A Câmara Municipal de Vila do Bispo adquiriu, através do exercício do direito de preferência, a herdade da Boca do Rio, por 990 mil euros, anunciou esta sexta-feira a autarquia.
Através da compra deste terreno, com mais de 128 hectares, à sociedade “BDR – Investimentos, LDA.”, a Câmara anunciou pretender «zelar, preservar, conservar e valorizar o seu território, salvaguardando a sua biodiversidade, os ecossistemas, o património geológico, arqueológico, histórico, cultural e paisagístico».
Rute Silva, presidente da Câmara de Vila do Bispo, revelou ao Sul Informação que, naquele extenso terreno à beira mar, que inclui um paul, ruínas romanas, edifícios pombalinos e uma grande biodiversidade, em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, a intenção é criar um «parque ambiental e arqueológico», gerido pela autarquia.
«A intenção que eu tenho atualmente é de criar ali uma reserva ambiental e tentar desenvolver projetos para que se consiga pôr à vista e tornar visitável a villa romana. Mas também criar percursos para que as pessoas possam utilizar aquilo de forma sustentável, com um limite de carga». No fundo, acrescentou a autarca nas suas declarações ao Sul Informação, a ideia é «criar uma pequena reserva natural, que tenha em conta também o património arqueológico».
Para isso, salientou Rute Silva, é preciso criar uma equipa técnica na autarquia, um grupo de trabalho interno, que defina o futuro e projete as ideias.
No imediato, sublinhou, «o que era preciso era travar as intenções de construção que havia para ali», e que levariam à destruição do frágil ecossistema e à afetação das ruínas arqueológicas. «Acima de tudo, o que era preciso fazer já era salvaguardar aquela zona», reforçou.
A Câmara de Vila do Bispo, que não é das mais ricas do Algarve, está a ponderar recorrer ao Fundo Ambiental, para ajudar a pagar o milhão de euros que investiu na compra da Herdade da Boca do Rio. Se isso não for possível, até pelo facto de o negócio já ter sido concretizado, «pelo menos terão que nos ajudar nos investimentos que será necessário fazer, para preservar a villa romana e os armazéns pombalinos que estão ali ao pé, para defender este património arqueológico do avanço do mar, para criar os percursos e preservar o património ambiental».
No fundo, a autarquia quer ver acontecer no seu território o mesmo que aconteceu em Lagoa, onde a compra das Alagoas Brancas para as transformar em parque ambiental municipal foi financiada pelo Fundo Ambiental.
Em conjunto com a Herdade da Boca do Rio, a Câmara Municipal adquiriu também, através do exercício do direito de preferência, um prédio rustico, situado ao lado do outro, em Zimbral, com 8080 metros quadrados, pelo valor de 100 mil euros, elevando o investimento total para 1,09 milhões de euros. Um grande esforço financeiro para uma autarquia pequena, mas que, acredita a autarca socialista Rute Silva, «trará um grande retorno ao nosso concelho».
Os 128 hectares da Herdade da Boca do Rio, situados numa zona ainda virgem de construções turísticas, entre os montes sobranceiros ao mar, o paul, a várzea e a praia, têm suscitado muitos interesses ao longo das últimas décadas. Já houve projetos imobiliários, que passavam, por exemplo, pela construção de casas, hotéis e até um campo de golfe, bem como de uma marina, na zona interior, precisamente na embocadura da ribeira.
Desde há décadas que tais projetos – ou intenções – têm sido contestadas, sobretudo pelas associações ambientalistas, em especial pela Liga para a Protecção da Natureza (LPN), que esteve na base da criação da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, mais tarde reclassificada como Parque Natural.
Com a compra desta importante zona pela Câmara Municipal de Vila do Bispo, os receios face à especulação imobiliária parecem ficar afastados de vez.
Riqueza ambiental e arqueológica tem de ser preservada
O terreno denominado Herdade da Boca do Rio, na freguesia de Budens, integra o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e a rede Natura 2000, onde está classificado como Zona Especial de Conservação e Zona de Proteção Especial.
«É uma zona caracterizada pela sua elevada biodiversidade, tanto a nível da flora como da fauna, alguma ainda em estado selvagem», salienta a Câmara de Vila do Bispo.
A zona baixa, situa-se num vale húmido onde confluem três ribeiras, a de Vale Barão, de Vale de Boi e Budens, que se unem e vão desaguar no estuário da praia da Boca do Rio.
