Entre o lixo e o luxo

Senti-me agradecida pelo privilégio de viajar e de perceber que, por onde quer que andemos, são as pessoas que conhecemos que nos marcam e nos fazem sorrir ou entristecer

Continuo sem entender o porquê do gesto tão pouco cívico de quem insiste em deixar para trás mais do que as suas pegadas. Garrafas de refrigerante ou de cerveja, sacos e talheres de plástico, as famigeradas beatas, invólucros de gelados — tudo se cruza com o meu olhar, e as mãos não resistem a transportar estes despojos alheios até ao contentor mais próximo. Tornou-se tradição, infelizmente, catar o lixo deixado por outros sempre que vou à praia.

Depois destes atos, nem os seus pés merecem passear pelos areais algarvios. Que estas linhas sejam acendalhas na consciência de quem continua a lançar lixo ao chão, seja na praia, na rua, no jardim ou naquele gesto infame de abrir a janela do carro e deitar ao vento o que já não quer.

Estive há pouco tempo em Itália, precisamente em Milão e Florença, e não me recordo de encontrar lixo fora do sítio. Aliás, fiquei bastante agradada com determinados comportamentos cívicos.

E sim, os milaneses são charmosos e bem-apresentados, com camisa, calças, cinto e sapatos a condizer, cabelo arranjado e um toque subtil de perfume que permanece após a sua passagem.

Não sei se é influência das montras das lojas de grife que encontramos na cidade, mas a verdade é que é fácil o pescoço virar-se para acompanhar com o olhar um bom rabo de calças.

No Quadrilatero della Moda, além das vitrines luxuosas e dos transeuntes encantadores, tive direito ao lugar-comum completo: um Ferrari vermelho a roncar pela Via Sant’Andrea, uma das ruas comerciais mais famosas, que, com a Via Montenapoleone, a Via della Spiga, a Via Manzoni e o Corso Venezia, compõem o principal bairro da moda de Milão.

Na Galeria Vittorio Emanuele II não existem Ferraris, mas as montras da Dior, Chanel, Prada, Louis Vuitton (entre tantas outras) deslumbram.

Preferi perder-me nas estantes da Libreria Bocca, a mais antiga livraria italiana, em funcionamento desde 1775 (a nossa Bertrand, considerada a mais antiga do mundo, data de 1732) e na Feltrinelli, uma rede de livrarias e editora criada por Giangiacomo Feltrinelli, editor e ativista político italiano, falecido em 1972.

No chão do octógono central da Galeria Vittorio Emanuele II existe um enorme mosaico com a imagem de um touro que atrai a atenção dos visitantes. Não conhecia a tradição, mas também rodei o pé direito três vezes, de costas e de olhos fechados, nos testículos do touro. Diz-se que dá sorte e que garantirá um regresso a Milão. Assim veremos.

Voltando à questão do civismo, despertou-me a atenção a precisão quase milimétrica dos turistas e dos residentes de se manterem à direita nas escadas rolantes, deixando a passagem livre aos apressados. Foi bonito assistir àquele subir e descer sincronizado.

Também me impressionou ver ombros tapados à entrada da catedral de Milão. Fosse um gesto imposto ou resultante do livre-arbítrio, não deixou de ser comovente esse respeito pela fé dos outros. Optei nesse dia por uma blusa mais discreta, de ombros cobertos.

Quando se viaja de sentidos alerta, é fácil encontrar sincronicidades e deixarmo-nos surpreender pelos acasos do quotidiano.

Desde Emílio, o empregado de mesa que, expressando-se em fluente português, inglês, alemão, francês, árabe e claro, italiano, conseguiu, em quinze minutos, encher a esplanada do seu restaurante; depois, mudando de tática («lá dentro está-se bem melhor, com o fresco do ar condicionado»), lotou, num curto espaço de tempo, a sala interior.

À história do funcionário italiano de um supermercado que resolveu arregaçar a manga da camisa para mostrar a tatuagem no braço direito, uma réplica do símbolo céltico irlandês que figurava na T-shirt do meu companheiro de viagem.

O episódio da senhora que segurava, pela manhãzinha, um bolo de aniversário numa mão e um balão em forma de setenta anos na outra é digno de registo. Ao receber o abraço vigoroso de um amigo, viu com tristeza, sem deixar de largar um grito, o balão dourado a romper-se.

Ou a surpresa de me sentar nas cadeiras altas de um restaurante na Chinatown, assim projetadas para que a tigela fique próxima da boca e seja eficiente comer com os pauzinhos.

Talvez a história mais marcante desta viagem tenha sido descobrir que o local onde pernoitei durante aquela semana foi de uma família judaica que assistiu ao filho a ser levado pelos nazis, na noite de Natal, e que, com o desgosto da sua morte, não voltou a ocupar a casa.

A placa disposta no chão da entrada, com a inscrição «Qui habitava Piero Sonnino, Nato 1900, Arrestato 25.12.1943, Deportato Auschwitz, Assassinato 20.01.1945», a testemunha silenciosa daquela triste história.

Encontrei, depois, em Milão e em Florença, outras placas similares, mas nenhuma me comoveu tanto como esta, que contemplei com reverência, no início e no final de cada dia, durante a estada em Itália.

Muito mais haveria por dizer desta experiência que incluiu visitas a museus, catedrais, lagos, bibliotecas, ao David de Miguel Ângelo, à A Última Ceia de Leonardo da Vinci e deambulações pelas ruelas típicas de Florença num encontro com a História, mas também com a modernidade de Milão, no seu Bosco Verticale, ou a realidade intercultural no Corso Buenos Aires, onde fui surpreendida por uma espécie de El Corte Inglés ao ar livre.

Tudo à venda no mesmo espaço: sapatos, melancias, perfumes, bijuterias, detergentes, vassouras, tomates, roupa para adultos e crianças com as cores da África Subsariana.

Não me esqueço do olhar sorridente e cúmplice de uma mãe, de chador preto, uma filha em cada mão, a mais alta de hijab colorido. Sorri-lhe de volta.

Senti-me agradecida pelo privilégio de viajar e de perceber que, por onde quer que andemos, são as pessoas que conhecemos — mesmo num pequeno vislumbre das suas existências — que nos marcam e nos fazem sorrir ou entristecer (como os turistas que continuam a não perceber que o espaço público é de todos e merece ser estimado).

É o reflexo do olhar e do comportamento do outro que nos faz crescer.

 

Autora: Analita Alves dos Santos é autora e mentora literária

 

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