Três silos seculares encontrados durante as obras do largo da Igreja Matriz de Portimão

Acompanhamento arqueológico permitiu encontrar três estruturas, entulhadas com materiais a partir do século XVI

Um dos silos encontrados – Foto: ERA Arqueologia

Três silos de armazenamento, todos eles com materiais «do século XVI para a frente», e nenhuns vestígios da muralha de Vila Nova de Portimão. Estes foram, até agora, os resultados dos trabalhos de acompanhamento arqueológico da obra de Reabilitação Urbana do Largo da Igreja Matriz de Portimão, a cargo da empresa especializada ERA Arqueologia.

Dentro desses silos, explica ao Sul Informação Rita Dias, arqueóloga e gestora do projeto por parte da ERA Arqueologia, foram encontrados «fragmentos de cerâmica, de cronologias variadas, mas já tardias, das quais as mais antigas, que estavam no fundo da estrutura negativa, seriam do século XVI ou XVII. Depois, até cá acima, havia entulho muito mais recente, do século XVIII ou XIX, misturado». Havia ainda «bastante fauna malacológica, sobretudo ostras, temos muitas valvas de ostras», algumas de grandes dimensões.

Ou seja, estes silos, estruturas escavadas na rocha para armazenar e conservar alimentos, depois de terminar o seu uso com esse objetivo, terão sido utilizados – provavelmente durante o século XVII – como zona de despejos de lixo doméstico.

Quanto à continuação da muralha de Portimão, as sondagens, mecânicas e manuais, que foram feitas, não detetaram vestígios na zona afetada pelas obras em curso. Ali bem perto do largo da Igreja, entre a rua Machado dos Santos e rua Dr. Ernesto Cabrita, situava-se o postigo da Igreja ou de São Sebastião, uma das entradas no recinto amuralhado, mas, até agora nada foi descoberto, o que indica que este troço da muralha terá sido totalmente desmantelado.

É que, como os arqueólogos já perceberam, o cabeço onde se ergue a Igreja Matriz e as ruas envolventes tem sido alvo de muitas intervenções ao longo dos séculos e certamente terá sofrido muito com os vários terramotos, nomeadamente o de 1755.

De tal maneira que «percebemos que aquela área foi muito afetada e está quase toda no substrato geológico», ou seja, quase não há nada acima da rocha, explicou Rita Dias.

Por seu lado, Vera Teixeira de Freitas, arqueóloga municipal do Museu de Portimão, disse ao Sul Informação que o que foi descoberto até agora leva a pensar na existência de «um eventual desaterro de algumas zonas da área circundante da Igreja Matriz de Portimão, realizado num momento indeterminado entre o século XIX e o século XX».

E terão sido essas obras as presumíveis responsáveis pelo facto de, «nesta área, o substrato rochoso se encontrar praticamente à superfície, bem como de os vestígios antrópicos [de origem humana] detetados consistirem em estruturas negativas de época moderna».

 

Escavação arqueológica de um dos silos – Foto: ERA Arqueologia

 

Mas voltemos um pouco atrás. As obras, promovidas pela Câmara de Portimão, foram adjudicadas, depois de concurso, a uma empresa de construção, que, por sua vez, contratou a ERA para fazer o acompanhamento arqueológico.

Tratando-se de uma intervenção na zona antiga da cidade, nenhuma obra, pública ou privada, pode avançar sem esse acompanhamento especializado.

«Nós recebemos um caderno de encargos com várias tarefas que incluíam a escavação de sondagens manuais e mecânicas, para fazer a caracterização arqueológica da zona que envolve a Igreja Matriz, e o acompanhamento arqueológico dos restantes trabalhos que afetavam o subsolo, imediatamente à volta da igreja e também nas ruas afetadas pelo projeto», explicou a arqueóloga da ERA.

É que, como salientou Vera Teixeira de Freitas, este projeto decorre numa «área de sensibilidade arqueológica», integrando «eventuais vestígios da ocupação deste espaço durante a época Romana, Moderna e Contemporânea, bem como um troço da muralha tardo-medieval de Vila Nova de Portimão, classificada como Imóvel de Interesse Público, cujo estado de conservação e o exato traçado neste local» se desconhecia.

As obras incluem, por um lado, a reparação e substituição de infraestruturas existentes (águas, esgotos, pluviais, telecomunicações, eletricidade em baixa tensão e iluminação pública) e, por outro lado, a requalificação total dos pavimentos existentes na envolvente à igreja e algumas ruas adjacentes.

Assim, tendo em conta a dimensão das obras previstas, «constatou-se a necessidade de se efetuarem trabalhos arqueológicos de diagnóstico e de minimização de impactes no âmbito da empreitada, de modo a verificar a eventual presença de construções pré-existentes e depósitos de origem antrópica, nomeadamente sondagens arqueológicas de diagnóstico e acompanhamento arqueológico das movimentações de solo».

O objetivo é «minorar o impacte negativo sobre eventuais contextos arqueológicos, utilizando para tal metodologias adequadas e evitando a perda de informação histórica-arqueológica e/ou a destruição de bens patrimoniais».

