A utopia dos bens comuns colaborativos

Economia dos bens comuns colaborativos envolverá quase sempre redução da despesa pública estrutural e aumento do financiamento participativo dos parceiros envolvidos

Imagem gerada com IA

A economia dos bens comuns colaborativos (BCC) faz parte do capitalismo popular e cognitivo da sociedade do conhecimento, mas é, por enquanto, mais uma miragem, pois está muito longe de ter atingido escala suficiente e velocidade de cruzeiro.

O que temos neste momento é, por um lado, o gigantismo capitalista dos grandes conglomerados tecnológicos GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber) e, por outro, a corrida desenfreada de pequenas empresas start-up que buscam chegar o mais rapidamente à condição de unicórnios (valorização bolsista de mil milhões de dólares) para serem vendidas e fazerem fortuna rapidamente.

Acrescente-se, ainda, o logro dos chamados mercados biface, em que é feito um uso abusivo dos nossos dados pessoais, convertidos numa espécie de economia extrativista posta a render por aqueles conglomerados que, além disso, usam os mestres-algoritmos para condicionar quotidianamente os nossos comportamentos.

De um ponto de vista mais analítico e estrutural, vejamos algumas propriedades que esta utopia dos bens comuns e colaborativos pode assumir no futuro próximo.

Em primeiro lugar, a economia dos bens e serviços comuns colaborativos tem uma filosofia própria que a aproxima muito das economias de rede e proximidade. Algumas das propriedades básicas dessa filosofia são: o regresso aos valores de uso, à utilidade coletiva e ao governo das regras, a prioridade ao acesso e ao serviço em vez da propriedade e da posse, a assunção dos custos de transação face aos grandes intermediários comerciais, a apologia da proximidade, os circuitos curtos, a liberdade de auto-organização, a promoção dos consumos responsáveis e partilhados e o combate ao desperdício, a apologia da sustentabilidade e dos bens de mérito na socialização das relações, a abertura aos novos modelos de negócio colaborativo, o financiamento participativo e a economia das plataformas colaborativas.

Em segundo lugar, a sociedade e a economia BCC guardam uma relação particular com determinadas áreas instrumentais que estão na base daquelas características, a saber, o património e a paisagem, a ciência e a tecnologia, a arte e a cultura, o ambiente e a ruralidade, a economia da comunhão e da solidariedade.

Estas áreas instrumentais, e o modo como elas interagem e convergem, formam o núcleo duro da economia BCC, sobretudo, em projetos inovadores de base regional e territorial onde se faz a gestão integrada dos diversos estímulos e incentivos disponíveis.

Em terceiro lugar, a interação da economia BCC com a economia do setor público convencional. Já sabemos que a economia capitalista privatizou os benefícios e socializou os prejuízos dos seus efeitos externos remetendo estes para a intervenção pública através do orçamento de Estado. Agora, com a transição digital, há muito espaço para o crescimento dos bens e serviços comuns colaborativos coproduzidos em redes e plataformas descentralizadas e distribuídas.

Desta vez, fica por saber qual é a parcela que é interiorizada e socializada pelo universo da economia BCC no conjunto dos efeitos externos negativos que o Estado socializou por via do contribuinte e burocratizou por via da administração pública.

Esta é, talvez, a interrogação mais pertinente que podemos fazer nesta altura, ou seja, qual a natureza da relação, mais virtuosa ou mais viciosa, entre a administração pública e o setor dos BCC, pois estou seguro de que o universo colaborativo crescerá imparavelmente.

Em quarto lugar, tudo leva a crer que a transição tecno-digital, associada à inteligência artificial, nos conduzirá a uma profunda transformação estrutural do emprego e a uma sociedade de regimes socio-laborais muito diversos e flexíveis.

Numa primeira fase, nas margens do sistema instituído e sob a forma de uma mobilidade experimental e algo caótica onde o nomadismo digital também entra.

Numa segunda fase, de forma mais organizada, à medida que os nativos digitais e os empreendedores tecnológicos, empresariais e sociais assumirem o controlo da situação nas suas próprias mãos, com muito menos economia de estado e muito mais economia partilhada e colaborativa.

Em quinto lugar, uma profunda transformação estrutural diz respeito à ética do cuidado e ao modo como tratamos a sociedade sénior. Nenhum de nós deseja o pior para o último terço da sua vida. A maioria dos lares da 3ª idade, tal como os conhecemos, corresponde a uma oferta público-privada que poderíamos designar de industrialização e confinamento da velhice. Não tem de ser assim.