Perto da foz, a confluência das ribeiras criou o “Paul da Lontreira” (ou de Budens), uma rara zona lagunar de água doce, que constitui habitat de lontras.
Este paul está coberto por uma extensa mancha de vegetação palustre, sobretudo caniço e tabua, sendo zona de abrigo, alimentação e nidificação de várias espécies de aves típicas de caniçal.
A praia da Boca do Rio, com 138 metros, de areia dourada, de águas geralmente calmas, é muito frequentada por residentes e veraneantes, uma vez que tem bons acessos e parque de estacionamento.
«Trata-se assim de uma área protegida em estado natural, onde é imperativo preservar e conservar os seus habitats», sublinha a autarquia.
Acresce ainda que, na Boca do Rio, existem importantes vestígios arqueológicos. Existe uma villa lusitano-romana, cuja ocupação, atendendo aos materiais recolhidos, se enquadra entre o século I d.C. e as primeiras décadas do século V d.C., sendo a sua fase de maior crescimento em torno do século III d.C.
Toda a estação arqueológica é conhecida desde o século XVIII, tendo sido, ao longo dos séculos, alvo de várias intervenções arqueológicas.
Desde finais de 2003, com o apoio da Câmara Municipal de Vila do Bispo e o envolvimento de várias entidades e Universidades, têm sido feitas escavações arqueológicas, trabalhos de limpeza, de diagnóstico, recolha de materiais diversos e proteção das ruínas, tendo em atenção a proximidade do mar, no sentido da salvaguarda e valorização do Património Cultural/Histórico-Arqueológico, daquela zona.
A partir de 2017, numa parceria entre a Universidade do Algarve, a University of Marburg Philipps-Universität Marburg (Alemanha) e o município de Vila do Bispo, foi iniciado um projeto de investigação Plurianual em Arqueologiadenominado “BRIO/Boca do Rio: Um sítio pesqueiro entre dois mares”.
Este projeto está ainda ativo por despacho tutelar, datado de 6 de outubro de 2017, e, entre outras funções, está direcionado para aprofundar o estudo de forma integrada de todo aquele sítio, bem como das áreas anexas, o que tem originado novas descobertas, nomeadamente de infraestruturas existentes.
Os trabalhos continuam a realizar-se, tendo, por despacho de 22 de março de 2023, emitido pela então Direção Regional de Cultura do Algarve, sido autorizado mais um PATA (Pedido de Autorização para Trabalhos Arqueológicos) de prospeção geofísica.
Uma das mais recentes descobertas arqueológicas foi a de um porto romano com quase dois mil anos, identificado durante escavações arqueológicas em 2018.
Em breve, aliás, será editada uma monografia com artigos de vários investigadores que, ao longo dos anos mais recentes, têm estado ligados a este sítio arqueológico.
Quanto aos Armazéns Pombalinos, edifícios da extinta Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, fundada no ano de 1773, foram construídos na sua totalidade sobre alicerces romanos, em particular sobre a área do balneário que serviu de fundação aos Armazéns, os quais reaproveitaram muitas das estruturas e materiais antigos das ocupações anteriores.
Desde há alguns anos, estes edifícios setecentistas foram integrados no programa REVIVE, que «abre o património ao investimento privado para o desenvolvimento de projetos turísticos, através da concessão da sua exploração por concurso público».
No entanto, segundo explicou ao Sul Informação Rute Silva, presidente da Câmara de Vila do Bispo, os edifícios não são propriedade do Estado, antes integrando a herdade da Boca do Rio, agora comprada pela autarquia.
Os edifícios deverão vir a ser reabilitados, no quadro do futuro parque ambiental e arqueológico, talvez para albergar um apoio de praia, mas também estruturas ligadas às componentes do património e da biodiversidade.
Deverá ter lugar igualmente a conceção de um projeto arquitetónico para valorizar in situ as ruínas arqueológicas.
Já fora da área do terreno, mas frente à praia da Boca do Rio, na zona submersa, há ainda um outro motivo de interesse arqueológico: ali estão afundados os restos do «L’Ocean», navio almirante francês, que, com 801 homens de tripulação e 80 canhões, foi afundado pela esquadra britânica na Batalha de Lagos, a 18 de Agosto de 1759, durante a Guerra dos Sete Anos.
Em Julho de 2005, foi criado no local um itinerário de visita em mergulho, montado pelo Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, sob a orientação do seu então diretor, o arqueólogo subaquático Francisco Alves.
É apenas mais um elemento que atesta a enorme importância patrimonial da Boca do Rio.
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