Vera Freitas acrescenta que «o princípio que norteia» estas intervenções arqueológicas é o da «conservação dos vestígios patrimoniais». No entanto, poderá «equacionar-se a sua conservação através do registo científico, quando não for exequível compatibilizar as pré-existências com a implementação do projeto».

 

Imagem do interior de um dos silos em corte – Imagem: ERA Arqueologia

 

Dos três silos (ou “estruturas negativas”) encontrados, dois mais ou menos da mesma dimensão e um maior, foram retirados os materiais que estavam no seu interior (na realidade entulho formado por fragmentos de cerâmicas, cascas de ostras, entre outros), foram feitos «os desenhos com técnica arqueológica,  levantamento 3D, fotogrametria», de modo a fazer uma «preservação pelo registo».

Depois, quando possível, as estruturas foram cobertas com geotêxtil e cheias de areia, de modo a «preservar in situ [no local] tudo aquilo que não é afetado» pelas obras das infraestruturas.

Tendo em conta que os silos estavam muito à superfície, já tinham sido afetados por obras anteriores. Mas, de um deles, ainda foi possível encontrar a tampa, partida em duas, que foi guardada.

No caso da estrutura de maiores dimensões, parte tinha sido destruída há algumas décadas, para a colocação de tubagens, nos tempos em que as obras públicas não eram acompanhadas pela arqueologia, nem havia preocupações de preservar o património. «O topo da estrutura negativa já estava completamente arrasado», revelou Rita Dias.

Depois, para saber mais detalhes sobre o período de utilização e até para que serviram, de facto, estes silos, todos os materiais recolhidos serão analisados e estudados.

«Para já, temos primeiro que datar os materiais. Temos alguns materiais datáveis, como faianças, tipos de cerâmica vidrada com decoração, que podem ser enquadrados na janela cronológica de um período».

Será difícil, porém, saber durante quanto tempo os silos foram utilizados, já que, por vezes, há estruturas destas usadas ao longo de séculos. «Nós, basicamente, só poderemos ter uma janela cronológica a partir dos materiais que encontrámos» e que foram sendo lá deixados até ao abandono da estrutura.

«Iremos entregar um relatório sobre tudo isto ao dono de obra», a Câmara de Portimão, «onde vamos fazer as interpretações que forem possíveis, tendo em conta as informações que recolhemos», acrescentou a arqueóloga da ERA.

Resumindo: após a escavação integral dos silos e do seu registo exaustivo por métodos arqueológicos, as obras puderam prosseguir, sendo que o espólio arqueológico recolhido será alvo de tratamento e estudo, para posterior depósito no Museu de Portimão.

E o tipo de estruturas encontrado não justificava que se alterasse a obra?

Rita Dias considera que não. «Temos de compatibilizar a preservação do património com todo o tipo de instalação de infraestruturas e, no fundo, todas as operações urbanísticas que são necessárias». Feitas as escavações arqueológicas, recolhido o material e toda a informação, as obras avançam.

«Claro que, se fosse uma coisa completamente inédita, com um valor patrimonial elevadíssimo, e sobretudo sendo a Câmara o dono de obra, teriam que ser encontradas soluções alternativas para desviar as infraestruturas. Mas, neste caso, este tipo de estruturas negativas é relativamente comum. Foi tida em conta a preservação, nós temos um registo sério das infraestruturas e depois elas estão, na medida do possível, preservadas no subsolo», explicou.

 

 

Obras em curso – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

A construção da Igreja Matriz da Nossa Senhora da Conceição deve-se a D. Gonçalo Vaz de Castelo Branco, vedor da Fazenda de D. Afonso V, investido por aquele monarca em 1476 como primeiro donatário da localidade de Portimão.
Uma incumbência de D. Afonso V a D. Gonçalo Vaz de Castelo Branco foi a de proceder à continuação da fortificação da localidade, cuja construção se iniciou em 1475 sob ordem real.

A área amuralhada era superior a 6 hectares e definia um polígono irregular, em “dentes de serra”, que acompanhava a margem do rio e englobava a parte mais alta da vila, onde se situava a Igreja Matriz.Existem indicações de uma reparação na muralha durante a primeira metade do século XVII, mais concretamente em 1616, desconhecendo-se a sua localização e amplitude.

No entanto, esta deve ter-se revestido de um carácter pontual, visto que parte da cidade já se implantava por esta altura extramuros.

Alguns anos depois, em 1621, Alexandre Massai, engenheiro de Filipe II de Portugal, verificava que existiam muitos arrabaldes fora do perímetro amuralhado, projetando para a vila uma ampla fortificação abaluartada que nunca chegou a realizar-se, provavelmente por ser mais premente a construção de uma fortaleza para defesa da entrada do rio Arade.

 

 


Acompanhamento arqueológico das obras na cidade tem levado a descobertas

A articulação do Setor de Património da DMP/Museu de Portimão com os vários departamentos da Câmara de Portimão com competências ao nível de operações urbanísticas, quer privadas como públicas, decorre há vários anos, «sendo um garante da execução dos necessários trabalhos de salvaguarda patrimonial», salienta Vera Freitas, arqueóloga do Museu de Portimão.

