 anos depois do primeiro, em Vila Real de Santo António.
Face ao exposto, em 1872 todas as freguesias do Algarve dispunham do seu cemitério, ainda que alguns não estivessem concluídos, como vimos.
Quanto à sua construção, seis ficaram a cargo das câmaras municipais, como foram os casos de Olhão (1852), Lagos (em 1855), Tavira (1857), Faro (cemitério da Esperança, em 1859), Albufeira (1869) e Vila Nova de Portimão (1863), os restantes, na sua grande maioria, foram erectos pelas juntas de paróquia, ainda que o de Sagres tivesse ficado a cargo do Ministério de Guerra, e os de Conceição de Faro (1863), Budens, Odiáxere, Luz de Lagos (1829), Monchique (1836), Pechão (1859), Cachopo (1850) e Santa Catarina (1859), de esmolas do povo e dos paroquianos.
Já as necrópoles que serviam as ordens religiosas haviam sido concretizadas a suas expensas e dos respetivos irmãos.
A dimensão e número de sepulturas que acolhiam eram muito variáveis. Se em Faro cada inumação ocupava 2,87 m2, em Albufeira ou em Paderne a média era de apenas 73 e 80 cm2, respetivamente.
O maior cemitério da região era o da Esperança, em Faro, com mais de 6 000 m2 (contemplando logo uma área para os não católicos), Loulé, muito próximo daquela superfície, tinha 5 986 m2, e Olhão 5 100 m2, os quais comportavam 4 654, 4 600 e 3 923 sepulturas, respetivamente.
Por sua vez, os mais pequenos, com áreas reduzidíssimas, eram os da Luz de Tavira 13 m2, Almancil 16, Querença 22 e Ameixial com 23, que acomodavam cerca de 10, 12, 16 e 17 campas, respetivamente. Nestas localidades a média anual de óbitos era muito superior à capacidade que havia disponível, na Luz era de 35, Almancil 38, Querença 40 e Ameixial 27.
Isto apesar do Conselho de Saúde Pública ter determinado, em 1863, que o número de sepulturas em cada cemitério deveria corresponder a cinco vezes o número anual de óbitos na freguesia. Na região, Tavira registava, em média, maior número de óbitos por ano, com 460, a que se seguia Loulé com 340 e Faro com 274 inumações anuais.
Dos 19 cemitérios construídos antes de 1834, quase todos foram substituídos até aos nossos dias, as exceções serão o de Estoi (que remontará a 1816 e não 1820) e o de Vila Real de Santo António, não obstante diversas ampliações.
A maioria dos restantes localizavam-se nas imediações das igrejas, como em Silves, nas traseiras da Sé, ou no lado sul da igreja de São Brás de Alportel, ou ainda no castelo de Castro Marim, espaços limitados que não permitiram grandes ampliações, tornando-os inviáveis com o aumento da população, ao longo do século XIX.
Em 1872, a população no distrito era de 192 104 habitantes, ou seja, relativamente a 1756 crescera mais de 130 %.
No caso dos de Bordeira, Aljezur e Odeceixe foram logo reconstruídos em 1869, 1870 e 1872, respetivamente. Silves e Alcantarilha viram as velhas necrópoles totalmente desativadas em 1896 (as novas haviam sido construídas no final da década de 1870), altura em que São Brás viu concluído também um novo espaço, enquanto em Alvor tal aconteceu em 1906.
Se a construção de cemitérios públicos no Algarve foi muito precoce, como o pioneiro em Portugal, o de Vila Real de Santo António, ou a relevante ação neste campo de D. Francisco Gomes do Avelar durante as quase três décadas em que ocupou a cadeira episcopal, não é menos verdade que a sua construção, em alguns casos, se delongou pelos anos.
É certo que se tratava de uma região periférica, com parcos recursos económicos, mas o principal motivo ter-se-á prendido com alguma indiferença, ou mesmo inaptidão, das elites para a governança local. Só assim se compreende que houvesse freguesias que logo diligenciaram na sua construção, enquanto outras o fizeram mais de 66 anos após a determinação episcopal e 35 anos depois da sua obrigatoriedade legal.
No contexto nacional e considerando que na cidade de Lisboa os cemitérios públicos foram construídos apenas após 1835 (Prazeres naquele ano e Alto de São João em 1841), tal como aconteceu no Porto (Repouso em 1839 e Agramonte em 1855), o Algarve foi desta forma precursor e exemplo a vários níveis, além de que, no distrito do Porto, em Junho de 1882, ainda existiam paróquias sem o seu cemitério.
A terrível gripe espanhola ou pneumónica e a elevada mortalidade por ela provocada, em 1918, levou ao alargamento e/ou criação de novos espaços, como em Loulé (já para uma terceira localização), ou em Tavira, locais onde hoje ainda se encontram. O incremento da população nas décadas seguintes obrigou a outras ampliações ou à construção de novos cemitérios, um pouco por toda a região, até aos nossos dias, de que são meros exemplos, Alte (1929), Salir (1942), Santo Estêvão (1953), Alferce, (1964), Albufeira (1990) ou Faro (2005).
Nos últimos anos a construção de crematórios em Albufeira e Faro veio acelerar a alteração dos hábitos dos algarvios, uma vez que muitos deles já não inumados, mas agora cremados.
Ainda é cedo, todavia, para dizermos que os cemitérios irão desaparecer das paisagens algarvias, como há muito desapareceram do interior das igrejas.
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.
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