Há livros que nos provocam singular curiosidade: pelo tema, pela capa, pelo escritor. E A Devastação, de Helena Magalhães, entrou por vários motivos na categoria de «livros que despertam a curiosidade».
Conhecia a Helena do Instagram e do seu Book Gang, mas nunca havia lido nenhum dos seus livros. Sabia que se preocupava com o feminismo e era (é) ativista literária. Como diz no seu website: «fala de feminismo, das mulheres na literatura e leva a importância da leitura e da arte na saúde mental, na produtividade e na fomentação de mudanças sociais e culturais.» Assuntos que muito me tocam.
Helena Magalhães é voz que pensa, e tudo isto aguçou ainda mais a curiosidade, que não saiu gorada; pelo contrário, foi agradavelmente maravilhada.
A Devastação é um livro bem escrito, o que torna a leitura prazerosa. O retrato que apresenta sobre a infância e a adolescência no feminino é pouco habitual na literatura portuguesa e só isso faz o livro merecedor de atenção. Mas há mais. Baseado na história da mãe de Helena Magalhães, que teve uma infância de solidão e privação, A Devastação é ode à memória da realidade social vivida por muitas mulheres em Portugal.
Apresenta-nos a ambiência da liberdade juvenil e as vivências da protagonista, Isabel, — do abandono pelos pais (e outros sofrimentos), na infância, passando pela permanência no internato, até à saída e viagem para Lisboa. Um retrato de crescimento quase até à atualidade. É romance de formação, poder-se-á dizer com firmeza, o que possibilita ao leitor o contacto com uma textura social complexa. A vida relacional em sociedade, a vida psicológica durante um longo período e, claro, as emoções, o palco interno das personagens — o que sentem e vivem é a matéria de que é feito o enredo. São várias as figuras que desfilam nesta obra, e as suas histórias entrelaçadas oferecem complexidade à narrativa.
E muitos são os temas abordados: violação, toxicodependência, suicídio, tráfico sexual, abuso e violência das mulheres, crime organizado, escravidão sexual, abuso de menores por pessoas próximas. O cerne talvez seja a complacência, a omissão, uma certa indiferença de comunidades mais rurais perante comportamentos menos corretos das instituições que deveriam proteger os indefesos à sua responsabilidade (é impossível não recordar o exemplo da Casa Pia). Temas difíceis, abordados sem pieguices ou panos quentes.
Há um sentimento que perpassa as várias páginas desta obra: estamos todos desprotegidos perante a impermanência, o desconhecido de cada dia, mas no final, nos instantes de sofrimento, persiste a esperança. Na busca de identidade pessoal, marcada por fortes e inesperadas violências exteriores, podemos encontrar-nos e resistir ao que o mundo nos impõe a ferros. Apesar de todas as dificuldades, é possível renascer e acreditar numa vida melhor. Não se trata de cliché, é a essência da humanidade. É bom ler livros assim, que agitam, devastam, mas aconchegam a alma.
Autora: Analita Alves dos Santos é autora e mentora literária
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