Na adega da Quinta Arvard, entre barricas e ânforas de barro, o ar condicionado mantém a temperatura fresca e o ar está impregnado do cheiro forte de vinho a fermentar. Uma fermentação que até se vê e se ouve, porque, no topo das ânforas, há uma espécie de campânula de vidro, por onde sai o dióxido de carbono resultante do processo, criando um suave ruído de marulhar.
Nestas ânforas modernas, também feitas em material cerâmico como as romanas, mas bem mais resistentes, está a fermentar a nova colheita de Negra Mole, a casta que é típica do Algarve e que os responsáveis pela Quinta Arvard querem que seja «a bandeira» do seu projeto, que inclui produção de vinho, mas também enoturismo e, em breve, um hotel boutique de luxo.
A Quinta Arvad situa-se à beira do rio Arade, perto de Estômbar, no interior do concelho de Lagoa. Ocupa uma série de montes ondulados, com vistas para o rio, que corre lá em baixo, a meio caminho fluvial entre as cidades de Portimão e de Silves, que se avistam ao longe, de um lado e de outro.
Há poucos dias, Mafalda Garcia de Matos, diretora geral da Arvad, convidou jornalistas, chefs e outras pessoas ligadas ao trade para uma experiência de vindima da Negra Mole, numa das vinhas desta quinta, com visita a toda a propriedade e à adega e que culminou com uma prova dos três vinhos Arvad Negra Mole (Tinto, Rosé e Branco), acompanhada de uma degustação de produtos locais.
Pelo meio, houve ainda a oportunidade única de provar o primeiro “late harvest” (colheita tardia) produzido na quinta, a partir de uvas Negra Mole, que, segundo o enólogo residente Miguel Mimoso, ainda precisa «de mais um ano de estágio» na barrica de 150 litros onde se encontra desde há um ano.
Vai ser lançado em 2025, mas o grupo de convidados, entre os quais a jornalista do Sul Informação, já pôde degustar este que será o primeiro vinho “late harvest” alguma vez feito com uvas Negra Mole.
A quinta foi comprada em 2012 pelo empresário Pedro Garcia de Matos, que lhe deu o nome de «Arvad», por ser o nome que terá sido dado pelos fenícios ao rio Arade, palavra que significa também “refúgio”.
As primeiras vinhas foram plantadas em 2016. Ricardo Santos, responsável pelo enoturismo da quinta, recordou que «a primeira colheita em 2019, o primeiro vinho foi lançado em 2020, em plena pandemia, e o enoturismo começou em 2021». Desde então, muito caminho foi percorrido.
Dos 9 hectares de vinha iniciais, hoje a empresa já tem 16 hectares, embora nem todos naquela quinta, uma vez que a Arvad Wine comprou uma vinha antiga com a casta Negra Mole no concelho de Lagoa e possui outra vinha e uma adega na zona de Alvor, no vizinho concelho de Portimão.
Ao todo, são sete castas: as tintas Alicante bouschet, Touriga nacional e Cabernet sauvignon, as brancas Alvarinho, Arinto e Sauvignon blanc, e ainda a 100% algarvia Negra Mole que, pasme-se, pode dar vinhos tintos, brancos e rosés. E que, no caso da Arvad, até dá um espumante e um “late hervest”, ambos a lançar em 2025.
A criação diversificada dos vinhos é da responsabilidade do engenheiro Bernardo Cabral, enólogo premiado, que favorece uma abordagem de intervenção mínima. Tem o apoio do enólogo residente Miguel Mimoso, que foi o cicerone da visita dos convidados.
Entre o rio e a serra de Monchique, são doze hectares de terreno, exposto aos ventos de Norte e ao ar mais fresco e húmido do rio, o que permite grandes amplitudes térmicas diárias. Um clima mediterrânico com influência atlântica, complementado por um solo argiloso calcário.
Em 2023, Mafalda Garcia de Matos, filha do fundador, passou a liderar o projeto, focada em dinamizar e fazer crescer a marca e, em concreto, o Enoturismo Arvad.
A missão é «trazer experiências de Enoturismo únicas, que tirem partido e enriqueçam a oferta turística da região Algarvia, e posicionar o Algarve enquanto região de vinho de qualidade».
Em entrevista ao Sul Informação, Mafalda Garcia de Matos revelou que a sua formação nada tem a ver com vinhos ou com turismo, já que é licenciada em Medicina, embora nunca tenha exercido. À pergunta sobre se não fazem falta médicos, Mafalda responde, com um sorriso: «também fazem falta gestores de enoturismo no Algarve».
É que, sublinha a jovem empresária, «o Algarve é uma região de turismo, mas ainda não é, tradicionalmente, uma região de enoturismo. Tem grande potencial para isso, até porque esta é uma atividade menos sazonal que enriquece a oferta turística da região».