À semelhança do que acontece com os licenciamentos de obras privadas, várias obras públicas, como as mais recentemente executadas na requalificação do Largo do Dique, do Jardim 1º Dezembro ou na nova sede da Junta de Freguesia de Portimão (Casa Nossa Senhora da Conceição), foram alvo de trabalhos arqueológicos feitos pelo Museu de Portimão, que «permitiram um importante avanço no conhecimento das ocupações antigas presentes no atual centro histórico».

«As mais recentes intervenções vieram alterar o panorama da investigação arqueológica, dando a conhecer vestígios de ocupações cujas características e cronologia eram inéditas na cidade de Portimão», acrescenta a arqueóloga.

Vera Freitas refere-se ao complexo de preparação de preparados piscícolas de época romana registado no Edifício Mabor, na zona ribeirinha, «cuja época de construção é de momento difícil de indagar, mas que comprovadamente se manteve em laboração até ao Baixo Império».

Neste local, também se comprovou a existência de um troço conservado da Muralha de Portimão, implantado sob a fachada do edifício virada à zona ribeirinha.

A arqueóloga municipal salienta que «vestígios da muralha e dos tanques de salga romana foram conservados no local, para efeitos de divulgação pública».

Na recente intervenção arqueológica decorrente da reabilitação do Jardim 1º de Dezembro, imediatamente a norte dos edifícios alvo de demolição, foi possível identificar «um troço conservado das fundações da muralha tardo-medieval, bem como uma cremação de época romana, de tipo bustum, o que nos indicia que esta zona terá cumprido a função de necrópole».

«Esta necrópole romana localizar-se-ia numa área muito próxima de contextos de margem e encharcados, presentes de igual forma na zona do Largo do Dique», sublinha.

A intervenção arqueológica na Casa da Nossa Senhora da Conceição (atual sede da Junta de Freguesia de Portimão) situa-se na área intramuros tardo-medieval de Vila Nova de Portimão, implantando-se, de igual forma, na envolvente do local do primeiro edifício da Misericórdia de Portimão, também este alvo de intervenção arqueológica no âmbito de operação urbanística privada.

Na Casa da Nossa Senhora da Conceição, registou-se um edifício de carácter doméstico, que os arqueólogos datam de meados do século XVI/século XVII.

Estes trabalhos arqueológicos, acrescenta, «comprovaram que a ocupação romana não se cingia à zona ribeirinha, estando também presente neste local. A cronologia do início da ocupação romana remete-nos para um momento anterior da que a registada na Mabor, concretamente a partir de meados do século I, mantendo-se em continuidade até fim do século II/ século III».

Na envolvente imediata da Casa da Nossa Senhora da Conceição, realizou-se uma outra intervenção arqueológica no âmbito de uma operação urbanística privada na R. Ernesto Cabrita, n.º 19 a 33, num edifício cujo tardoz corresponde ao pano da muralha tardo-medieval e respetivo adarve.

Aí foi identificada uma poterna ou bombardeira entaipada, cuja existência não estava registada em nenhum exemplar de cartografia antiga, bem como a silharia original de um cunhal da muralha, que se suponha destruído.

As sondagens efetuadas revelaram contextos relacionados com o momento de construção da muralha (finais do século XV) e outros com cronologias de meados do século XVI.

«A confrontação dos dados das duas intervenções permitirá averiguar com detalhe o urbanismo desta zona da Vila Nova de Portimão, informação relevante para o estudo da evolução da cidade», descreve Vera Freitas.

Por outro lado, o acompanhamento arqueológico da demolição dos edifícios no Largo do Dique, contíguos à Casa Manuel Teixeira Gomes e localizados na zona extramuros tardo-medieval de Vila Nova de Portimão, permitiu verificar que, apesar de a partir do século XVII a Vila ter iniciado a sua expansão extramuros, esta zona de interface de contextos de margem e encharcados encontrava-se, nesse momento, ainda não edificada.

Esta situação ter-se-á mantido até aos finais do século XVIII/início do século XIX, sendo que estes sapais e zonas de depósitos aluvionares foram progressivamente preparados para receber construções.

Aí foi criada uma extensa área de lixeira, paulatinamente formada entre os meados/finais do século XV e o século XVII, que contribuiu para a criação de condições favoráveis à edificação desta zona dos arrabaldes da Vila Nova de Portimão, antes ocupada por sapais e depósitos aluvionares.

Está previsto, para o fim deste ano, o lançamento de uma edição do Museu de Portimão, onde serão apresentados os resultados destas várias intervenções arqueológicas, tanto de âmbito público, como privado.

Segundo a arqueóloga Vera Teixeira de Freitas, essa publicação tem «o intuito de dar a conhecer a investigação científica produzida, bem como dando resposta à obrigação de retorno social deste investimento».

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação e ERA Arqueologia

 

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