Entre uma oferta privada, cara e inacessível à maioria, e uma oferta pública e social com graves limitações financeiras e humanas, existem, felizmente, muitas soluções possíveis de natureza cooperativa, mutualista, comunitária e associativa que os projetos de inovação social e comunitária podem e devem promover.

As misericórdias, as IPSS, as câmaras municipais, os serviços de saúde e segurança social, as instituições de ensino superior, podem e devem constituir-se em rede social e plataforma colaborativa para empreender os novos projetos de aldeamentos seniores, cohousing e nursing homes, programas de envelhecimento ativo e voluntariado social e novas fórmulas de engenharia social e financeira que, de algum modo, nos permitam escapar aos constrangimentos crescentes do Estado social.

Em face do declínio demográfico e envelhecimento da população, já não se trata aqui de utopia, mas de pôr em prática uma genuína economia da comunhão e da solidariedade.

e um ponto de vista estrutural, finalmente, a utopia da sociedade dos bens comuns colaborativos só estará completa se formos capazes de desenhar para os territórios mais desfavorecidos projetos integrados e inovadores de inteligência coletiva territorial que associem as áreas do núcleo duro da economia BCC anteriormente referidas.

Eis alguns exemplos desses projetos de inteligência coletiva territorial:

– A gestão conjunta e colaborativa dos parques e áreas industriais no que diz respeito aos custos de contexto e externalidades das unidades empresariais que os integram,

– A gestão cooperativa de propriedades rústicas sob a forma de banco de solos e a gestão agrupada de zonas de intervenção florestal tendo em vista a redução do risco de incêndio,

– A gestão conjunta e colaborativa de consórcios empresariais, tendo em vista a formação de clusters industriais, arranjos produtivos locais e marcas coletivas,

– A gestão comum e colaborativa de áreas integradas para efeitos de ordenamento do mosaico paisagístico, da biodiversidade e provisão de serviços de ecossistema,

– A gestão comum e colaborativa de áreas de montado, áreas de paisagem protegida, amenidades rurais e serviços de extensão rural,

– A gestão comum e colaborativa de propriedades, quintas e terroirs de fins múltiplos, onde se inclui não apenas o turismo ecológico, mas, também, as quintas pedagógicas, os condomínios rurais, os aldeamentos seniores e as explorações de agricultura alternativa.

A gestão integrada dos estímulos e incentivos existentes obriga-nos a reinventar a escala mais apropriada para as áreas prioritárias de intervenção territorial. Como é obvio, os exemplos de gestão territorial antes referidos ganham em coerência e consistência se estiverem devidamente integrados no quadro das redes municipais, comunidades intermunicipais, cooperação transfronteiriça e programas operacionais regionais das NUTS II.

A grande incógnita que temos pela frente, em pleno universo digital, é a persistência de um défice de cultura colaborativa e solidária na sociedade política em geral que precisa de ser rapidamente preenchido, pois é determinante para fundar um sólido movimento social se quisermos consolidar uma ética do bem comum de suporte a um capitalismo popular de pequenas plataformas que esteja para lá do mero negócio digital.

Notas Finais

A prova real desta utopia dos bens comuns colaborativos é promover a desindustrialização social e institucional e reduzir substancialmente as burocracias sociais que vêm do século passado, sem, no entanto, perder de vista algumas armadilhas que uma desinstitucionalização precipitada pode arrastar.

Neste contexto, a grande expetativa em redor da economia BCC é o acréscimo de eficácia e eficiência introduzido pela transformação digital nas áreas habitualmente institucionalizadas e burocratizadas, mas, também, a devolução da responsabilidade social aos cidadãos e à sociedade civil.

De resto, no horizonte deste movimento de longo alcance de coprodução, cogestão e responsabilidade partilhada os sinais de desorçamentação já aí estão. O Estado Social, por razões de sustentabilidade financeira, será tentado a reduzir, cada vez mais, a despesa estrutural e a substituir funcionários públicos e a oferta pública pela coprodução de serviços e por serviços em regime de outsourcing.

A economia social e solidária (IPSS e ONG) seguirá o mesmo caminho e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades de cuidadores locais do universo colaborativo, por exemplo, o cohousing e as nursing homes.

O mesmo se aplica aos bens públicos locais e à grande área das atividades culturais e criativas para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime intermitente e de freelance.

E, de uma maneira geral, a economia dos bens comuns colaborativos chegará também, com uma geografia muito variável, ao universo das redes e plataformas em formatos de engenharia colaborativa e financeira muito variados, mas envolvendo quase sempre uma redução da despesa pública estrutural e um aumento do financiamento participativo dos parceiros envolvidos.

A seguir nos próximos capítulos.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

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