Embora também recebam visitantes portugueses, 90% das pessoas que procuram as experiências de enoturismo da Quinta Arvad são estrangeiros, sobretudo «holandeses, belgas, americanos». Há ainda muitos expats, ou seja, estrangeiros residentes, na sua maioria britânicos e alemães, que também a visitam «trazendo os amigos».
Uma iniciativa que tem tido muito sucesso (e que até conta com maior percentagem de portugueses) são as Sunset Sessions, que, como o nome indica, são sessões de degustação de vinhos ao pôr do sol, com música ao vivo. «Aproveitamos os meses mais quentes, de Junho a Setembro, para fazer as Sunset Sessions, que têm corrido muito bem».
As experiências de enoturismo na Quinta Arvad vão muito para além da prova dos seus vinhos, o que já não seria pouco. Os clientes podem até chegar pelo rio, de barco, atracando no pequeno cais de madeira e sendo depois transportados de buggy elétrico pelas estradinhas de terra entre as vinhas e a vegetação nativa que foi mantida (alfarrobeiras, oliveiras, medronheiros, laranjal) até à casa da quinta, que fica a meia encosta, com vistas magníficas.
Isabel Garcia, da XPTO Events, disse ao Sul Informação que a sua empresa trabalha «com a Arvad, oferecendo muitas experiências aos nossos clientes», na sua maioria «americanos». «Isto é exatamente o que turistas com outro poder compra e outros interesses procuram no Algarve. Já não lhes interessa só o sol e praia, interessa-lhes estas experiências diferentes».
Para reforçar a aposta forte no turismo enológico, a Arvad já começou a construção de um boutique hotel de luxo, com apenas 42 quartos, situado no monte mais alto da propriedade, onde, curiosamente, até há uma dezena de anos funcionava uma exploração suinícola. Trata-se de um investimento de 10 milhões de euros, em parceria com a Memmo Hotels, que deverá abrir em 2027.
Mafalda Garcia de Matos revelou ao Sul Informação que o hotel terá «um spa vinícola, para tratamentos com borras e grainhas», bem como um restaurante gourmet «aberto ao público».
Situado no topo do monte, os quartos do hotel terão vista de um lado para Silves, do outro, para Portimão. Além disso, «os clientes poderão chegar de barco, rio acima, ou sair de barco para atividades ou para ir à praia».
Será uma pequena unidade, exclusiva, para clientes que querem uma experiência diferente. Mafalda garante que o serviço será «premium». A classificação oficial será de 5 estrelas, mas, «se houvesse mais estrelas, seria ainda mais».
Mas o que é, afinal, a casta Negra Mole, que os responsáveis pela consideram ser a «bandeira» do seu projeto, «a casta âncora da nossa marca»?
O jovem enólogo Miguel Mimoso explica que se trata da «segunda casta mais antiga do país», sendo «uma casta mesmo do Algarve, que não viajou para mais lado nenhum». «Há dois mil anos que está notificada na região», acrescentou, garantindo que «dá vinhos muito interessantes».
Acontece que a Negra Mole tem uma característica que a distingue das outras castas: a grande variabilidade de cores num mesmo cacho, que pode ter bagos brancos, tintos e rosas.
«Tudo no mesmo cacho e com o mesmo grau de maturação», sublinha o enólogo, segurando um dos cachos acabados de vindimar, para mostrar do que está a falar.
Além disso, contou ainda, «continua sem explicação como é que a mesma videira num ano tem bagos mais claros, no ano seguinte bagos mais tintos».
«É quase um sonho para um enólogo ter uma casta só, com a qual podemos fazer vários vinhos», exclama, entusiasmado.
A Negra Mole, sendo uma casta muito antiga e típica do Algarve, curiosamente, foi posta de lado quando foi criada a região vitivinícola do Algarve, em 1980. Mas, sobretudo na última década, vários produtores algarvios mais avisados, perceberam que esta casta tem características muito próprias e responde àquela ânsia por tudo o que é único e exclusivo de um número crescente de apreciadores de vinhos. E resolveram recuperá-la.
No caso da Arvad, todas as videiras de negra mole plantadas resultam de varas de plantas de uma vinha antiga, com mais de 40 anos, que a empresa comprou noutro local do concelho de Lagoa.
Ao contrário das vinhas das restantes castas, esta não será aramada. As varas foram plantadas com tutor e depois usarão o método de taça, na realidade baseando-se na forma de plantação tradicional das vinhas no Algarve.
A gama de vinhos Arvad Negra Mole estagia em ânforas de argila de 750 litros, equilibrando o caráter frutado da casta com alguma mineralidade e discretos aromas e sabores de terra.
O estágio em ânfora de argila permite uma oxigenação controlada do vinho contribuindo para mais estrutura e mais volume de boca.
As ânforas usadas no Arvad Wines são modernas e conciliam uma tradição antiga com nova tecnologia. São elas a fonte de inspiração na criação do logotipo do projeto.
O processo artesanal com que é feito está também refletido na sua imagem através de um rótulo que se tornou um dos maiores ícones da identidade do Arvad.
«No início da produção, não tínhamos um rótulo pronto para identificar as garrafas, por isso a Mariana (a nossa Sommelier) escrevia “Negra Mole” à mão diretamente na garrafa. Com o passar do tempo, foi fazendo cada vez mais sentido manter esta imagem crua, mas autêntica, e que traz novidade – como o próprio Negra Mole», explica Mafalda Garcia de Matos.
Comercializar as garrafas tal como estavam tornou-se algo natural, um conceito desenvolvido e aprofundado pela designer de marca e produto, Rita Rivotti, incluindo o lacre misturado com telha típica algarvia (triturada) e as gargantilhas de papel artesanal, com o logotipo da ARVAD (a ânfora fenícia).
O conceito é oferecer um vinho diferente, que representa o melhor da sua origem algarvia, de forma artesanal e exclusiva.
A partir da casta Negra Mole produzem-se vinhos de cor pálida, frescos, bastante frutados, com notas herbáceas e equilibrada acidez.
«Atualmente, com novos conhecimentos a nível de Enologia e um público cada vez mais adepto deste estilo de vinhos, há um interesse crescente pelo Negra Mole e um forte investimento por parte dos produtores em recuperar a casta rainha da Região. A casta representa uma nova forma de consumir vinho, por ser muito fresco e muito leve – em sabor e em teor alcoólico – e por isso com grande apelo para um público muito abrangente», explicam os responsáveis pela Arvad.
A aventura da vindima, na realidade durou apenas meia hora, mas já deu para os convidados perceberem a dureza e a minúcia do trabalho.
Em meia hora, foram colhidos cerca de 250 quilos de uvas, o que, segundo o enólogo Miguel Mimoso, dará para fazer 200 garrafas de Negra Mole Tinto.
Depois de uma visita à adega, onde os vinhos futuros repousam ou fermentam em barricas de carvalho francês usadas ou ânforas de barro, seguiu-se então a prova dos vinhos, com degustação de produtos tradicionais locais (figos, uvas, queijos, enchidos, empadas).
E o que se provou?
A prova começou pelo Arvad Negra Mole Branco, que foi produzido pela primeira vez a partir da vindima de 2023, tendo sido lançadas 926 garrafas no mercado, este ano, que já esgotaram na quinta (talvez ainda haja nas garrafeiras especializadas ou nos supermercados algarvios com boa seleção de vinhos).
Trata-se de um «blanc de noir», ou seja, um vinho branco feito a partir de uvas tintas de Negra Mole, que combina uma grande frescura e mineralidade, com suavidade e volume, o final de prova é muito persistente. Harmoniza na perfeição com entradas, pratos de peixe, algumas carnes brancas, queijos e tarte de maçã.
Seguiu-se depois o Arvad Negra Mole Rosé, que é um rosado ligeiro, com notas de cerejas, bagos silvestres, e de barro num segundo plano que lhe conferem um carácter único. Muito fresco, com um aroma discreto e muito elegante. Ideal como aperitivo ou acompanhado de saladas, comida asiática ou peixes grelhados.
Um dos convidados, Nuno Martins, chef do restaurante NUMA, de Portimão (que a partir deste ano integra a lista dos restaurantes recomendados do Guia Michelin), comentou que é «um vinho que acompanha um bom prato, mas também se bebe bem à beira da piscina».
A fechar, foi provado o Arvad Negra Mole Tinto, um vinho com notas terrosas e de algumas ervas aromáticas, em que os aromas frutados de cereja e framboesas frescas se vão revelando.
É um tinto leve, de cor mais aberta, bebe-se fresco, sendo, por isso, a escolha perfeita o Verão. É um excelente vinho para acompanhar pratos de carne vermelha, peixes gordos, cataplanas, enchidos, queijo e presunto.
Por ser um vinho muito leve, «não é um vinho de guarda, para aguentar muitos anos».
Para complementar o seu catálogo, a Arvad Wine vai lançar em breve um Espumante Negra Mole, que já está na fase de fermentação em garrafa. Será o primeiro espumante feito a partir da casta 100% algarvia e, por isso, há grande expectativa sobre o resultado final.
Em 2025, vão também lançar o Late Harvest.
Todos estes vinhos podem ser comprados nas garrafeiras de qualidade ou em alguns supermercados com uma secção de vinhos mais cuidada. Mas o melhor mesmo é reunir um grupo de familiares ou amigos, reservar um dia e marcar uma experiência de enoturismo na quinta com vista para o rio Arade. E, no fim, abastecer-se na loja da quinta Arvad, antes de regressar a casa.
Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação
Comentários